Coreógrafos de palavras

As palavras nascem assim, sem querer. Meio por acaso. E são tantas. E mais. Que encantam, são sinfonias visuais
Marcelino Freire: “A palavra segue para frente e para trás. Às cegas. Dança um maracatu danado”
01/03/2001

As palavras nascem assim, sem querer. Meio por acaso. E são tantas. E mais. Que encantam, são sinfonias visuais. Mas como toda sinfonia, precisam de bons regentes. Senão, não passam de notas musicais, amontoadas e tristes. Ou de palavras, no caso. Jogadas ao vento, sem alma. Porque as palavras têm alma, quando bem escritas. Acredito, sim.

Por isso escrever não é tarefa das mais fáceis. Trabalho duro, de encaixar as letras, formar palavras, coreografar parágrafos. Alguns dizem que é como um parto. Sofrido, doído. Outros, não passam nem perto da dor. Pelo contrário. Divertem-se. É o caso do pernambucano Marcelino Freire e do mineiro Evandro Affonso Ferreira. Escrevem contos. E divertem-se, esses dois. No melhor sentido. Porque apesar de falarem sobre a crueza do cotidiano nosso, brincam com as letras, palavras, verbos e artigos. De maneiras distintas, porém.

Ferreira é um colecionador de palavras. Sabe que existem aos milhões. Infinitas combinações de letras. E usa tantas quantas conhece o significado. Não se contenta com as aceitas pela chamada linguagem padrão. Pelo contrário. Preserva a tradição oral. Palavras que nascem e morrem todos os dias.

Em Grogotó (Topbooks, 116 págs.), as palavras que nasceram assim, meio sem querer, na fala mansa ou carregada do brasileiro, dançam miudinho em 73 minicontos. Alguns de seis, sete linhas. Mas que dão o recado. Não precisam de mais espaço. Ou mais explicações. São histórias singelas, de gente singela, contadas de forma singela. Simples. Mas complexas, por paradoxal que pareça. Como a vida. Simples, mas cheia de nuanças. Ferreira é um escritor que coleciona palavras, mas as economiza. Provavelmente leu muito Dalton Trevisan. Quem lê Grogotó tem a nítida sensação.

Há contos para todos os gostos. Bem-humorados, carrancudos, poéticos, secos, cínicos. Contam histórias que conhecemos bem de pertinho. Ou que já ouvimos falar. Como a que é contada sob o sugestivo título de Tedium Vitae (pág. 43): “Desempregado, time caiu para a segunda divisão, artrite cada vez pior, senhorio no encalço, dor intermitente no peito, geladeira vazia, mulher com caroço esquisito no seio esquerdo, filho drogado, xi, mais essa, válvula da descarga quebrou.”

As palavras escolhidas pelo autor são o trunfo do livro, aliadas à singeleza das histórias. Elas, as palavras, poderosas, vão direto ao ponto. E divertidas, melódicas, curiosas. A começar pelo título do livro. Que, aliás, significa “Agora é tarde. Acabou-se!”. São muitas as palavras que aparecem de. Umas, o leitor descobre o que é pelo contexto, a história se encarrega de mostrar o significado. “[…] Maria Cachucha quem te cachuchou foi o padre Loiolo que aqui passou; hum, hum, hum, hum, velha chufetera já foi mais afinadinha; se menina molangueirona de cabelos encaracolados fosse mais educada estaria apanhando manga para mim e para ela […]” (Destrambelhos, págs. 44/45). Mas outras, só com dicionário. Ou nem com ele. Especialmente os títulos (“Guereguerê”, “Grugunzar”, “Mangrorra”). Mas a leitura é fácil, fluida.

Evandro Affonso Ferreira nasceu em Araxá, Minas Gerais, em 1945. É livreiro em São Paulo, cidade na qual mora há 40 anos. Grogotó é seu primeiro livro de contos. Uma minibiografia para um minicontista, como ele gosta de ser chamado.

Sangue no angu — Marcelino Freire não economiza tanto nas palavras quanto Ferreira. Trabalha sobre elas um pouco mais. Não melhor, mais. Diferente. Angu de Sangue (Ateliê Editorial, 134 págs.) é o terceiro livro de Freire. Traz 17 contos. Os personagens, como os do mineiro, são conhecidos de todos nós. São casais cansados, ladrões, prostitutas, crianças, viúvos, amantes… Pessoas que estão por aí. “Reais até o gogó. Mesmo que extremamente inventados. Carregados das minhas neuroses. Que são as nossas neuroses. As do nosso tempo”, diz Freire.

