No início de 2007, a revista colombiana Semana publicou uma lista com os 100 melhores romances em língua espanhola dos últimos 25 anos. Oitenta e um iluminados — entre eles, críticos, jornalistas e escritores — se responsabilizaram pelas escolhas que, em casos como esse, sempre correm o risco de ser questionadas. No entanto, esse tipo de pesquisa também pode e deve ser entendida como uma busca por novas vozes literárias e como um estímulo à renovação do gosto do leitor comum e do leitor especializado. E apesar de no topo da lista figurarem os mais que notórios Gabriel García Márquez (O amor nos tempos do cólera) e Mario Vargas Llosa (A festa do bode), a grande surpresa (ou não, se o critério é mesmo qualidade e relevância) nos chega com Roberto Bolaño. Fato que aponta ser o escritor chileno, morto aos 53 anos em 2003, a mais recente canonização das letras latino-americanas. São três livros de Bolaño na lista: Los detectives salvajes e 2666, segundo e terceiro lugares, e Estrella distante, décimo quarto. Os dois últimos ainda inéditos por aqui.
Dentro desse panorama de vozes literárias em evidência e preferências críticas, surgem alguns bons nomes ainda não traduzidos ou até então pouco traduzidos para o mercado editorial brasileiro. Exemplos disso são o argentino César Aira (dono de uma obra prolífica, mas com apenas três ou quatro livros no Brasil), o mexicano Juan Villoro (um dos principais escritores em atividade de seu país), a chilena Diamela Eltit e o colombiano Germán Espinosa (morto no final do ano passado). Contudo, espera-se que essa lista publicada pela Semana desencadeie a busca por parte de algumas de nossas editoras pela publicação de uma boa parcela desses nomes aí presentes (sobretudo os da América Latina, pois os espanhóis não estão assim tão mal no nosso mercado editorial) que ainda não foram traduzidos por aqui, fato de substancial importância para que essa produção seja melhor conhecida entre nós, visto nem todos terem acesso às publicações na língua original. Questões ainda óbvias de custos e barreira entre idiomas. E uma das casas editoriais que partiu para o front da edição de obras pertencentes à lista da revista colombiana, mas que estavam ainda sem uma versão em português, foi a Leitura XXI, publicando um dos figurantes entre os primeiros 25 títulos considerados mais importantes: Salão de beleza, do mexicano Mario Bellatin, originalmente publicado em 1994. Diríamos que a escolha inicial da editora gaúcha foi extremamente bem acertada. Bellatin é hoje, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes vozes da literatura feita nas Américas e certamente lido no Brasil por um bom número de interessados numa escrita ousada e instigante.
Mario Bellatin, apesar de nascido na Cidade do México, começou sua carreira literária no Peru, país em que publicou seus primeiros livros. Entre esses, Salão de beleza. Em Lima, graduou-se em Teologia e Ciências da Comunicação. Mais tarde, estudou cinema em Cuba. Ao regressar ao México, foi diretor da área de Literatura e Humanidades da Universidade do Claustro de Sor Juana e se tornou membro do Sistema Nacional de Criadores de México. Hoje dirige, na capital mexicana, a Escola Dinâmica de Escritores, conhecida por seu método alternativo aos espaços acadêmicos e às oficinas literárias tradicionais. O autor chegou, ainda, a atuar em Blackout, peça teatral de sua autoria.
E a partir dessa rápida apresentação (sobretudo pelas duas últimas informações), não deve ser difícil mesmo para quem ainda não conhece a obra do mexicano imaginar como ela se constrói. Exatamente: no campo experimental, que traz como uma de suas principais características a interseção e o diálogo entre as formas de expressão artística. Vários dos livros de Bellatin buscam contato com as artes plásticas, a fotografia, a instalação. Segundo o crítico peruano Javier Ágreda, o procedimento narrativo que encontramos em El jardin de la señora Murakami, por exemplo, se aproxima dos princípios básicos da arte tradicional japonesa: simplicidade, sobriedade e poder evocativo. Em Perros héroes não é difícil identificar a busca pela imobilidade, pelo congelamento do tempo e das ações que caracterizam o registro fotográfico. Essa breve novela é narrada como se fosse uma série de pequenos quadros que parecem estáticos, e tal procedimento cai feito uma luva para retratar a vida do personagem chamado “homem imóvel”. Para evidenciar ainda mais o diálogo com outras expressões artísticas a edição de Perros héroes traz um livreto com registros fotográficos da série de instalações homônima do livro.
Distanciamento
Tratando mais diretamente de Salão de beleza, objeto principal deste texto, podemos inferir que essa novela (e o romance breve é o campo narrativo em que se firma a produção de Bellatin) traz essas características a que há pouco nos referimos, mas tem sua força bastante nítida no despojamento dos excessos narrativos — traço esse, é bom que se diga, muito bem preservado pela tradução de Maria Alzira Brum Lemos. O tom protocolar, distante, será usado o tempo todo pelo personagem-narrador para tecer seu relato baseado em três histórias — que ora se misturam, ora se desvencilham, vão ao passado e dele retornam — que tratam, além da vida do próprio narrador (cabeleireiro e travesti, em fase terminal de uma doença de que não sabemos o nome), dos aquários cultivados por ele e da transformação de seu salão de beleza em “Morredeiro”.
