Copidesque de Sheldon e Robbins

Em “Escuridão na clareira”, Miguel Reale Júnior exagera no lugar-comum, nas frases feitas e nos diálogos vazios
Miguel Reale Júnior, autor de “Escuridão na clareira”
01/03/2007

Há uma imensa dificuldade — senão uma real impossibilidade — em listar os equívocos literários, mas certamente o mais comum é reforçar o mito da facilidade em trabalhar a chamada literatura de entretenimento. E claro que neste caldeirão a literatura policial sofre todos os pecados dos escritores medíocres. O problema começa em achar que um enredo correto descrito com muita ação e pitadas de sexos e corrupção pode resultar num livro de qualidade. Sidney Sheldon cansou os leitores exatamente mostrando as inverdades do mito, embora, a rigor, não possa ser chamado de autor policial ou mesmo de escritor.

Nascido, como reza os preceitos canônicos, do gênio de Edgar Allan Poe, o gênero policial — um bom policial, ressalve-se — está muito além da mistura canhestra de ação, sexo e sangue. Isso se casa melhor com o que poderíamos chamar de literatura do grotesco. A literatura policial é um jogo, um desafio para a inteligência do leitor e, claro, a sagacidade do autor. Mesmo autores consagradíssimos, como Agatha Christie, não chegaram a entender a plenitude do gênero. A dama inglesa tinha tramas tão óbvias que o leitor um pouco mais atento já sabia onde tudo ia chegar ali pelo meio da trama. Mesmo assim, verdade seja dita, cumpriu seu papel ao divertir o leitor e, por fim, fazer uma literatura de entretenimento, mesmo longe dos sonhos de Poe.

Enfim, sem querer inventar teorias, o romance policial, como concebido por seu criador, parte de uma ação tensa que leva aos limites da alma. Seu interesse é desvendar as fronteiras do livre arbítrio e ir até onde pode chegar o homem na trilha de suas ambições. Taí O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, atestando esses preceitos.

A incursão do jurista Miguel Reale Júnior pelo romance policial, com a publicação de Escuridão na clareira, definitivamente não chega nem perto do que se poderia esperar de um texto bem construído. O autor exagera no lugar-comum, nas frases feitas e nos diálogos vazios, mas se intimida diante da trama, do aprofundamento psicológico de seus personagens. E, bem à Agatha Christie, no capítulo final destrincha todo o rosário de informações que levou o delegado Rogério Arzibu à solução do crime.

Embora se trate de um texto curto, com 127 páginas, que se lê em pouco mais de duas horas, o leitor atento chega ao capítulo final apenas para confirmar suas deduções. Nada mais o prende nesse rosário de clichês que começa com o mais óbvio deles: o corpo de um desconhecido abandonado num lugar ermo.

A partir daí tudo mais decorre.

Os personagens são chapados, desenhados com tintas pálidas e bem estereotipadas. O investigador Rogério Arzibu é um homem sério, inteligente e que opta trabalhar em uma pacata cidade do interior em busca de paz ao lado de sua amada, a bela, sensual e ciumenta Lygia. Seu chefe, o Dr. Timóteo, é um delegado padrão. Orgulhoso, adora deixar que os outros trabalhem, desde que ele pose para a imprensa. Seu fiel escudeiro, Clésio, é silencioso, atento e está sempre a postos para atender o herói. Em torno desse herói circulam ainda figuras como o italiano passional — há italiano sem paixão? — Moccia.

Do lado oposto, dos supostos bandidos, o cardápio não muda tanto. Há discursos em defesa da tradição, família, pátria e monarquia. Há uma mulher fatal, dominadora e rígida em suas crenças. Há homens fracos, dominados pelas ondas naturais da vida. Há um fazendeiro espontâneo, falastrão e envergonhado com a opção sexual do filho. E, claro, um assassino racional, mas sempre incapaz de esconder todas as pistas, de praticar o crime perfeito, de vencer a inteligência do mocinho.

Toda trama se passa em alguns dias de julho de 1992, exatamente o momento histórico em que começa a discussão em torno do impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. E como não poderia deixar de ser, um dos bandidos está envolvido com as picaretagens do tesoureiro de campanha do ex-presidente, Paulo César Farias, o famigerado PC — como diriam os repórteres policiais lidos por Miguel Reale.

No livro tudo vem costurado com cenas de amor que já enjoaram até o mais fanático telespectador da novela dos oito. E cenas que não se realizam e se perdem na timidez e na competência de se descrever com lirismo uma paixão. Talvez com medo de cair na pieguice, Miguel Real preferiu calar. “Sua mulher já havia chegado. Casara-se pela segunda vez, e agora era feliz. Agarrou Lygia, que saía do quarto de banho tomado, já vestida para jantar. Beijou-a calorosamente.” Comovente.

No final da leitura resta a sensação de que Escuridão na clareira é um texto copidescado de tudo que escreveram Sydney Sheldon e Harold Hobbins — embora esses tenham sido bem mais ousados. Miguel Reale deixa tudo pela metade e por isso cansa bem menos o leitor.

Escuridão na clareira
Miguel Reale Júnior
ARX
127 págs.
Miguel Reale Júnior
Professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Presidiu a Associação dos Advogados de São Paulo e é ex-membro do Conselho Federal da OAB. Em suas atividades político-institucionais, foi presidente da Comissão de Reconhecimento de Mortos e Desaparecidos durante o Regime Militar e ministro de Estado da Justiça em 2002. É autor de Dez mulheres e Avessos.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho