No ótimo Short Cuts, de 1993, o cineasta Robert Altman compõe um mosaico da sociedade norte-americana contemporânea a partir de “cenas da vida” — baseadas em oito contos de seu conterrâneo Raymond Carver — que vão sendo apresentadas de forma aleatória, sem que a princípio se perceba qualquer relação efetiva entre elas. Aos poucos o espectador descobre que existem, sim, vínculos mais concretos do que imaginava existir entre os vários personagens e que nada entrou ali por acaso. Se Altman tivesse dispensado a costura e apostado na graça do genial painel sugerido pela simples reunião dos contos, a proposta já seria exitosa. Ao expor paulatinamente os laços e os nós, o diretor cria uma história maior e também a sensação de que ela é perfeitamente dispensável à sustentação do conjunto. Mais do que isso, era preciso que fosse revelada essa história para que o espectador pudesse compreender em profundidade por que motivos ela se tornou descartável. A polifonia resultante dessas e de outras tantas ilações possíveis amplia a dimensão do filme e responde pela sua magia. É que no cinema, como de resto nas artes todas (e muito especialmente na literatura), quanto mais o autor esmiúça o detalhe, mais ampla vai deixando a obra. Pode parecer contraditório, mas não é: o exercício artístico consiste justamente em iluminar o detalhe ao ponto de que se consiga, através dele, chegar à amplitude.
O fotógrafo, o mais recente romance do catarinense e curitibano por adoção Cristovão Tezza, guarda em muitos aspectos uma notável semelhança com o filme de Altman. A história é atraente. Na Curitiba de 2002, véspera da eleição que levou Lula à presidência do país, um fotógrafo profissional, quarentão e anônimo (em dado momento, um personagem secundário confunde o nome e passa a chamá-lo erroneamente de Rodrigo) é contratado para um trabalho pouco usual e algo detetivesco: clicar às escondidas uma jovem modelo, Íris, e entregar ao misterioso cliente os filmes antes de eles serem revelados, contra o pagamento de US$ 200 por rolo produzido. A ação se desenvolve num único dia. À medida que o protagonista avança na espreita e caça de sua “vítima”, para logo se atrapalhar e romper com o combinado, batendo à porta da garota, mentindo a ela sobre o objetivo das fotos e revelando-as mais tarde em seu laboratório, Tezza faz desfilar uma teia de outros desdobramentos curiosos: a mulher do fotógrafo, Lídia, em meio à crise no casamento vive uma paixão correspondida pelo Prof. Duarte, catedrático da área de literatura por sua vez casado com Mara, psicanalista e terapeuta de Íris. A exemplo do que ocorre em Short Cuts, esses laços vão sendo paulatinamente descortinados, estratégia que garante uma leve e permanente tensão à narrativa. Os personagens compartilham num mesmo dia dos mesmos espaços físicos — Lídia sai de uma sessão de cinema acompanhada por Duarte no exato instante em que Mara surpreende o fotógrafo apontando a câmera para a mulher e desistindo de registrar talvez um flagrante; Lídia cruza com Íris na saída do elevador na universidade, mas não sabe que ela é a jovem perseguida pelo marido —, sem que, no lapso de tempo em que se desenvolve a ação principal e aparentemente frustrando a expectativa do leitor, eles venham a descobrir essas coincidências.
Criar suspense, entretanto, não é o objetivo, o que permite afirmar que, a exemplo do que acontece no filme de Altman, a história maior, embora muito bem urdida e instigante, torna-se secundária tão logo o leitor comece a perceber outras várias metáforas e sutilezas. Em primeiro e destacado lugar, a forma com que Tezza estrutura o romance. Cada um dos 25 capítulos corresponde a uma cena fotografada em suas minúcias e de diversos ângulos, não raro por mais de uma “câmera” — ou seja, o olhar de um personagem —, e são batizados de forma similar àquela que costuma dar nome a fotos artísticas e telas em exposição: O fotógrafo encontra Íris, Duarte volta para casa, Lídia bebe um café, etc. Muito além da cena em si, captada no exato instante em que ela ocorre, o movimento principal do livro acontece na cabeça de cada um dos cinco protagonistas. Contendo os elementos da história que vêm desaguar no presente, esse mergulho interior é tão ricamente explorado que o autor às vezes não se contém e chega a permitir a intromissão de uma primeira pessoa, causando estranheza ao dar voz interna ao próprio personagem, quando o texto é todo ele construído na terceira pessoa, embora o foco narrativo seja alternado a cada troca de protagonista. Longe de ser inadequada, a intrusão reforça o caráter de monólogo interior do discurso, ainda que ele se valha de uma voz diferente do “eu” exigido nessa técnica narrativa.
