No ensaio Literatura e consciência, publicado em 1988, na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Octavio Ianni assinala que os três baluartes da “literatura negra” nacional (na terminologia atual, literatura feita por escritores afro-brasileiros) são Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto. Dos três, o único que teve glória em vida foi Machado. Os outros só obtiveram os merecidos lugares nas nossas letras vários anos depois de suas mortes.
Ainda sobre essa tríade de escritores, há que se observar que Lima demonstra ter consciência étnica mais aguçada, diferentemente de Machado e Cruz e Souza. Ao sentir o aguilhão do preconceito racial na sociedade belle époque em que viveu, Lima chega a sugerir, provocativamente, a introdução do “‘negrismo’ na literatura nacional”, como destaca o biógrafo Francisco de Assis Barbosa. Vista no conjunto, sua obra “significa um desdobramento do Realismo no contexto novo da Primeira Guerra Mundial e das principais crises da República Velha”, na acertada constatação de Alfredo Bosi.
Procedimentos diversos em relação à desvalorização do sujeito afro-brasileiro tiveram Cruz e Souza e Machado de Assis. Este pouco abordou o negro nos seus mais conhecidos romances, embora tenha contos magistrais sobre a escravidão como, por exemplo, Mariana, Pai contra mãe, O caso da vara. Além disso, uma série de crônicas intituladas Bons dias, escritas à época da abolição, mostra que o Bruxo de Cosme Velho não se absteve — como ainda muitos pensam — de tratar sobre a espinhosa temática do negro. Por seu turno, o poeta simbolista Cruz e Souza tende, na maioria de seus poemas, a valorizar a cor branca. Observa Zahidé L. Muzart que “O poeta cede aos estereótipos que estabelecem o branco para o puro, o negro para o impuro. O branco seria o ideal; o negro, o pecado, o inferno, o caos”. Mesmo assim, o poeta também denunciou a escravidão e o preconceito racial de que foi vítima. Basta conferir o poema em prosa Emparedado, libelo contra as teorias raciais e a discriminação do negro, no qual Cruz e Souza expõe seu mais lancinante grito de revolta contra a hostilidade sofrida por ter pele negra.
Como já mencionado, Machado tornou-se um escritor consagrado em vida. Cruz e Souza, todavia, está ainda por merecer um tributo à sua altura. No caso do carioca Lima Barreto, em 2017, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) fez-lhe a devida homenagem. Além disso, houve ao longo do mesmo ano vários eventos lembrando o autor. Embora todas essas manifestações de apreço ao escritor tenham sido importantes, as mais significativas foram, sem dúvida alguma, a reedição de A vida de Lima Barreto, biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa, cuja primeira publicação ocorreu em 1952, e o lançamento de Lima Barreto: triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz.
O Lima de Assis Barbosa
A biografia de Assis Barbosa A vida de Lima Barreto apresenta os fatos da amarga e atribulada vida do escritor carioca. O historiador busca evidenciar o desprezo que a sociedade votou ao homem pobre e de ascendência negra que ousou ser escritor num presumido ambiente branco do Rio de Janeiro do começo do século 20. Demais, ao longo do texto, o autor busca estabelecer a proximidade entre circunstâncias relacionadas à vida de Lima e a expressão, de forma mais ou menos ficcionalizada, desses acontecimentos nos livros, permitindo a interpretação dalgumas obras limabarretianas numa linha que varia entre romances autobiográficos e romans à clef.
Roman à clef é Recordações do escrivão Isaías Caminha, e disso sabia o romancista ao receber carta de José Veríssimo ao mesmo tempo elogiosa e desabonadora. Na correspondência, o famoso crítico salientava que “Há nele [em Isaías Caminha] o elemento principal para os fazer superiores, talento”. Incomoda, porém, José Veríssimo o “excessivo personalismo” da obra. Além disso, Veríssimo desaprova no livro “A cópia, a reprodução, mais ou menos exata, mais ou menos caricatural, mas que se não chega a fazer a síntese de tipos, situações, estados d’alma, a fotografia literária da vida, pode agradar à malícia dos contemporâneos que põem um nome sobre cada pseudônimo, mas, escapando à posteridade, não a interessando, fazem efêmero e ocasional o valor das obras”.
