Convite à conversação

Peças de Gertrude Stein exploram o nonsense verbal com o qual nos comunicamos
Gertrude Stein, autora de “O que você está olhando”
01/07/2014

Para Gertrude Stein, nomear um texto como uma peça não é o mesmo que nomear uma peça como uma peça. Porque a leitura do texto é modificada e, ainda que algumas vezes não haja propriamente personagens, falas marcadas por travessão, aspas, didascália alguma, o texto cênico solicita ao leitor a escuta de vozes fragmentárias, frases ditas por algumas vozes cujo lugar de fala em geral nos escapa. Quem fala, o quê, para quem, onde e quando, e por quê, pouco sabemos e pouco podemos saber, a não ser a respeito das possíveis relações — lógicas, casuais — que se estabelecem entre as frases. Como no início de Vozes de mulheres. Peça curta, de 1916: “Vozes de mulheres dão prazer./ O segundo ato é fácil de dirigir. Direção não é no inverno. Aqui o inverno é ensolarado./ Isso surpreende você”.

Pois, após a assertiva que dá a partida à tagarelice da peça, o “segundo ato” já pode ter começado, já que pode referir-se à segunda frase, ou à segunda linha da peça, como se cada fala fosse, nessa peça, um ato. Um ato de fala, talvez. “Five words in a line”, escreve Gertrude Stein em outro passo de sua obra, uma frase discretamente autorreferente. Como esta. Mas, se a hipótese se confirma, de que o “segundo ato” é também a segunda linha da peça, então, ao contrário da primeira linha, difícil (supomos), a segunda é fácil de se “dirigir”, as frases são então encenações de fala. Mas não no inverno! (Informação estranha, desconhecemos a sua motivação.) Até porque “aqui” (onde?) há muito sol durante essa estação. Mas, afinal, o que surpreende “você” nessa sequência: o inverno ensolarado, o segundo ato fácil de dirigir ou a desconexão semântica entre as frases? Ou não se trataria de uma pergunta: “Isso surpreende você?”. Afinal, o único sinal de pontuação que aparece nas peças de Gertrude Stein é o ponto final. E quem exatamente é “você”: o leitor-espectador das frases ou algum personagem?

É curioso que essa dicção das peças de Gertrude Stein testemunha, ao mesmo tempo, a gestação da linguagem e a negação de uma origem para a linguagem. Segundo relata na Autobiografia de Alice B. Toklas, publicada em 1932, a primeira peça que escreveu chamou-se It happened a play (Aconteceu uma peça), título que lembra o de outra peça traduzida em O que você está olhando: “Queria que fosse uma peça. Uma peça”. O que se dramatiza na peça é o seu acontecimento e as intenções (“Queria que fosse…”) de produzi-la. O material explorado — a gestação da linguagem em vozes —, tão caro à literatura do Alto Modernismo, no início do século 20, é, para Gertrude Stein, uma espécie de preservação do frescor da obra, da sua mobilidade semântica contra o estabelecimento clássico do texto, algo como o que afirma na conferência Composição como explicação, na tradução de Andrea Mateus, publicada na revista Modo de usar & Co. 2: “Essa é a razão por que o criador da nova composição nas artes é um fora-da-lei até que seja um clássico, entre eles há menos que um instante e é naturalmente muito ruim muito ruim mesmo para o criador mas também muito ruim mesmo para o apreciador, eles todos realmente apreciariam a criação muito melhor logo após ter sido produzida do que quando já é um clássico”.