As relações humanas são ásperas: na óbvia deterioração do casamento, no serviço escuso e na postura dissimulada decorrente, na dificuldade do homem conservador em lidar com uma paixão extraconjugal, no encontro com o amigo de infância que virou político, tudo tem sempre um travo de mal-estar e constrangimento. A imagem que o fotógrafo faz do próprio casamento — “dois estranhos com uma filha no meio” — é o melhor exemplo desse ânimo. A felicidade fica restrita aos limites das reminiscências do passado e de alguma tímida projeção para o futuro, enquanto o presente quase nunca deixa de ser desgracioso e mal-ajambrado. A frase de abertura, “a solidão é a forma discreta do ressentimento”, dá o tom predominante e funciona também como um leitmotiv, que será retomado em diferentes situações no decorrer do romance.
Curitiba, cidade que o autor conhece intimamente há 30 anos e à qual devota um olhar afetuoso, ainda forasteiro, serve de cenário. Como pano de fundo, a expectativa quanto à vitória de Lula e suas conseqüências às vésperas do pleito daquele 2002, assunto que costumava gerar polêmica e discussão sempre a reboque da mesma e inquietante pergunta: “será que Lula ganha?”. Ao contrário de guardar qualquer conotação panfletária, o registro pela literatura de um momento político de grave importância na história recente do país é mais do que oportuno. E Tezza sai-se bem ao realizá-lo.
Numa época em que o microcomputador tornou-se a principal ferramenta da maioria dos escritores, Tezza utiliza ainda o método antigo: ele prefere a caneta e o papel, justificando que gosta de “lidar com as folhas escritas, com o próprio desenho da escrita”, e acrescenta ser esse um “modo agradável de ficar sozinho”. Conseqüência ou não dessa predileção — caso ele ainda não exista, um estudo aprofundado sobre a óbvia influência do Word no texto contemporâneo seria muito bem-vindo —, o discurso de Tezza é mais lento e reflexivo do que costuma ser o dos escritores de sua geração. Os longos parágrafos e as frases caudalosas vêm flagrantemente a serviço da estrutura narrativa. Bom gosto e apuro estilístico rendem alguns belos momentos:
“Quando ele tateou e abriu a cortina grossa, pesada e sem cor que separava aquele corredor sinistro da sala de projeção, onde os aguardava outra tonalidade de escuro, os dois corpos se tocaram pela primeira vez na vida e ele respirou ao acaso o perfume de Lídia, a aura de um vapor discreto que subia de seus cabelos também escuros, e ele quase teve a certeza de que a mão dela buscava a sua mão, como uma criança que pede ajuda ao entrar numa caverna escura ou diante de um fato novo e assustador, o reflexo da segurança, mas não houve tempo para saber, porque ele imediatamente ergueu o braço para aquela luz mortiça que revelava a linha das poltronas onde só havia duas cabeças perdidas.”
Mas é na evocação de uma cena de sexo — prova de fogo para qualquer escritor — que Tezza mostra toda sua competência:
“Era uma sensação boa que eles demoravam uma eternidade de tempo naquela escuridão respirante até que, enfim, ele não consegue mais segurar, e as unhas de Lídia marcavam-lhe as costas, eles inteiros entrelaçados no mesmo animal escuro. A ginástica se esvaziava suave e suada, escorregantes, um derretimento do corpo, o ar viciado deles mesmos — abrir a porta estreita era a expulsão, de novo, para o gelo do dia.”
Como se pode comprovar pelos excertos acima, Tezza tem uma dicção precisa e muito bem afinada com o registro atual da língua. Se, por um lado, ele passa ao largo do maneirismo e de outras soluções barrocas ou mais complexas, por outro não economiza nos palavrões, e isso sim pode configurar um exagero ou — o que é pior — sugerir um nivelamento indesejável do perfil de alguns dos personagens. Vale lembrar que o palavrão em si, seu uso parcimonioso ou ainda o desbragado, longe de constituírem a priori um problema, são recursos importantes à verossimilhança e ao próprio estilo do escritor. Contudo, manda o bom e velho senso que, a se correr o risco de errar a dose e prejudicar o doente, é preferível abdicar de empregá-lo. Um detalhe, apenas, quando o que está em jogo é um texto de qualidade, exemplarmente denso e bem escrito, quase na contramão da tendência atual à concisão, ao despojamento formal, e a demonstrar ainda que o requinte não é uma opção vetusta nem está atrelado a um feitio único.
O fotógrafo é uma obra singular. Não houvesse mais nenhum outro motivo, o fato de ter provocado num só resenhista a lembrança de um dos trabalhos mais bem realizados do cinema norte-americano da atualidade já seria o bastante para garantir seu lugar de destaque entre os bons e originais lançamentos de 2004.