De fato, de acordo com a tese sustentada pelo biógrafo, Lima tomava por base os fatos que o cercavam para produzir suas obras. Isaías Caminha e Numa e Ninfa atestam tal circunstância da pouca distância entre realidade e ficção. Em ambas as obras, o escritor exagera na caricatura de seus contemporâneos. Assis Barbosa comprova essa relação das personagens destes livros com jornalistas, escritores e políticos da época de Lima, baseando-se nas informações de B. Quadros (pseudônimo de Antônio Noronha Santos), amigo do romancista, das quais constam os nomes das personagens e as pessoas que os inspiraram.
O que se revela assaz interessante nesta biografia é a luta renhida de Lima contra o preconceito racial de que sempre se sentiu e foi vítima. Outra batalha de toda sua existência foi o desejo de angariar a devida e merecida identificação como escritor. As reiteradas candidaturas à Academia Brasileira de Letras comprovam o desejo de Lima ser reconhecido. Infelizmente ele morreu cedo, sentindo-se sempre desprezado. Mesmo tendo vivido apenas 41 anos de idade, sofrendo com o alcoolismo que o levou a internamentos, com a pouca recepção a seus livros, Lima produziu algumas obras-primas da literatura brasileira. Vivesse mais, decerto igualar-se-ia a Machado de Assis, que escreveu seus melhores romances depois dos quarenta anos.
Se Lima chegou à posteridade, uma das figuras fundamentais para que isso ocorresse foi Assis Barbosa. Observa o biógrafo que o escritor não foi de todo esquecido nas gerações que o procederam, embora não gozasse de prestígio como outros autores de sua época. É deste biógrafo e pesquisador o empenho em publicar Lima, de organizar seus diários e anotações, de republicar seus romances e fazer-lhe uma biografia que correspondesse à sua importância no cenário literário brasileiro.
Além da biografia de Lima, Assis Barbosa organizou e publicou, a partir de 1956, os dezessete volumes da obra do escritor, compostos de romances, contos, crônicas, diários e correspondências. Cada livro recebeu prefácio de um intelectual diferente, entre os quais se destacam Sérgio Buarque de Holanda, Lúcia Miguel Pereira, Antônio Houaiss, Astrojildo Pereira, M. Cavalcanti Proença, Gilberto Freyre e Eugênio Gomes. A despeito de um ou outro tom discordante diante da produção literária de Lima — dado revelador de que o romancista continuava, passados mais de trinta anos de sua morte, bastante polêmico — o importante é que sua obra entrou novamente em circulação e veio escudada por figuras representativas da intelectualidade brasileira.
Demais, o biógrafo ressalta que, enquanto Lima era vivo, “A crítica contemporânea não se omitiu diante da obra do romancista: João Ribeiro, Medeiros e Albuquerque, Oliveira Lima, Nestor Victor, Jackson de Figueiredo, Tristão de Ataíde, Agrippino Grieco (quantos mais?), todos escreveram sobre os seus livros”. Foi sua postura polêmica e irônica que o impediu de figurar nas hostes modernistas. As palavras sinceras e ácidas relacionadas a um dos números da revista Klaxon, oferecida a ele, nos idos de 1922, por Sérgio Buarque de Holanda, incompatibilizou-o com o grupo paulista. Como salienta Assis Barbosa, a primeira revista modernista lembrava a “Floreal, a revistinha que Lima Barreto fundara no distante ano de 1907”. Não foi nenhuma mudança nos padrões literários, todavia, que o romancista viu na Klaxon. Numa crônica, ele equivocadamente supôs que o movimento de renovação das letras nacionais não passava de mero reflexo das novidades estéticas vindas da Europa no início do século 20.
Em sua biografia, Assis Barbosa insiste no feitio autobiográfico da produção ficcional de Lima Barreto, apontando os romances Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e Recordações do escrivão Isaías Caminha como obras inscritas nessa vertente pessoal e memorialística do escritor. Na realidade, há um quê autobiográfico em boa parte do que produziu Lima Barreto. Diário do hospício e Cemitério dos vivos representam adesão total do escritor a tratar sobre si mesmo, algo que não desvaloriza sua produção ficcional. Pelo contrário, a autobiografia e a ficção presentes nestas obras tornaram-nas antecipadoras, por exemplo, da vertente memorialística que caracterizaria a literatura produzida por Oswald de Andrade, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Lúcio Cardoso, entre outros.
