Os melhores poemas, de Arnaldo Antunes, organizado por Noemi Jaffe, é um bom exemplo de obra em construção permanente que, além da perspectiva múltipla e desafiadora, ou até por tudo isso, vem carregada de possibilidades de leituras e releituras. Reunir os “melhores” poemas deste poeta, ator performático, músico, cantor e compositor, pintor, crítico de arte, enfim, homem do seu tempo e sujeito da sua história, deve ter sido um trabalho muito árduo, verdadeira luta de titãs, ordem e desordem, contenção e excesso, medida e desmedida. Apolo e Dionísio se engalfinhando…
Mas, nessa luta, o verdadeiro vencedor é o público leitor que encontra em um único volume um bom apanhado da diversidade da produção poética do artista. Como pretende, este projeto instiga a curiosidade e a necessidade de busca de um contato mais direto com cada livro anunciado na antologia. Os poemas são extraídos dos livros OU E, Psia, Tudos, Nome, As coisas, 2 0u + corpos no mesmo espaço, Palavra desordem, ET eu tu e Nada de DNA. Alguns ainda estão à venda, outros já são inacessíveis — impossível encontrá-los, até nos mais especializados sebos do Brasil.
O fato é que o esforço foi bem sucedido: “muitas/ ondas/ uma/ só/ espuma”, nas palavras do penúltimo poema do livro. O brincar com as palavras nessa poética é um ofício muito sério, divertido e cuidadoso. A linguagem verbal que tem como eixo a palavra escrita e berrada não pode ser lida sozinha. Mesmo que soberana, ela dialoga com outras linguagens que quebram essa soberania e disputam espaço ou o negociam. Daí que cada poema exibe um desenho cuidadoso sobre a página em branco, manchada de pontos pretos que negociam sentidos, ou os anulam em ondas que se chocam e questionam formas fixas, ameaçadas ao naufrágio inevitável. Quem busca regularidade, verdades, respostas fechadas, rótulos ou “características” da autoria sairá frustrado com o intento. Há uma proposta sedutora e implícita de parceria como elemento importante e neutralizador do estranhamento que, muitas vezes, pode surpreender os que se julgam mais preparados para o exercício da leitura.
Os vazios do texto, teorizados pela estética da recepção das primeiras horas, não são apenas abstrações de modelos teóricos, ou metáforas que aludem à participação do leitor ou usufruidor do espetáculo artístico, seja ele uma performance, uma peça teatral infantil, um show musical ou a leitura de um poema. Neste livro, os vazios perdem o caráter metafórico ou implícito e se concretizam no espaço da folha como contraponto ou ponto de apoio para se estabelecer essa parceria sugerida. Ou seria apenas a contaminação da prática de composição musical de uma canção? Ou serão apenas questões para se pensar juntos?
Há milhares de _____________s.
Um _____________ acontece quando se vai longe demais.
A miragem que um sujeito cava pra si mesmo
é a face escura do _____________.
(…)
No _____________ se anda em círculos.
Não se sabe o tamanho de um _____________,
se ele vai mais fundo.
De dentro tem o tamanho do mundo.
O ingênuo “complete as lacunas” do tempo de colégio é apenas o início da conversa, sem pretensão, de um fim em si. É uma onda que contribui para formar a espuma, porque suscita outras ondas, porque precisa de outras ondas e as convoca com o poder de sedução poética e com a simplicidade da criança que, como o artista, lança seu olhar sobre o dia e sobre o mundo como se sempre o estivesse olhando pela primeira vez, num misto de encantamento e espanto.
Amor e solidariedade
Em As coisas, entre outros aspectos, este olhar é privilegiado. O conjunto desses poemas é ilustrado por Rosa Antunes, filhota do autor, que ocupa com seus desenhos as páginas em branco que antecedem cada poema. Artes visual e poética entrelaçadas indissociavelmente numa parceria, como melodias e palavras compõem a canção. O motivo infantil do traço oferece seu abraço à palavra escrita num incondicional amor à vida, numa solidariedade às coisas: “As coisas têm peso, massa, volume, tempo, forma, cor… destino, idade, sentido. As coisas não têm paz”. E dentre essas coisas que têm tudo, mas não têm paz, estão as palavras berradas ao microfone, desenhadas com cuidado sobre a página, criadas, inventadas sem descanso, sob diversas formas e velhos e reinventados conteúdos. Esse mesmo conjunto de poemas e desenhos foi adaptado para uma peça teatral, em cartaz em junho, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, dirigida ao público infantil. O espetáculo oferecido nos fins de semana tem sido muito concorrido e disputado por uma audiência de crianças e marmanjos, muitos dos quais, por vezes, são barrados no baile. Casa sempre lotada, filas gigantes, pouco espaço para tanta demanda.
