Correção literária

Recentemente, a imprensa brasileira divulgou uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília (UnB), e coordenada pela professora de Literatura Brasileira Regina Dalcastagnè.
Ilustração: Ramon Muniz
01/12/2005

Recentemente, a imprensa brasileira divulgou uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília (UnB), e coordenada pela professora de Literatura Brasileira Regina Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas do Programa de Pós-Graduação em Literatura. O resultado chamou a atenção de muita gente — alguns alarmados pelos dados obtidos, outros descrentes de que eles possuíssem alguma significação especial, relevante. Enfim, concluiu-se que os personagens dos romances brasileiros contemporâneos são, em sua maioria, “homens, de classe média, que moram em cidades”; também se notou que “negros, mulheres, velhos e pobres têm pouca ou nenhuma voz”. Alguns números anunciados pela pesquisa: 62,1% de nossos personagens literários são homens; 79,8% são brancos (contra 7,9% negros e 6,1% mestiços); 73,5% dos personagens negros são pobres. E o que significam essas estatísticas? Os escritores brasileiros estão contando as histórias erradas? Desligados do movimento social em que vivem? Ou importar-se com isso é render-se à patrulha do politicamente correto? Para responder a essas questões, o Rascunho convidou sete escritores nacionais.

X, Y e Z%
Ronaldo Bressane

Conheço o trabalho da Regina já de um tempo e o admiro muito — é raro a “academia” debruçar-se sobre a realidade do que se publica atualmente. Por isso me espantei com a estatística vinda da UnB. Primeiro, não sei de onde surgiram esses dados. Não tenho como saber quais foram os escritores pesquisados — por que se escolheram estes e não aqueles. Critério de tiragem, representatividade literária, cotas para cada estado? Também ignoro a idade desses livros — por “contemporâneo” leia-se o que foi produzido nos últimos cinco anos, seria isso? Ou só o ano passado?

Certamente não pegaram nenhum livro meu, já que o critério é romance (sou autor de três livros de contos e um de poesia). Nem posso afirmar se a amostragem tem rigor científico, uma vez que no Brasil de hoje se publica muito mais conto que romance. Por aí, creio que é mais representativo olhar a ficção brasileira contemporânea observando-se o romance, o conto, a crônica — e talvez até a poesia, por que não?

Fico imaginando como será esse censo daqui pra frente. Será que o de 2030 vai ser “No último ano, 20% dos personagens da literatura brasileira contemporânea são negros, 15% são pardos, 10% são morenos claros, 35% são louras de olhos azuis, 10% são ETs, 30% gays, 25% gays não-assumidos, 35% machos homofóbicos que amam hard rock, 15% lésbicas peludas que gostam de assistir a reprises de Sex in the city…”?

Caralho, o que quer dizer “6,1% mestiço”? Assim vocês me confundem. Sempre tomei pau em matemática (no sentido não-sexual), por isso é que me enfiei nas letras. Não sei, isso me parece meio ridículo. Seria o caso de, antes de escrever um romance, elaborar uma planilha de cotas para meus personagens? X% esverdeados de terceira idade, Y% paraplégicos adolescentes, Z% latifundiários ricos, K% ninfomaníacas desempregadas entre 18 e 35 anos, W% pretos com um buraco no meio… Aí, sim, eu poderia afirmar que meu romance “representa a realidade brasileira”?

Quantos personagens “de cor” havia nos romances de Machado? A baixa porcentagem seria um sintoma acaciano de seu racismo infiltrado? Nas histórias de João Antônio, a alta incidência de pobres, pretos e lascados teria a ver com consciência política, com ressentimento social ou com estratégia narrativa? Como explicar um sujeito como o contista carioca Jorge Cardoso, que mora na Suécia e escreve sobre, entre outras coisas, muçulmanos heroinômanos? Ele representa a literatura brasileira contemporânea ou não?

E que cazzo estatísticas têm a ver, na real, com literatura?

Assinado
Ronaldo Bressane, paulistano, 35 anos, 51% escritor, 49% jornalista; aproximadamente 20% italiano, 20% judeu polonês, 20% mouro espanhol, 20% português, 10% bantu, 10% tupi; 100% corinthiano. Mais ou menos classe média (por enquanto).

Ronaldo Bressane é escritor, autor da trilogia de contos A outra comédia — formada pelos livros Os infernos possíveis, 10 presídios de bolso e Céu de Lúcifer — e do volume de poemas Impostor. Mora em São Paulo (SP).

