Coragem contra o silêncio

"Coração sem medo", de Itamar Vieira Junior, combina denúncia social e suspense para narrar a saga de uma mãe em busca do filho desaparecido
Itamar Vieira Junior, autor de “Coração sem medo”
01/12/2025

Na mitologia grega, a história de Deméter representa, a um só tempo, a força e a vulnerabilidade da maternidade. Deusa altiva da agricultura e da colheita, seus dias se tornam uma saga angustiante quando sua filha Perséfone é raptada por Hades, deus do submundo. Nesse período de desespero e tristeza, Deméter negligencia seus deveres, fazendo com que a terra fique infértil, as plantações morram e a fome se espalhe pelo mundo. Zeus, então, intervém contra o caos, ordenando que Hades devolva Perséfone. Acontece que a jovem havia se alimentado de sementes que a ligavam para sempre ao reino oculto. Assim, fica decidido que, metade do ano, ela passaria na superfície com a mãe, e, na outra metade, no submundo com seu raptor.

Feitas algumas adaptações, essa é uma possibilidade de leitura de Coração sem medo, terceiro romance de Itamar Vieira Junior. Outra — essa, certamente, mais uterina — é a via crucis de Edméia da Silva Euzébio, cujo filho Luiz Henrique da Silva Euzébio desapareceu aos 16 anos. Em julho de 1990, o adolescente passava o fim de semana, na companhia de outros dez amigos, num sítio em Magé, na Baixada Fluminense, quando o local foi invadido por homens que se apresentaram como policiais. Os jovens foram levados e, embora o veículo em que estavam tenha sido encontrado carbonizado, seus corpos nunca foram localizados. Na busca incansável pelo paradeiro do filho, Edméia juntou-se a outros familiares e formou o Mães de Acari, em referência à comunidade no Rio de Janeiro, onde originalmente moravam. O grupo levou o luto e a luta por justiça a comissões internacionais de direitos humanos, no entanto, o esforço pela identificação dos culpados terminou em impunidade e, no caso de Edméia, tragédia.

Rita Preta, protagonista de Coração sem medo, tem um tanto de Deméter em si, de Edméia, de incontáveis mulheres marginalizadas, operárias, marcadas na carne pela desigualdade social, castigadas pelo braço punitivo do Estado que as condena a um submundo sem um deus atento para libertá-las. Numa periferia de Salvador, ela cuida sozinha de três filhos, bancando o papel de chefe de família como operadora de caixa num supermercado. Sua diligência maternal, no entanto, está longe de ser santificada. Em casa, sofre acusações dos filhos de negligenciá-los em prol de prazeres vadios, para “sair com uns e outros”. Fátima, a vizinha e amiga, dá a cobertura necessária para esses encontros falidos, especialmente com Jorge, um caminhoneiro para quem serve de refúgio num relacionamento extraconjugal.

Os embates mais acalorados por conta dessa conduta se dão com Cid, o filho mais velho e rebelde. Rita Preta teme que o adolescente se seduza pela delinquência, por cabular aula e iniciar um namoro que ela vê com olhos suspeitos. Um dia após uma nova briga, Cid desaparece. Em plena luz do dia, mas — a princípio —ninguém sabe de nada. Inicia-se, assim, uma jornada aflitiva por respostas em hospitais, IML e delegacias, onde é desrespeitada em seus direitos básicos, como registrar um boletim de ocorrência, por ser mulher preta e pobre. Até que surgem os primeiros rumores, a indicação do que teria acontecido. Uma investigação arriscada, que naturalmente teria consequências violentas, mas a obstinação de uma mãe contra o silêncio é a coragem de quem vai sempre em frente sem considerar se há caminho de volta.

Mulheres marcantes
Mais uma vez, Itamar Vieira Junior demonstra habilidade para construir personagens femininas marcantes, em seus aspectos psicológicos e espectro social, acertando em não blindar sua protagonista de falhas, de assumir condutas sujeitas ao juízo moral. Seus desvios decorrem de inseguranças e decisões empreendidas em seu calvário, mas também de ecos de traumas do passado no campo, da relação conturbada com a avó Carmelita que validou sua saída de casa, aos 12 anos, para trabalhar de empregada na cidade. Embora majoritariamente urbano, o romance contém capítulos menores, espécies de interregnos, que dão conta do território da memória, no qual a menina Rita faz as vezes de guardiã de histórias de mulheres forjadas por perdas, por conflitos do direito à terra, pela culpa latente, como ela própria carrega em decorrência de um acidente fatal. São vozes que vêm e vão no subterrâneo do texto, conectando o agora e o depois, os laços familiares que se tecem dentro do universo literário construído pelo autor.

