Cor-de-rosa-choque

Em "Elas por elas", Margarida Patriota constrói um conjunto irregular de contos, em que o sarcasmo tem presença constante
Margarida Patriota, autora de “Elas por elas”
01/05/2008

Os escritores e suas pequenas idiossincrasias. Modesto Carone, por exemplo, parece nutrir um peculiar desapreço pela vírgula, esse tão inofensivo sinal de pontuação que o autor do excelente Por trás dos vidros emprega com parcimônia espartana. O que acaba acontecendo, ao contrário do que talvez seja a intenção, é a vírgula ganhar um inusitado destaque sempre que ela dá o ar de sua graça. Há também autores que levam demasiado a sério o preceito de fugir dos notórios cacoetes que atormentam a vida de quem escreve, fazendo verdadeiras acrobacias sintáticas para se livrar de um “que” ou de um gerúndio. A obstinação exagerada pode bem se transformar em novo cacoete. Margarida Patriota, por seu turno, demonstra ter uma certa implicância com a classe dos artigos em geral e, muito em especial, com a dos indefinidos. Em certa medida, ela tem toda razão: um escritor que se preze vai sempre lutar para se desfazer do supérfluo, e isto inclui as imprecisões, no mais das vezes desnecessárias ou mesmo deletérias ao bom texto (como no caso do “um” que precede o “escritor” aí em cima). Ocorre que, em muitas situações, um artigo de uso opcional é importante ao ritmo da frase. Sua falta — bem como a de outros elementos menores e à primeira vista descartáveis — pode comprometer a fluência e, por conseguinte, a compreensão imediata. E, convenhamos, não há nada mais aborrecido do que interromper o andamento da leitura para desvendar o sentido de uma frase que não foi de pronto captado.

Autora de mais de duas dezenas de livros, a maioria destinada ao público infanto-juvenil, Margarida Patriota lança agora Elas por elas, coletânea que reúne catorze contos curtos unidos pela temática indicada no título. A edição da 7Letras é caprichada. Com produção gráfica de Christiane Abbade, a capa traz a fotografia de uma blusa feminina cortada na altura do colo, em tom coral pálido, cujo pregueado nada original e muito sem graça a despe de qualquer sensualidade. Essa imagem traduz à perfeição a proposta: um variado elenco de mulheres absolutamente comuns protagoniza histórias calcadas nos pequenos absurdos do cotidiano, num cenário em que os poucos homens são meros coadjuvantes — e, na melhor das hipóteses, retratados como vilões da tão manjada guerra dos sexos. Importa aqui a alma feminil, seus conflitos e angústias, vaidades e sofrimentos, consumismos e carências, um universo multifacetado cujo desenho também já virou estereótipo de um segmento que hoje quer se desfazer a todo custo do rótulo de “literatura feminina”. O que dá consistência e seriedade ao livro, afastando-o desse reducionismo, é o humor afiado e muito ágil que perpassa todos os contos — e que responde por sua maior virtude.

Distante do zombeteiro
Dosar o humor não é trabalho fácil, especialmente numa estrutura que já tem desde a origem um pé fincado no caricato. Patriota arrisca-se um pouco além da fina ironia da qual a boa literatura não prescinde, mas ainda assim fica a quilômetros de distância do zombeteiro. Sarcasmo talvez seja uma definição mais precisa para seu tipo de humor. Também chama a atenção o vigor da prosa, em grande parte devido à concisão e à escolha de um léxico forte e contemporâneo. Entretanto, há uma visível preocupação em elevar a linguagem a um registro mais literário, e aí o discurso decai em naturalidade.

