Para Gertrude Stein, nomear um texto como uma peça não é o mesmo que nomear uma peça como uma peça. Porque a leitura do texto é modificada e, ainda que algumas vezes não haja propriamente personagens, falas marcadas por travessão, aspas, didascália alguma, o texto cênico solicita ao leitor a escuta de vozes fragmentárias, frases ditas por algumas vozes cujo lugar de fala em geral nos escapa. Quem fala, o quê, para quem, onde e quando, e por quê, pouco sabemos e pouco podemos saber, a não ser a respeito das possíveis relações — lógicas, casuais — que se estabelecem entre as frases. Como no início de Vozes de mulheres. Peça curta, de 1916: “Vozes de mulheres dão prazer./ O segundo ato é fácil de dirigir. Direção não é no inverno. Aqui o inverno é ensolarado./ Isso surpreende você”.
Pois, após a assertiva que dá a partida à tagarelice da peça, o “segundo ato” já pode ter começado, já que pode referir-se à segunda frase, ou à segunda linha da peça, como se cada fala fosse, nessa peça, um ato. Um ato de fala, talvez. “Five words in a line”, escreve Gertrude Stein em outro passo de sua obra, uma frase discretamente autorreferente. Como esta. Mas, se a hipótese se confirma, de que o “segundo ato” é também a segunda linha da peça, então, ao contrário da primeira linha, difícil (supomos), a segunda é fácil de se “dirigir”, as frases são então encenações de fala. Mas não no inverno! (Informação estranha, desconhecemos a sua motivação.) Até porque “aqui” (onde?) há muito sol durante essa estação. Mas, afinal, o que surpreende “você” nessa sequência: o inverno ensolarado, o segundo ato fácil de dirigir ou a desconexão semântica entre as frases? Ou não se trataria de uma pergunta: “Isso surpreende você?”. Afinal, o único sinal de pontuação que aparece nas peças de Gertrude Stein é o ponto final. E quem exatamente é “você”: o leitor-espectador das frases ou algum personagem?
É curioso que essa dicção das peças de Gertrude Stein testemunha, ao mesmo tempo, a gestação da linguagem e a negação de uma origem para a linguagem. Segundo relata na Autobiografia de Alice B. Toklas, publicada em 1932, a primeira peça que escreveu chamou-se It happened a play (Aconteceu uma peça), título que lembra o de outra peça traduzida em O que você está olhando: “Queria que fosse uma peça. Uma peça”. O que se dramatiza na peça é o seu acontecimento e as intenções (“Queria que fosse…”) de produzi-la. O material explorado — a gestação da linguagem em vozes —, tão caro à literatura do Alto Modernismo, no início do século 20, é, para Gertrude Stein, uma espécie de preservação do frescor da obra, da sua mobilidade semântica contra o estabelecimento clássico do texto, algo como o que afirma na conferência Composição como explicação, na tradução de Andrea Mateus, publicada na revista Modo de usar & Co. 2: “Essa é a razão por que o criador da nova composição nas artes é um fora-da-lei até que seja um clássico, entre eles há menos que um instante e é naturalmente muito ruim muito ruim mesmo para o criador mas também muito ruim mesmo para o apreciador, eles todos realmente apreciariam a criação muito melhor logo após ter sido produzida do que quando já é um clássico”.
Nesse registro “logo após ter sido produzida”, a peça — assim como o poema, a autobiografia, o retrato, a conferência — está apta a formular “uma terceira língua” (segundo Françoise Collin, mencionada por Marjorie Perloff num de seus ensaios dedicados a Stein). A peça registra, assim, como que taquigraficamente, as vozes da linguagem. Não há propriamente substrato psicológico ou social se se deseja reconstituir o sentido das frases steinianas — se houver, é antes porque resultam de um jogo de linguagem. E, por causa disso, são os trechos metalinguísticos os mais esclarecedores para o leitor das peças, como em Toda tarde. Um diálogo (1916): “O que é uma conversação./ Podemos todos cantar./ Vem um grande número de pessoas./ Vem um grande número de pessoas./ Por que os dias passam tão rápido./ Porque somos muito felizes./ Sim é isso./ É isso./ É isso”. É quando vemos, graças à tradução, o quanto é importante para a compreensão do trecho o espaço que diferencia o “Por que” do “Porque”. É quando vemos que a repetição do “É isso” ao final deve corresponder à enunciação de duas vozes distintas, o que altera no mínimo o timbre da frase. É quando vemos, por fim, a concepção da “conversação”, que organiza as peças, como um canto coletivo, um coral, enfim, para o qual se convoca “um grande número de pessoas”.
É este convite ao canto da conversação — a um hino da balbúrdia cotidiana — o que caracteriza a linguagem das peças de Gertrude Stein como uma exploração do nonsense verbal com o qual nos comunicamos sem notar dia a dia. Deslocadas de um contexto definido, as frases parece que perdem o sentido autônomo e em relação às outras frases, acumulando incompreensões e desconexões durante a leitura. E é nesse ponto que é preciso conceber enquanto linguagem o ruído do sentido. Retomando ainda o ensaio de Marjorie Perloff em A escada de Wittgenstein, podemos lembrar um trecho do filósofo estudado, nas Investigações filosóficas, que a crítica norte-americana destaca para ler a obra de Stein: “500. Quando uma frase é dita sem sentido, não é como se o seu sentido é que fosse sem sentido. Mas uma combinação de palavras está sendo excluída da linguagem, retirada de circulação”. Configura-se, portanto, uma tensão entre a linguagem cotidiana tornada nonsense, e a linguagem literária apropriando-se da linguagem cotidiana.
É o que chama a atenção do poeta Augusto de Campos, um dos tradutores de Gertrude Stein para o português, que, em sua anticrítica “gertrude é uma gertrude” (1974), afirmou: “ela é uma chata genial/ a única q pegou o outro lado da questão/ inglês básico mais repetições”. A incorporação do basic english e o procedimento de repetição das frases são a célula do estilo responsável por explorar “o outro lado”: a produção de uma dramaturgia na qual a encenação já ocorre de fato no texto, elaborando uma obra de defesa da autonomia estética da palavra e da língua, ao mesmo tempo em que escapando da grande obra de representação cultural ou nacional graças, nesse caso, ao texto cênico. O que fez Hans-Thies Lehmann, o teórico do teatro pós-dramático, reconhecer que “Gertrude Stein talvez não pensasse no teatro quando escreveu essas peças”, e por isso extrapola o gênero dramático e abre possibilidades cênicas da palavra e do teatro com sua obra.
Seria curioso vislumbrar alguma relação entre as peças de Gertrude Stein e certos poemas mais estruturados pela conversação na obra de Ana Cristina Cesar. Talvez, já pelo título, Conversa de senhoras seja exemplar nesse sentido: “Não preciso nem casar/ Tiro dele tudo o que preciso/ Não saio mais daqui/ Duvido muito/ Esse assunto de mulher já terminou/ O gato comeu e regalou-se/ Ele dança que nem um realejo/ Escritor não existe mais/ Mas também não precisa virar deus”. Sem escritor, e sem deus — o lugar de fala dessa “poesia em vozes” (segundo Flora Süssekind), parece conter não poucas afinidades com o das peças de Stein, pois em ambas a voz do autor explode em fragmentos cujo conjunto parece irrestituível.