Paul Valéry disse que enquanto a prosa se caracteriza pelo andar, a poesia mergulha na dança. Logo no primeiro capítulo de Outono de carne estranha, de Airton Souza (vencedor do Prêmio SESC de melhor romance em 2023), temos uma longa cena erótica entre os personagens principais, que vivem um amor proibido e clandestino, pois Manel e Zuza são dois homens que se apaixonam em meio ao garimpo de Serra Pelada. O tema homoerótico não é tratado apenas pela via do erotismo, mas se vale do ritmo dos movimentos de uma coreografia bailarina, revelando todo seu teor explícito numa dança visual e sexual. A pornografia, aliada ao erotismo se conjugam num abraço dinâmico e complementar, produzindo seus gestos, seus silêncios e linguagem poética a abarcarem a grandeza do tema amoroso. Roland Barthes escreveu que o tema erótico se oculta pelo viés do implícito, no entreaberto, no escondido, ao passo que o pornográfico se revela pelo explícito. Dessa forma, o sexo, em Airton Souza, é tratado neste meio-termo, nesta via de mão dupla, entre o que se silencia, se conjugando no vazio, e aquilo que se mostra abertamente, pelo endosso da palavra.
Outono de carne estranha realmente não é um livro para os fracos, mas para os fortes, porque nos sacode, provoca e incomoda, tangenciando as páginas do que é visível e invisível. A metáfora do sexo, ligada ao garimpo, o ato de cavar, entrando e saindo com o membro genital, como as imagens fálicas da pá e do enxadeco, para cavar a terra, tem seu máximo de aprofundamento poético:
Mantendo as pernas rígidas, mas separadas por pouco menos de meio metro uma da outra, Manel fez de tudo para que Zuza não suportasse o peso de seu corpo suado. Ao se manter entrando e saindo, em um único ritmo, era como se naquele instante ele tivesse descoberto outra receita de como escavar mais profundamente os poucos metros do barranco em que trabalhava sem necessitar um dia entender de escafandros.
A lei do movimento, do corporal e do sensório, num universo de sensações íntimas, é deslumbrante em seu papel imagético, fazendo da obra de Airton Souza um livro aberto para o espaço do imaginário, este que requer a importância do ficcional, embora a realidade cruel, angustiante e trágica dos garimpeiros, em que eles vivem os vários desmoronamentos de terra, que os matam, e que o insaciável sádico marechal com seus bate-paus terríveis impõem o poder do mando e do controle dos sonhos e dos imaginários mais fecundos, fazendo dos garimpeiros meras peças do jogo político zombeteiro deles, pois como o marechal dizia: “Aqui eu é que sou a pátria”. O tema religioso também se faz presente, entre o sagrado e o profano, pois Manel tem o pudor de não se benzer após ter relações sexuais com Zuza. E os nomes de rezas, santos, deus, são escritos com as iniciais minúsculas, dando essa ideia de mescla entre o religioso e o erótico, tanto que um dos personagens, o padre Ezequiel, após um sonho erótico, em que ele ejacula, deixa a batina pelo sonho de bamburrar, ou seja, encontrar ouro. E ele vive um dilema, entre o sagrado e o profano. Tanto que numa cena bastante sexual e explícita com uma prostituta, ele imagina cenas de Sodoma, com a mulher de Ló, além de outras imagens que misturam o religioso e o erótico.
Zuza também vive seus dilemas, assim como outros personagens, através dos sonhos e pesadelos, elementos recorrentes em sua narrativa, revelando e ocultando a dança dos gestos, silêncios e palavras. Toda vez que Zuza passa por uma situação-limite, de muito sofrimento e dor, lembra-se de sua vó e o gosto dela pelo jogo do bicho, assim como Manel se lembra de sua esposa e filhos de Trizidela, pensando em voltar para o lar tradicional, só após bamburrar, é o que ele sonha. Mas pensa em seu homem, Zuza, no garimpo. O espaço do interior do simples barraco é o espaço da linguagem, em que eles podem falar abertamente, mas sempre na surdina, pois as paredes têm ouvidos. Lá fora, é o ambiente do silenciamento, em que qualquer coisa que escape à dança macabra do marechal junto com os bate-paus, que dão castigos, aqueles que pronunciarem algo de desafiador ou praticarem atos que desestabeleçam aquele local triste e desolador. Um dos garimpeiros rouba produtos da cobal e é violentamente castigado com seu corpo mordido por formigas, estranha ironia, pois “os formigas” é que faziam o trabalho mais pesado, levar os sacos de melechete pelas escadas adeus-mamãe a fim de encontrarem ouro para enriquecerem.
Terra e personagem
A terra daquele local deixava o gosto áspero e azedo na língua. E a simbiose terra/personagem é outra característica da obra de Airton Souza que trata as outras personagens através de certo naturalismo, igualando-os pelo mesmo sonho de bamburrar, ou seja, o meio interagindo com o ser, como podemos ver em Os sertões, de Euclides da Cunha. Dessa forma, temos no romance de Airton Souza duas coreografias, o movimento do coletivo, numa grande massa que se assemelha, e os outros personagens, como indivíduos, como Manel, Zuza, Ezequiel e Joca, que aparece rapidamente. Os outros personagens não são nomeados, como os outros garimpeiros, as prostitutas, o marechal e os bate-paus. A influência da região no corpo e nas emoções das personagens, é notável: “A aridez da terra amarelada da cava enchia de amargura qualquer homem”. Mas não morria neles a origem, o local onde tinham vivido. Assim, corpo físico e corpo geográfico margeiam a coreografia das influências, em que um retroage com o outro. O corpo se modifica e o pensamento também. As unhas sujas, duras e ásperas pela cava.
Zuza, proibido de garimpar, ir à cava, deixa seu homem do lado de fora e Manel não é fiel a ele, pois dança no ritmo dos prostíbulos e quando brocha no meio de uma transa, pensa que é a calça dele feita com a batina do padre, que produz isso nele, o que o deixa com raiva e envergonhado. Esse movimento coreográfico no romance, em que os gestos têm sua grande importância, perfaz a estética da ação. Vemos isso na cena em que o padre Ezequiel vê na sua igreja apenas seis garimpeiros, desacreditando da fé e o levando ao garimpo, por essa desilusão, que o faz ter o sonho erótico. Os gestos, palavras e silenciamentos que percebemos durante a missa nos fazem ver seu conflito mais profundo. As sensações inquietantes no corpo do padre provocam a dança oracular das metáforas e imagens poéticas que permeiam todo o livro.
A coreografia do garimpar, assim como do agir, sentir, pensar, erotizar, se constrói pela atmosfera incessante, num moto-contínuo, no livro de Airton Souza. Como disse Nietzsche: “É preciso ter o caos dentro de si para gerar uma estrela dançante”. Encontramos em Outono de carne estranha uma poesia em movimento. E esses gestos, silêncios e palavras são uma forma de liberdade, uma resistência, um caos frente ao status quo, a ordem estabelecida. O romance de Airton fala também da solidão, apesar da presença do outro, da carne, que produz um estranhamento naqueles que ditam a moral e os bons costumes. E a violência é o único caminho impossível para o amor. Manel e Zuza revivem o preconceito na pele, vivendo essa paixão bandida. O amor é o garimpo do grito dos silenciados, mas que não se perde na crueldade, mas ganha força pela linguagem gestual de uma coreografia poética que requer grande fôlego.