Por isso é fácil imaginá-los. Fazer deles pessoas reais. A linguagem também propicia isto. Porque os contos são extremamente visuais. Ou musicais, eletrônicos. Fácil de entender. A formação primeira de Marcelino Freire é teatral. Diz, inclusive, que escreve contos para teatro. A oralidade fica, então, mais visível. Assim como os personagens, que parecem tomar forma a cada palavra. “Ela é puta, pai, puta, puta, puta. É aqui, mãe, nessa luz, pelo perfume eu sei. Ela pode se esconder, mas o perfume, pai, o perfume Deus tá vendo. O dinheiro que ela leva, mãe, pode crer, que a senhora aceita e faz tudo resolver, é dinheiro, pai, daqui, eu sei, corpo que ela mostra pra vender. […]” (Moça de Família, pág. 35).

Mesmo falando sobre temas dos mais variados, os contos têm duas características distintas. Acidez e lirismo, crítica e poesia. Angu e sangue. Na maioria das vezes, o sangue predomina. A acidez, a crítica. A situação do País, a pobreza (de espírito, de dinheiro), a morte. “Na verdade, um está dentro do outro”, Freire observa. Angu está dentro do sangue. “Angu no centro, vivo e nervoso”, diz ele. “Confusão, corrente, ebulição. Minhas frases atiram para todos os lados. A palavra segue para frente e para trás. Às cegas. Dança um maracatu danado.”

Mas nesse maracatu, alguns textos mostram mais fantasia que batida compassada de percussão. Mais poesia. Como em Belinha (pág.27). “[…]Mas era lá que Belinha morava, casada com outro. Que teve filhos e netos. Que vive hoje sozinha e que nem sabe que hoje eu vou lá, entrar naquela casa, que vou dizer o que tenho para dizer, depois de 50, 50 anos, que sempre falta uma palavra. Uma única palavra que vou levando com meu terno e meu chapéu. E uma agonia no coração, profunda. Que sempre falta uma palavra. Era agora. […]”

A intimidade com as letras e a diversão ao escrever ficam claras nos contos de Freire. Para ele, escrever é uma tarefa ardente. Passional. A história pode vir em uma “sentada”, ou ser guiada por uma primeira frase ou ruído. Ele gosta de dizer que escreve em voz alta. E por isso, brinca com as palavras. Ou seus personagens brincam com elas. “PRIMEIRO ROUND: Telópidas do Nascimento contra Michael Nelson e eu agarrada ao meu casamento, o marido que eu tenho já foi lutador, fanático, eu amo o meu marido, amo e amo. Telópidas ganha, segundo ele (meu marido), fácil, e eu fico, com muito amor, vendo pernas gingando para fora do soco, um sábado periférico, palavras que eu gosto: periférico, tétrico, métrico, eufórico. Michael Nelson consegue furar a guarda, dá um soco em Telópidas, tempo. Gengivas póstumas. Postiças, quero dizer. Póstumas, postiças, pestecidas, genocidas. […]” (Os Casais, pág. 85).

Como para todo bom dramaturgo, e ao contrário da propaganda do refrigerante, imagem é tudo. Inclusive na parte gráfica do livro. Foi feito com cuidado. Papel de boa qualidade, impressão, idem. Fotografias e montagens nas cores verde e vermelha. É porque Marcelino acredita no livro como objeto também. Trabalhou com uma diretora de arte e um fotógrafo. Silvana Zandomeni (com quem trabalha na agência de publicidade AlmapBBDO) e Jobalo (artista plástico que vive em Milão). Todos tiveram idéias em conjunto e viajaram nas possibilidades. “O Jobalo leu os contos e viajou no periquito. Matou até um periquito.”

O escritor nasceu Marcelino Juvêncio Freire, em 20 de março de 1967, em Sertânia, sertão de Pernambuco. Bem ali na região onde foi rodado o filme Central do Brasil. Aos dois anos, mudou-se para Paulo Afonso, na Bahia. Saiu da seca e foi para a cachoeira (“Nunca vi tanta água na vista”). Aos 8 anos, foi para Recife, onde fez curso incompleto de Letras e muito teatro (foi ator e dramaturgo). Mudou-se para São Paulo há dez anos. Trabalha como revisor publicitário. Antes de Angu de Sangue lançou dois livros independentes: acRústico e eraOdito (que será relançado, ainda este ano, pela Ateliê Editorial). Conversador, quer manter contato com pessoas que se interessem por literatura, cinema, teatro, música. Na internet, [email protected].

Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho