O romance Aldeia do silêncio, de Frei Betto, é ambicioso. Digno dos grandes pensadores/teólogos que escreveram sobre moral, ética e filosofia, como Tomás de Aquino e Santo Agostinho, o autor conta a história de Nemo (em latim, “ninguém”), homem que passou a vida em uma aldeia esquecida do mundo, ao lado do avô, da mãe, de um cachorro e um urubu. É durante sua internação em um hospital — durante 17 anos, até morrer — que o personagem aprende a escrever, e resolve contar sua vida na aldeia, em contraste com o que vê no mundo urbano.
É bem verdade que é preciso abstrair a questão narrativa. A proposição da origem do personagem principal é um tanto questionável: o refinamento de seu pensamento filosófico e da construção narrativa não condizem com sua origem rude. E, mais ainda, se é verdade que o protagonista busca o silêncio, inclusive o interior, não é isso o que vemos na intensa articulação de palavras.
Mas esse é um detalhe menor ante a magnitude da obra. Se o mote do livro é discutível, não o é seu conteúdo. Frei Betto alça voo com as palavras em reflexões preciosas, poéticas, necessárias e precisas. Seu Nemo é apenas um canal para dar voz a profundas questões filosóficas, éticas e existenciais, atualizadas com o mundo pós-smartphones, pós-Facebook e pós-Whatsapp.
Aliás, o próprio Frei Betto, em bate-papo com o jornalista Claudiney Ferreira, revelou que a origem do livro foi exatamente essa. Ao observar cinco jovens em uma mesa, cada um com seu celular, em silêncio, começou a refletir sobre o mundo atual e a própria relação do homem com o tempo.
Prisioneiro da palavra
Após 56 obras, traduzidas para 24 idiomas, além de participações em antologias e coletâneas e dois prêmios Jabuti, Frei Betto ainda guarda a capacidade de observação e de crítica, com olhos renovados, do futuro à espreita.
O autor nota com propriedade a mudança no comportamento humano e nos alerta: na sociedade do espetáculo, perdemos o senso entre o privado e o público, e também entre o interior e o exterior. Em lugares públicos, nos refugiamos na tela de celulares; em um elevador, zapeamos o smartphone para evitar o constrangimento de cumprimentar desconhecidos. No espaço privado, gravamos vídeos e os compartilhamos com o mundo inteiro, e mesmo um almoço familiar se torna digno de fotos postadas na internet, como um simples passeio na praia de dois namorados pode se tornar um ensaio fotográfico pré-núpcias.
O convite de Nemo é caminhar exatamente na via oposta:
Agora sei, fora da aldeia, o quanto as pessoas são movidas pela ânsia de fazer, fazer, fazer. Lá, o melhor fazer era não fazer nada. Deixar-se estar, apenas ser. Ênstase — livre das sutilezas da mente e dos fantasmas do espírito. Mergulho no vácuo interior. (…) O silêncio é todo ele feito de nuanças. Não há uma única forma de silêncio. Há múltiplas.
O convite de Frei Betto é para refletir sobre tudo o que escrevemos e falamos, hoje mais do que nunca e em inúmeras instâncias:
Posso apagar o que escrevo. O que falo, jamais. Falar é como derramar café sobre o lençol. Não há como anular o incidente. A palavra proferida incide irreversivelmente sobre a realidade. Impossível silenciar o que foi dito. Posso tentar corrigir, mudar de opinião, desdizer-me. Mas para isso terei de utilizar mais palavras (…)
Mais do que nunca, hoje somos prisioneiros das palavras ditas em redes sociais, em entrevistas que não se deixam esquecer. Tal é, aliás, a nova vertente que surge no Direito pós-midiático: o direito ao esquecimento, de que seja esquecido (pela mídia, pelas redes sociais) algo dito ou feito, ainda que seja um fato verídico. Até criminosos possuem o direito de que seus crimes não tenham mais efeito, enquanto usuários do Facebook não se dão conta de que têm sua vida inteira catalogada e analisada, eternamente.
Eldorado literário
Voltando ao romance, que tece a própria filosofia do silêncio, Frei Betto traz a riqueza de Guimarães Rosa com a criação de palavras novas, e a delicadeza de Mário Quintana na descrição inocente da beleza das pequenas coisas. Evoca também Manoel de Barros, com sua capacidade de observar a natureza como se fosse uma criança e exaltar o bucolismo como modo de resgatar uma humanidade que se perde cada vez mais no cimento das cidades. São tantas as alusões a cânones da literatura brasileira que a cada parágrafo entrevemos Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto — em um texto exímio e coeso, forte e pungente.
Frei Betto dialoga ainda com livros que impõem o isolamento para o encontro metafísico, como A cabana, seguindo o movimento do protagonista que, em um local ermo e longínquo, cercado de paz e silêncio, tem a oportunidade de encontrar-se consigo mesmo, com suas emoções e com a divindade suprema. Em sua aldeia, Nemo podia ouvir Deus nos extremos do silêncio interior e nos pequenos ruídos da natureza.
Para quem tem o hábito de ler livros sublinhando as melhores frases, é melhor esquecer a lapiseira. Em Aldeia do silêncio, todas as frases são iluminadas: dispensam o destaque de marcações, comentários e hidrocores. São poucos e mágicos os livros em que isso acontece. É mesmo possível, por vezes, ao se voltar à leitura, ter vontade de caminhar algumas folhas para trás, apenas para entrar de novo na aura poética da narrativa, cujas figuras de linguagem são sempre bem colocadas, sem exageros, lugares-comuns ou repetições de frases batidas.
A obra é também rica em pérolas filosóficas: “A aldeia não era propriamente um lugar; era uma ferida aberta no dorso da Terra”, “O vento penteia as árvores na primavera para descabelá-las no outono”, “A vida é feita mais de perguntas que de respostas”, “A realidade é filha da fantasia”, “Não se pode renegar o que se foi. Esta é uma lei absoluta, lei que marca a nossa existência”, “A boca trai coração; os olhos jamais”, “A palavra é dia; o silêncio, noite” — entre tantas outras.
Encontrar a Aldeia do silêncio é como voltar ao Éden, ou a uma espécie de Eldorado literário. Muito embora não possamos permanecer nesses lugares idílicos para sempre, eles de certa forma nos transformam, e assim se tornam, eternamente, parte de nós.