Aliás, se Torto arado é um livro essencialmente terroso e Salvar o fogo faz do lume seu elemento simbólico, a metáfora de Coração sem medo é a água. A correnteza da chuva, na abertura do livro, que suscita um fluxo de recordações em Rita Preta, o rio que atravessa sua infância, a água que purifica o corpo, que apaga os vestígios de sangue no asfalto, que arrasta casas na fúria das enchentes nas comunidades. Se todo camburão tem um pouco de navio negreiro, como diz a canção do Marcelo Yuka, muitos escravos morriam nos porões inundados das embarcações que atravessavam mares bravios rumo às colônias. Itamar Vieira Junior denuncia que esse descarte de corpos segue efetivo no modo de agir das instituições públicas doutrinadas pela ditadura civil-militar, na política de tortura, nos grupos de extermínio, nas abordagens policiais que, no contexto da desigualdade, enxerga todo jovem negro como igual, perpetrando o racismo estrutural que sequestra, espanca e asfixia, feito água em excesso. “Para as mães de periferia, a ditadura nunca acabou. Vocês continuam a sumir com nossos filhos”, brada Rita Preta para os seus algozes, ressoando Edméia.

Depois de cinco livros publicados, não é novidade que o autor recorre a uma chave pedagógica para incorporar, aos seus enredos da ficção, reflexões sobre resistência, liberdade e opressão aos marginalizados. Nesse novo romance, contudo, há a adesão de um componente que funciona muito bem: o artifício do suspense. Nos movimentos da protagonista de questionar, de conferir uma informação, de vagar por um labirinto de pistas falsas e ameaças, o leitor é tragado para um clima de tensão, uma expectativa angustiante dos acontecimentos que virão a seguir. A escrita se desenvolve sem pressa, articulando o espaço dramático com regressões e pontos de virada que caracterizam o mistério, mas, como de costume, mantendo o poder de lucidez que seus personagens sabem extrair dos apuros que moldam seus relatos amargos, a imponderável feição estética de iluminar com certa beleza a dureza da existência aguerrida.

Nas páginas finais, a voz ativa muda para uma narração em segunda pessoa, sendo conduzida então por Cainho, o filho do meio de Rita Preta. Na distância do tempo, o novo narrador se traduz no alter ego do autor, empreendendo um exercício de metalinguagem no qual, diferente do que fez em Salvar o fogo, debruça-se sobre o próprio conteúdo artístico, entendendo que, ao falar de si mesma, a sua literatura dialoga com o mundo exterior, e não ao contrário. Tocante, sem ser autoindulgente, essa é uma das melhores passagens de sua bibliografia.

Ao saber que só teria a companhia da filha na metade do ano, Deméter fez desse tempo ensolarado e fértil, enquanto, durante sua ausência, o mundo passaria por um período de frio e escassez. Segundo a mitologia grega, assim foram criadas as estações do ano. Com Coração sem medo, Itamar Vieira Junior põe fim à chamada Trilogia da terra e se coloca diante de um hiato de possibilidades para pensar na abertura de um novo tempo de imaginação, do nada inaugural, de ideias para o início de um processo de composição que una os compromissos teóricos do autor ao modo sensível de dar forma à sua prática artística. O romance recente acena para um repertório mais vasto, porém há o conforto do legado. Independentemente do que decidir, ficará para sempre seu posto elevado na literatura brasileira.

Coração sem medo
Itamar Vieira Junior
Todavia
336 págs.
Itamar Vieira Junior
É vencedor dos prêmios LeYa, Oceanos e Montluc, além de ter conquistado duas vezes o Prêmio Jabuti e ser o primeiro brasileiro a chegar à final do International Booker Prize. Nascido em Salvador (BA), em 1979, é doutor em estudos étnicos e africanos (UFBA) e autor da coletânea de contos Doramar ou a Odisseia, do infantil Chupim, e dos romances Torto arado e Salvar o fogo.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

Rascunho