A palavra transformada em coisas no desenho fino do artista não têm paz e, muitas vezes, não se contenta apenas com a folha em branco; precisa virar grito berrado ao microfone, precisa se ver espelhada nas paredes de vidro de um restaurante qualquer da megalópole, como instalação da irreverência. A internet está cheia de exemplos desta irreverência, dá destaque a antigos eventos e novas performances por meio de clipes de novas canções, como Longe. Os poemas de Palavra desordem foram objeto de uma instalação nas pareces de vidro de um restaurante em São Paulo há anos atrás, mais ainda são notícia:
INSTALAÇÃO PALAVRA DESORDEM
Clo Restaurante — r. Pedroso Alvarenga, 1026, Itaim — São Paulo
Exibe uma coleção de poemas visuais baseados na linguagem dos epigramas, ditados, aforismos, máximas, axiomas, provérbios ou refrões. Slogans, ou antes, anti-slogans, já que subvertem esse tipo de discurso poeticamente, contaminando-o de estranheza. Utiliza as paredes de vidro da casa como suporte da obra.
No poema fênis, de Nome, a palavra é coisa em movimento. Ocupa dez das páginas do livro, incluindo a primeira com o título distribuído no meio a esquerda da folha em branco. Daí em diante, cada página vai contendo essa palavra-coisa, multiplicando suas letras sobrepostas umas às outras, e estabelecendo com as demais uma seqüência cinematográfica, de movimento centrífugo, criando um efeito de sopa de letrinhas passada em um liquidificador, em câmara lenta. Cada página pode ser lida como um fotograma, unidas pela seqüência, como um filme, letras que se relacionam entre si, acrescentando-se outras, compondo-se e recompondo-se, entre fênis e pênix, estabelecendo a ação e o movimento em abismo.
Pignatari
Agouro, de 2 ou + corpos no espaço, de certa forma também se inscreve nessa lógica cinematográfica. Ocupa 16 páginas, alternando-se por folhas em branco, cada uma composta pela superposição da palavra título uma sobre as outras, formando, em alguns momentos, manchas do preto sobre o branco, onde se pode ler, no início, novas palavras, como o “agora” em destaque, formando borrões de tinta de um invisível carimbo. No decorrer da sequência, as letras vão se apagando, apagando, até virarem leves e minúsculos pontos pretos sobre a predominância da folha em branco. Neste poema, como em outros, através das palavras “agouro” e “agora”, discute-se também a efemeridade do tempo: Afinal, “O tem-/ po todo/ o tem-/ po passa” ou, ainda, “O que/ (se) foi/ é (s)ido”.
O poema desen-volve ocupa várias páginas. As palavras que o compõem estão envoltas por molduras em preto e branco que borram os limites entre uma coisa e outra (palavra-imagem). Na introdução do livro, há uma breve leitura do poema, remetendo-o a uma intertextualidade com Décio Pignatari, onde se lê “a estranha vulva do cinepoema desen-volve” como uma “espécie de homenagem à vulva de organismo”, poema do autor citado. Essa palavra falada, cantada, pintada, carimbada, quer seja como melodia, quer seja como expressão dramática, precisa tomar corpo, e fazer desse corpo caixa de ressonância, construtor de sentidos ou triturador de palavras em movimento.
O poema Transborda ocupa duas páginas seguidas com palavras coladas umas às outras, em formato de onda, e fala desse corpo que
mestruasuacagababaejaculasangraevacuaassoafalasalivamijagargalhaescarraespirrapeidagritacospelacrimeja…vomitaurinasuspensapensa.
É um corpo múltiplo, plural que transborda, que entorna… Afinal, “O QUE/ NÃO/ ENTORNA/ SE/ CONFORMA”, como afirma o poema de Palavra desordem.
“O corpo existe e pode ser pego”, na poética de Arnaldo Antunes. A palavra transformada em coisa toma corpo no poema escrito, cantado, berrado ao microfone. É isso que chamariam poesia concreta? Pode até ser isso também. Mas se diferencia do que os manifestos concretistas preconizavam em seu momento heróico no que tange à questão da objetividade pretendida, na radicalização da abolição da subjetividade. O corpo que “cortado espirra um líquido vermelho” “tem alguém como recheio”. E esse recheio é um sujeito que grita, canta, poetiza, se contorce e retorce, transgride, transborda. É um sujeito que ama, se apaixona e demonstra acreditar na humanidade, por mais “hestranho” que possa parecer: “Hentre/ hos/ hanimais/ hestranhos/ heu/ hescolho/ hos/ humanos”. O poema vem escrito em letras cursivas que pingam tinta ou sangue, versos sobre versos, distribuídos na página em branco.
Esse sujeito é radical por ousar penetrar até a raiz dessa humanidade que transborda, mas não se conforma. Tem seu aspecto de vanguarda, mas não oferece modelos, normatizações, receitas ou fórmulas. Sugere a parceria na construção de uma poética por fazer em seu Manifesto: “Eu apresento a página branca/ CONTRA: / burocratas travestidos de poeta/ sem-graça travestidos de sérios/ (…) burrices travestida de citações/ (…)/ palavras caladas travestidas de silêncio. Uma poética que está em construção permanente, que está em curso porque é viva, e se é preciso, para reunir seus melhores poemas, definir um ponto de partida, que este seja o poema que abre a coletânea: uma vírgula dentro de um ovo: um principiar no meio do percurso de um caminho que se faz ao caminhar.