Na contramão
Ronaldo Correia de Brito

Sábato Magaldi afirma que o teatro busca comunicar-se com o seu tempo. A literatura, também. A partir da década de 50, as populações brasileiras abandonam os interiores e se deslocam para as cidades grandes. O campo se esvazia de poder econômico, da épica e da tragédia, seus significados tradicionais. Incorpora os dramas urbanos através de ciclos migratórios de população, do rádio, da televisão, e mais recentemente da globalização via internet. Falar dos sertões de hoje é escrever necessariamente sobre ruínas, e também sobre drogas, prostituição infantil, trabalho escravo, analfabetismo. O romance brasileiro atual é urbano, porque predominam as cidades e seus dramas. Oitenta por cento das pessoas moram nelas. Os personagens são homens brancos de classe média, talvez porque seus autores pertençam a essa classe social e sejam brancos. O Brasil que serviu de tema ao romantismo, ao naturalismo, ao romance de 30 e ao cinema novo caiu de moda. Se existe patrulhamento, é para que se escreva em ambiências de cidade, literatura para a classe média que lê e compra os livros. Os autores que como eu trabalham a partir de uma memória inventada, buscando uma síntese entre o rural e o urbano, criando uma geografia que é mera cilada, produzem literatura de risco, na contramão do nosso tempo.

Ronaldo Correia De Brito é escritor. Autor de Livro dos homens e Faca. Vive em Recife (PE).

Tão ruins quanto
Pedro Salgueiro

Não deixam de ser sociologicamente importantes constatações como essas, principalmente por revelarem um país que é, sim, preconceituoso e excludente, que não trata por igual seus agentes sociais. Mas tais constatações se tornam perigosas quando não mais se contentam em apenas fornecer dados preciosos para uma reflexão de autores, educadores, leitores, etc., etc., e passam a exigir que nossos “Fabianos” se revoltem contra os “soldados amarelos”, cobrando de nossos personagens de ficção um idealismo não constatado na realidade (como exigiram de Graciliano Ramos — que seu personagem Fabiano reagisse às humilhações do soldado amarelo), querendo que nossos autores se engajem nas “lutas sociais”. Particularmente imagino que meus personagens sejam pobres, mestiços, morem em subúrbios ou pequenas cidades; confesso que nunca me preocupei com suas cores, situações econômicas, classes sociais e sexos, mas muito mais com os males que atingem o homem (e a mulher, senhora pesquisadora!) desde que o homem é homem, como o ódio, a maldade, o amor, o medo, a inveja, isto é, com problemas menos transitórios; muito embora não tenha preconceito nenhum contra quem trata diretamente de problemas temporais, desde que com talento. Até porque tenho uma visão muito pessimista do ser humano em geral, e acho, sinceramente, que mulheres, negros e pobres são tão ruins quanto homens, brancos e ricos.

Pedro Salgueiro é escritor. Autor dos livros de contos O peso do morto, O espantalho, Brincar com armas e Dos valores do inimigo.

Campo ruim
Joca Reiners Terron

Tenho minhas dúvidas se a estatística é ciência adequada para o que quer que seja que não auxiliar publicitários e políticos em seus esforços de venda. Mas, partindo dos dados colhidos, seria interessante saber como esses personagens — homens, brancos e de classe média — são retratados hoje em dia. Por exemplo, eles têm empregos ou também sofrem quaisquer tipos de marginalização social? Ou são brancos e de classe média e por isso mesmo ocupam empregos estáveis e com bons salários? Dessa forma (e falo aqui baseado nos parcos dados a respeito da pesquisa que me foram transmitidos para que opinasse) os resultados sofrem o perigo de refletir a estranha forma de marginalização social vigente no Brasil desde o período (oficial) da escravidão: paternalista, cordial, disfarçada e cruel.

Por outro lado considero que a literatura não é bom campo para esse tipo de reflexão, já que existem ciências mais adequadas para isso, como a sociologia, a antropologia, etc. A literatura é outra história, e em nosso caso (brasileiro) temos, representando o supremo fracasso e a suprema vitória pessoal, dois representantes das classes mais baixas, dois mestiços: Lima Barreto e Machado de Assis. E mesmo no caso de Lima (com sua história de vida de final tão trágico) é certo que o tempo lhe fez (e faz) justiça à grande qualidade estética (e ética) de sua obra.

Joca Reiners Terron é prosador e poeta. Autor dos livros Curva do rio sujo, Hotel Hell e Animal anônimo. Mora em São Paulo (SP).