Nesse registro “logo após ter sido produzida”, a peça — assim como o poema, a autobiografia, o retrato, a conferência — está apta a formular “uma terceira língua” (segundo Françoise Collin, mencionada por Marjorie Perloff num de seus ensaios dedicados a Stein). A peça registra, assim, como que taquigraficamente, as vozes da linguagem. Não há propriamente substrato psicológico ou social se se deseja reconstituir o sentido das frases steinianas — se houver, é antes porque resultam de um jogo de linguagem. E, por causa disso, são os trechos metalinguísticos os mais esclarecedores para o leitor das peças, como em Toda tarde. Um diálogo (1916): “O que é uma conversação./ Podemos todos cantar./ Vem um grande número de pessoas./ Vem um grande número de pessoas./ Por que os dias passam tão rápido./ Porque somos muito felizes./ Sim é isso./ É isso./ É isso”. É quando vemos, graças à tradução, o quanto é importante para a compreensão do trecho o espaço que diferencia o “Por que” do “Porque”. É quando vemos que a repetição do “É isso” ao final deve corresponder à enunciação de duas vozes distintas, o que altera no mínimo o timbre da frase. É quando vemos, por fim, a concepção da “conversação”, que organiza as peças, como um canto coletivo, um coral, enfim, para o qual se convoca “um grande número de pessoas”.

É este convite ao canto da conversação — a um hino da balbúrdia cotidiana — o que caracteriza a linguagem das peças de Gertrude Stein como uma exploração do nonsense verbal com o qual nos comunicamos sem notar dia a dia. Deslocadas de um contexto definido, as frases parece que perdem o sentido autônomo e em relação às outras frases, acumulando incompreensões e desconexões durante a leitura. E é nesse ponto que é preciso conceber enquanto linguagem o ruído do sentido. Retomando ainda o ensaio de Marjorie Perloff em A escada de Wittgenstein, podemos lembrar um trecho do filósofo estudado, nas Investigações filosóficas, que a crítica norte-americana destaca para ler a obra de Stein: “500. Quando uma frase é dita sem sentido, não é como se o seu sentido é que fosse sem sentido. Mas uma combinação de palavras está sendo excluída da linguagem, retirada de circulação”. Configura-se, portanto, uma tensão entre a linguagem cotidiana tornada nonsense, e a linguagem literária apropriando-se da linguagem cotidiana.

É o que chama a atenção do poeta Augusto de Campos, um dos tradutores de Gertrude Stein para o português, que, em sua anticrítica “gertrude é uma gertrude” (1974), afirmou: “ela é uma chata genial/ a única q pegou o outro lado da questão/ inglês básico mais repetições”. A incorporação do basic english e o procedimento de repetição das frases são a célula do estilo responsável por explorar “o outro lado”: a produção de uma dramaturgia na qual a encenação já ocorre de fato no texto, elaborando uma obra de defesa da autonomia estética da palavra e da língua, ao mesmo tempo em que escapando da grande obra de representação cultural ou nacional graças, nesse caso, ao texto cênico. O que fez Hans-Thies Lehmann, o teórico do teatro pós-dramático, reconhecer que “Gertrude Stein talvez não pensasse no teatro quando escreveu essas peças”, e por isso extrapola o gênero dramático e abre possibilidades cênicas da palavra e do teatro com sua obra.

Seria curioso vislumbrar alguma relação entre as peças de Gertrude Stein e certos poemas mais estruturados pela conversação na obra de Ana Cristina Cesar. Talvez, já pelo título, Conversa de senhoras seja exemplar nesse sentido: “Não preciso nem casar/ Tiro dele tudo o que preciso/ Não saio mais daqui/ Duvido muito/ Esse assunto de mulher já terminou/ O gato comeu e regalou-se/ Ele dança que nem um realejo/ Escritor não existe mais/ Mas também não precisa virar deus”. Sem escritor, e sem deus — o lugar de fala dessa “poesia em vozes” (segundo Flora Süssekind), parece conter não poucas afinidades com o das peças de Stein, pois em ambas a voz do autor explode em fragmentos cujo conjunto parece irrestituível.

O que você está olhando
Gertrude Stein
Trad.: Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin
Iluminuras
185 págs.
Gertrude Stein
Nasceu em 1874, nos Estados Unidos, e faleceu em 1946, na França, para onde imigrou no início do século 20. Umas das principais autoras da vanguarda em língua inglesa, suas peças foram publicadas primeiramente em Geography and plays (1922), de onde se traduziram as peças de O que você está olhando.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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