Coragem repentina e autoengano

"A cortesia da casa", romance de estreia de Marta Barcellos, traz protagonista rica que deseja fugir da superficialidade
Marta Barcellos, autora de “A cortesia da casa” Foto: Beto Campos
01/10/2024

Por vezes, a representação de humanos na literatura passa longe da verossimilhança. Há uma insistência em limitar personagens a pensamentos, falas e ações, como se as pessoas não tivessem hobbies, manias e vícios de linguagem ou não assistissem a filmes ou preferissem um gênero específico de música a outro.

A tentativa de demonstrar a complexidade de personagens por meio de seus pensamentos — ainda que os mais profundos — é insuficiente diante de tudo aquilo que permeia o dia a dia de uma pessoa.

Em romances de estreia, essas subjetividades muitas vezes são esquecidas e dão lugar a tentativas desesperadas de apresentar personagens que refletem sobre grandes temas da humanidade durante boa parte do dia, mesmo às dez da manhã de uma segunda-feira ensolarada.

Esse, no entanto, está longe de ser o caso de A cortesia da casa, de Marta Barcellos. Em seu romance de estreia, a autora apresenta Denise, uma mulher de meia-idade, durante duas temporadas no Montana, um spa requintado, que oferece atividades como hidroginástica, meditação, pilates, caminhadas ecológicas, massagens, além de acompanhamento com médicos, nutricionistas e fisioterapeutas.

A narrativa é construída de forma não linear, ao intercalar as duas estadias no spa, além de outros acontecimentos na vida da protagonista.

Nos primeiros capítulos, é construída uma atmosfera de superficialidade, em meio a paisagens, calorias, relatos de viagens e uma competição velada para descobrir quem é o mais bem-sucedido da turma.

Pouco a pouco, no entanto, Denise passa a ser desafiada — quase sempre por ela mesma — a sair da superficialidade. E há aqui um interessante conflito: a protagonista quer e, ao mesmo tempo, não quer deixar esse local de conforto. E o lugar em questão nem é o Montana Spa, mas sim o estilo de vida que se apega à comodidade e rejeita, de todas as formas, tudo o que é profundo e desconhecido.

É muito fácil para a protagonista permanecer onde está há tanto tempo, em meio a privilégios, conversas rasas, hierarquias sociais e a paz de espírito proporcionada pelos atos de filantropia. Por isso, Denise, a princípio, se mostra tão pragmática e cheia de convicções. Tem suas sentenças e seus discursos pré-fabricados e na ponta da língua.

Não à toa, se surpreende quando se depara com suas contradições. Há desejos reprimidos, medo de julgamento e uma vontade de ir além. Tudo isso bem misturado. Num primeiro momento, tenta ignorar. Finge que não é com ela, mas finge mal, então tudo volta, de novo e de novo.

A partir daí a personagem assume muitos papéis: é vítima, cúmplice, jurada e juíza. É alguém que precisa explicar cada ato e corresponder a todas as expectativas, mesmo as mais absurdas. Aprendeu isso não apenas por conta de sua classe social, mas, sobretudo, por ser mulher. Como resultado, carrega enorme culpa pelo fim do casamento e é superprotetora com o filho único, um jovem que ainda é criança aos olhos da mãe.

Esses personagens — Vicente, o ex-marido, e Bruno, o filho — estão entre os poucos que realmente se fazem presentes ao longo da narrativa. Por mais que as relações sociais sejam de grande importância para os ricos, no fundo elas não ganham profundidade. A autora demonstrou isso muito bem ao apresentar personagens com pouco a dizer, em rápidas participações, com destaque para as cenas e os diálogos marcados pela ironia.

Além de Vicente e Bruno, quem aparece bastante é Lena, a melhor amiga de Denise e uma das personagens mais interessantes de toda a trama. É ela quem acompanha a protagonista num período difícil, mas também é ela a responsável por trair a amiga num momento bastante divertido do romance.

Conflitos
Em relação à construção da narrativa, a opção pela não linearidade contribui para provocar certa angústia: afinal de contas, Denise conseguirá se libertar desse papel que tem interpretado há tanto tempo? Agora que percebeu que falta algo de profundo em sua vida, ela se afastará do estilo de vida burguês? Ao se dar conta de que não é feliz, tentará alcançar a felicidade ou simplesmente fingirá que não é triste?

Todas essas questões permanecem até as últimas páginas. Denise se engana e se questiona em proporções idênticas. Alimenta suas contradições da mesma forma que insiste em encontrar uma fórmula pronta para lidar com tudo que sente: a vontade de recomeçar, a saudade do filho, o anseio por relações mais profundas, a insegurança causada pela recente demissão e a nostalgia diante das lembranças do ex-marido. Denise quer ter coragem, mas sabe que isso exige sacrifícios. Valeria a pena?

Caos e calmaria
Para além de todas as questões abordadas, A cortesia da casa chama a atenção por apresentar uma abordagem bastante inusitada em muitos sentidos, a começar por uma protagonista que é burguesa e, a princípio, bastante vazia.

Essas características podem até causar um estranhamento inicial — especialmente àqueles leitores acostumados a protagonistas progressistas —, mas essa sensação desaparece já nas primeiras páginas. Denise é instigante e convence enquanto protagonista.

Mas há uma aposta ainda mais ousada feita pela autora: investir em um ritmo “lento”, em que os acontecimentos banais guiam boa parte da narrativa. A escolha pode até dividir os leitores, mas faz todo o sentido dentro da trama. Preocupar-se em escolher as atividades do dia num spa ou revoltar-se contra uma mulher que prefere ser chamada de presidenta retrata bem as prioridades das classes dominantes.

Para quem vive em meio à correria, o romance pode até parecer exageradamente contemplativo, mas acredito que o que acontece é justamente o oposto: Marta Barcellos insere, na rotina entediante de um spa, uma mulher que pode explodir a qualquer momento. Há um descontentamento, um turbilhão de pensamentos e muitos conflitos internos.

Tudo isso é acentuado por uma fina ironia e por pistas que até podem indicar os motivos por trás desse colapso iminente, mas que jamais entregam respostas fáceis ou inquestionáveis. Não por acaso, A cortesia da casa é um livro para se divertir e se indignar ao mesmo tempo.

A cortesia da casa
Marta Barcellos
Record
160 págs.
Marta Barcellos
É escritora e jornalista, autora do livro de contos Antes que seque (2015), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e do Prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional, além de finalista do Prêmio Rio de Literatura e semifinalista do Oceanos. Carioca, é formada em jornalismo pela UFRJ e mestre em Literatura pela PUC-Rio. A cortesia da casa é o seu primeiro romance.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

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