Metáfora da vida
Mayrant Gallo

Os personagens de um conto, de uma novela ou de um romance são definidos com base no argumento da história e sobretudo no significado que seu autor pretende alcançar ao fim da trama. Claro que conscientemente isso só ocorre depois que ele atingiu certo grau de independência, afastou-se de si mesmo, de suas emoções pessoais, em favor de uma constante reflexão sobre o mundo, a vida e os homens. Não são poucos os exemplos. Alguns: Machado de Assis, Eça de Queiroz, Lima Barreto, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Herberto Sales. Ainda que escrevam em primeira pessoa, projetam personae, incorporam outros eus, desmembram-se e se multiplicam em muitos seres, que, no íntimo, não são nem brancos nem negros, nem velhos nem jovens, nem ricos nem pobres, nem religiosos nem ateus, nem homens nem mulheres. São apenas indivíduos, exemplares da espécie humana, não importa o meio em que vivam, nem sob que condições; e tudo que sofrem ou alcançam coincide com as expectativas, os fracassos, as frustrações e os desejos humanos mais elementares, tanto de brasileiros quanto de russos, árabes, africanos, japoneses ou nórdicos.

O interesse da literatura não deve recair sobre determinados grupos humanos, mas sobre o ser, o homem primordial, que está aqui desde antes das fronteiras, das línguas ou das diferenças culturais. Um personagem, qualquer que seja ele, mesmo a cachorra Baleia ou uma ponte (personagem de um conto de Kafka), é o meu representante e o de todas as pessoas. Os grandes dilemas não são econômicos, sociais, etários, étnicos ou culturais; são de natureza ontológica, dizem respeito ao homem e sua condição primeira: viver. O resto é pano de fundo. Projetar um personagem é cogitar uma possibilidade humana. Literatura não é realidade, é verossimilhança. Metáfora da vida.

Mayrant Gallo é poeta e contista, autor dos livros O inédito de Kafka e Dizer adeus.

Brasil plural
Aleilton Fonseca

Toda pesquisa séria é bem-vinda, pois contribui para o debate, a polêmica, e a reflexão. E para possíveis mudanças. A pesquisa da UnB constata, de forma metódica e analítica, algo que já sabemos empiricamente por experiência de leitura. De fato, em sua grande maioria, os personagens dos romances brasileiros são homens, de classe média e moram em cidades. As chamadas minorias estão ausentes ou pouco representadas. A pesquisa constata algo que é uma realidade. Não significa  necessariamente que os escritores estejam contando histórias erradas ou que devam se sentir obrigados a mudar. Eles estão, na verdade, contando parte da história, estão sendo parciais ao representar a sociedade brasileira. É uma tendência antiga. Lembremos que entre as dezenas de romances românticos que retratam a elite imperial, apenas Memórias de um sargento de milícias representa os pobres, os mestiços, os remediados e sua sociabilidade peculiar.

As estatísticas atuais refletem o perfil sociocultural do extrato da população que se leva em conta: a classe média, consumidora, leitora, urbana, formadora de opinião. É para essa camada social — que lê e compra livros — , que se escreve e se edita. Os autores  representam seus dramas existenciais e cotidianos, numa busca tácita de identificação com o público disponível. As editoras, preocupadas com o mercado, não se arriscam a publicar nada fora desse esquema. Os originais que contrariam as estatísticas acabam não sendo aceitos para edição. Apesar disso, não se trata de tomar a pesquisa como patrulhamento nem direcionamento. Certamente não é isso que os pesquisadores desejam. Todos devem ser livres para escrever o que bem entenderem. Cabe aos escritores refletirem por si mesmos sobre o fato, lembrando do vasto Brasil rural, popular, negro, mestiço, das cidades interioranas — ricos nichos de vida, valores, imaginário e experiência humanos, que também devem figurar nas páginas da literatura contemporânea. Isso ampliaria a geografia social, étnica e política de nossa ficção, tornando-a mais representativa da complexidade do país e da nossa diversidade cultural. Dizer o Brasil plural, eis o grande desafio do escritor contemporâneo.

Aleilton Fonseca é escritor e poeta, autor dos livros Movimento de sondagem, O espelho da consciência e Teoria particular (mas nem tanto) do poema. Também é co-editor da revista Iararana. Mora em Salvador (BA).

O campo de particular
José Castello

Esse tipo de pesquisa pode interessar à universidade, mas para a literatura não tem importância alguma. É verdade que muitos escritores, hoje, e infelizmente, passaram a escrever “para o mercado”, ou “para a crítica acadêmica”, ou até “para a história da literatura”. Não são os escritores que me interessam. A literatura é o campo do particular, é o lugar da liberdade interior, de modo que idéias como as do “politicamente correto”, ou do “academicamente correto”, ou mesmo do “literariamente correto”, não lhe dizem respeito.

José Castello é escritor e jornalista. Autor dos livros Inventário das sombras, Fantasma e O poeta da paixão, entre outros. Mora em Curitiba (PR).

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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