Para bem exemplificar as já mencionadas qualidades e também os eventuais problemas, seguem dois trechos extraídos do mesmo conto, Militante, que traz a história de Inês, a jovem idealista que se envolve com uma Associação Campo Justo, algo aparentado com o Movimento dos Sem Terra:

Mãe e pai não deram importância, muito menos a recriminaram. Viram com bons olhos o mergulho da filha nos dilemas nacionais, em sair tardio de adolescência solitária. A menina andava tão sem pique, tão vale-a-pena-ver-de-novo aos vinte e um anos, difícil crer que aos vinte e dois estaria a pleno vapor, substituindo o marasmo pela ação extremada.

Sem dúvida, uma bela síntese. Com poucas palavras, Patriota descreve de forma bastante precisa um quadro familiar que se reveste de alguma complexidade. O humor aparece na brilhante analogia do ânimo da personagem com um programa de reprise de novelas bem conhecido da tevê brasileira. Por outro lado, a derrapagem ocorre já no segundo parágrafo:

Inês lhe trava o braço, adentrando apartamento, contando que se filiou à tal ONG. Aquela, cujas metas e objetivos coincide com os seus, titititi, discurso febril que não abre fresta a que Vera obtempere. É só questão de alojar por uma noite os companheiros de luta vindos de longe, faltos de tusta e abrigo.

Como se pode ver, a construção fica titubeante entre o divertido e o empolado, resultando num texto sem personalidade. Observe-se, em ambos os excertos, a supressão de artigos tão característica de Patriota e o efeito que isso produz. Aqui, obviamente, não há prejuízo algum à compreensão. Ainda assim, trata-se de um exotismo sem outra função a não ser a tentativa de parecer diferente.

O conjunto, por sua vez, apresenta a disparidade qualitativa típica da maioria das coletâneas. Não há no volume indicação sobre a data de produção de cada um dos contos, o que permitiria talvez avaliá-los sob o prisma de uma evolução. Sempre que se visualiza a justificativa, tende-se a minimizar conseqüências. Há contos bem realizados, como Hora de falar, que abre o volume e traz o longo monólogo da paciente numa sessão de psicoterapia. A solução não é muito original, mas o texto, concentrado num único parágrafo que se estende por várias páginas, diverte por retratar a verborragia da personagem e a teia de conflitos familiares em que está metida. Jade traz a história de uma boneca de pano que, confeccionada para ser vendida na praia, ganha a simpatia da família mas acaba nas mãos de um bandido, que por ela está disposto a pagar um valor exorbitante. Digno de nota também é Acidente de percurso, em que o casal às voltas com uma pane no carro acaba se envolvendo numa triste história de miséria e morte. Jade e Acidente de percurso têm inclusive os melhores desfechos dentre todos. É necessário referir ainda Duas Ritas, uma trama engenhosa que lida com a ambigüidade, unindo duas irmãs e a misteriosa aparição com uma delas de uma significativa soma em dinheiro.

No grupo dos perfeitamente dispensáveis estão Sonho de glória e Queda à toa, dois exemplos em que a racionalidade vem corromper a fantasia. No plano da ficção, uma história não precisa necessariamente ser racional para fazer sentido — mas esta lição vetusta carece às vezes de ser repetida. O entrecho absurdo que termina no despertar do protagonista, por exemplo, é um clichê literário que só mesmo um gênio da palavra poderá um dia resgatar e fazer parecer coisa nova. Até prova em contrário, convém portanto não arriscar.

A despeito de suas imperfeições, trata-se de um trabalho sério, bem intencionado e que merece atenção. Quanto mais não seja, para comprovar uma última consideração deste resenhista: Margarida Patriota tem muito mais a mostrar do que conseguiu com seu Elas por elas; basta querer.

Elas por elas
Margarida Patriota
7Letras
158 págs.
Margarida Patriota
Carioca e mora em Brasília, de onde comanda há dez anos o programa Autores e livros da Rádio Senado. Filha de diplomata, morou na Suíça, Estados Unidos, América Central e Canadá antes de se fixar de volta no Brasil. Mestre e doutora em literatura francesa, leciona no Departamento de Letras da Universidade de Brasília. Tem 25 livros publicados e vários prêmios literários em seu currículo.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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