E tal distanciamento imposto pelo processo narrativo utilizado por Bellatin se encaixa com maestria a um livro que busca se converter em metáfora de uma sociedade — marcada pela indiferença e pela degradação das relações humanas — que por mais que se modernize a cada dia, hora ou minuto chega, muitas e muitas vezes, a engendrar tão-somente situações de desumanidade, isolamento e miséria típicos dos períodos mais sombrios da humanidade. Mesmo que nos deixe reconhecer em Salão de beleza toda a urbanidade que caracteriza o nosso presente, Bellatin brinca com a indefinição temporal quando incorpora ao enredo a peste que acomete os humanos para, assim, nos remeter, de modo impiedoso, a um mundo obscuro e medieval. Passado (atrasado) e presente (desenvolvido/atrasado) da humanidade se mesclam de modo sutil, por sob uma camada alegórica representada pelo mal contagioso (típico dos tempos mais remotos) que não se pode debelar. E a atmosfera de Salão de beleza vem carregada de alegorias. Os peixes e os aquários, por exemplo, servem como metáforas da vida em extinção e representam a evolução do mal nos enfermos.
Contudo, para o protagonista, entre os entes desenganados e os peixes não existe diferença; pois, apesar de se interessar por eles, geralmente limita-se apenas a ver como todos vão ficando carentes de sua beleza anterior. Os fatos quando nos são revelados com isenção de retórica e emotividade, nos faz esbarrar num procedimento muito parecido com o de Kafka (e dizer isso de Salão de Beleza não é um lugar-comum, o leitor mais atento poderá conferir). A realidade grotesca do “Morredeiro”, apesar de toda a naturalidade com que o narrador conduz o relato, confere à ficção um clima de lento e inesgotável pesadelo.
Nessa novela de Bellatin não há espécie alguma de questionamento moral. O “Morredeiro” em que se transformou o local antes destinado a tratar da beleza é simplesmente um espaço para ajudar os enfermos a não viverem sozinhos a agonia da morte. Espaço antes dotado do frescor dos aquários bem cuidados, de portas abertas ao público, e mais tarde lugar encerrado e escuro, repleto dos miasmas da degradação humana. O salão de beleza como lugar destinado ao fim e, sobretudo, os aquários são a própria imagem do encerramento sem possibilidade de saída — idéia que atormentou o autor, e isso ele mesmo já confessou, antes da escrita desse livro. E não é essa sensação de impotência, de falta de uma porta de escape, que nos oferece a morte? Não é a doença um aprisionamento do corpo? Em Salão de beleza até a sexualidade representa (pois artificializada por meio do transformismo ou encoberta pelo vapor das saunas) uma prisão para o corpo do personagem-narrador e não uma libertação como pode parecer à primeira vista. Por isso, o sexo também será encarado de modo frio e distante. É o corpo contido, que limita a aproximação afetiva nas relações, que afasta e condiciona à inconstância, à busca desenfreada por outros corpos e outros objetos de desejo.
E como mesmo diz o protagonista num certa altura do texto, depois de revelar ter sentido alguma afeição por um dos enfermos, “… meus gostos mudam de freqüência. De um momento para o outro, ele deixou de me interessar por completo”. Assim como o interesse por certos tipos de peixes se modifica e os animais vão sendo trocados por outros nos aquários — mas no fim das contas sendo todos eles a mesma coisa —, os doentes também recebem a mesma indiferenciação que os animais por parte do personagem central. Tudo é encarado não apenas com naturalidade, como já dissemos, mas, até certo ponto, com monstruosidade. Inclusive e sobretudo a morte, que faz suas vítimas sem gerar grandes crises ou revoltas. Mas também, às vezes, um tom levemente melancólico se apossa do gerente do “Morredeiro”, justamente quando fala daquele seu passado de esplendor como travesti, ou na sauna ou mesmo quando tratava dos aquários dotados de frescor e vida. Nessa hora o protagonista nos deixa entrever uma dose de humanidade, e sai por alguns momentos da condição de monstro de que trata o competente posfácio da obra escrito pelo argentino Ariel Schettini. Mas no geral, mesmo se achando o próprio protagonista acometido pela enfermidade, o relato segue sem abalos. E se nos detivermos bem nessa frialdade, nessa indiferença diante da morte, não seria inoportuno dizer que esse texto de Bellatin é uma das mais implacáveis representações da morte moderna, da qual nos falou Octavio Paz em seu O labirinto da solidão. Nela não há nenhum tipo de transcendência ou referência a outros valores. “Em quase todos os casos é, simplesmente, o fim inevitável de um processo natural”, escreve Paz. Num mundo de fatos, a morte é apenas um fato a mais. E é assim que o narrador de Salão de beleza opera diante do inevitável. Tudo que se espera com o “Morredeiro” é encurtar o sofrimento da morte e oferecer companhia nessa hora. Nada mais. Por isso, qualquer tipo de ajuda externa, sejam medicamentos ou mesmo a assistência das Irmãs de Caridade, será rejeitado pelo protagonista que vê nas religiosas somente a figura do oportunista cristão que quer demonstrar “por todos os meios o quanto é sacrificada a vida dedicada aos outros” e prolongar o sofrimento alheio “sob a aparência da bondade cristã”.
Salão de beleza, apesar de tudo o que dissemos, possibilita ao leitor entrar no universo do ficcionista mexicano pelas portas de uma obra mais convencional que as recentes. (Mais convencional quando o cotejo se limita ao próprio conjunto da obra de Mario Bellatin — que isso fique bem claro). Diríamos que, para quem pretende ler o que produz atualmente o autor — ou seja, livros sem tramas, sem atmosferas sólidas ou conteúdo humanista, como bem aponta Rafael Lemus, uma das vozes de maior destaque na crítica literária mexicana —, essa ficção traduzida por Maria Alzira Brum Lemos funciona como uma espécie de rito de passagem para o restante da produção de um escritor que tem por missão seguir cada vez mais desafiando a escritura e despojando-a de todo excesso para que assim consiga alcançar seu ideal artístico.
Para aqueles que se dispõem, então, a seguir lendo a obra de Bellatin, podem estar certos de que irão se deparar com um dos mais particulares projetos literários da América Latina, na atualidade.