O Lima de Lilia Schwarcz
Como não poderia deixar de ser, a biografia de Lima escrita por Lilia Schwarcz segue muitos passos da de Assis Barbosa, a quem ela dá o devido crédito no derradeiro capítulo de sua obra. Entretanto, a historiadora e antropóloga busca definir com novas e variadas fontes e uma fortuna crítica respeitável alguns aspectos que Assis Barbosa apenas delineara em sua obra de 1952, não por displicência do biógrafo, mas em virtude de não haver à época tantas informações e estudos em torno do escritor como existem atualmente.
Lima Barreto: triste visionário caracteriza-se por ser um volume bastante abrangente sobre a existência do desafortunado escritor. Dividida em 17 capítulos, a biografia apresenta também um respeitável número de notas, bastante útil a pesquisadores que desejam conhecer a vida e obra do autor de Clara dos Anjos e também ter uma ampla visão dos hábitos culturais, correntes filosóficas, científicas e questões socioeconômicas e políticas da época em que Lima viveu.
Alguns capítulos como O jornalismo como ficção: Recordações do escrivão Isaías Caminha, Clara dos Anjos e as cores de Lima e Cartada forte e visionária: fazendo crônicas, contos, e virando Triste fim de Policarpo Quaresma indicam que a autora busca destacar a forte marca autobiográfica que compõe alguns dos romances de Lima, vinculando as duas primeiras personagens a alter ego do escritor, ao passo que o major Quaresma encarnaria algumas características de João Henriques, pai do escritor, entre elas a loucura e a afeição pela terra.
Na sua ampla investigação sobre vida e obra de Lima, Lilia Schwarcz retoma a ótica da biografia de Assis Barbosa sobre o escritor que “senti[a] na pele a diferença de classe e a existência de um racismo dissimulado”. O sentimento de marginalização étnico-social vivido pelo escritor levou-o a escrever muitas crônicas sobre o espinhoso assunto. Salienta a historiadora que “já em 1914, Lima não só tinha consciência da discriminação existente no Brasil, como andava atualizado sobre o que ocorria nos Estados Unidos”. De acordo com a biógrafa, o escritor manterá ao longo de sua existência uma atitude combativa à língua, à cultura e aos modismos norte-americanos.
No entanto, as preocupações de Lima não se restringiam ao problema do racismo. Ele estendia sua postura analítica a variadas temáticas, sobretudo com ênfase à política. Entre 1910 e 1915, ele escreveu para vários jornais, como Correio da Noite, Gazeta da Tarde, O Fluminense, A Voz do Trabalhador, entre outros noticiosos. Também publicou em diversas revistas, tais como Careta, O Theatro, O Rio-Nú, Ilustração Brasileira, A Época, A Águia. Nessa capacidade de multiplicar-se em textos que tinham o objetivo de pôr o dedo na ferida dos problemas da época, Lima punha-se a mostrar a politicagem instaurada na recente República, denunciava o tratamento vexatório pelo qual passava descendentes de negros, questionava a justiça que insistia em dar razão aos homens que matavam mulheres adúlteras, transformando-se num “anarquista solitário, a dizer verdades em geral mantidas no silêncio”, conforme assinala Lilia Schwarcz.
Assim como Assis Barbosa destaca em sua biografia, a de Lilia Schwarcz mostra a acuidade de Lima, que, sem papas na língua, define com exatidão muitas das sumidades que ganharam nome com a vigência do novo regime político brasileiro instaurado a partir de 1889. Um dos citados é Rui Barbosa, considerado ainda hoje como destacada figura de nossa inteligentsia. Segundo a autora, “Rui representava para o escritor, também, o exemplo maior da hipocrisia inscrita na retórica da República. Lima descrevia-o como o suprassumo do patriotismo falacioso, o maior representante do tom hiperbólico e declamatório das elites republicanas, o bacharelismo, o oportunismo político e o símbolo da intelectualidade a serviço do Estado”. A partir dos comentários da biógrafa torna-se possível depreender que a verborragia e as falsas miçangas que adornavam as figuras públicas de então ainda podem ser detectadas em boa parte dos representantes das elites políticas que continua a controlar o Brasil.
Horror aos poderosos de plantão. Horror que se estendia à “república das letras”, expressão pejorativa para designar literatos cujos textos atinham-se à correção gramatical, mas revelavam pouco ou nenhum conteúdo. Lima era totalmente avesso a um tipo de literatura vazia, desvencilhada das coisas de seu tempo, aquela literatura que Afrânio Peixoto chamava de “o sorriso da sociedade”, que abordava coisas belas e fundava-se numa escrita correta e elegante, na qual negros e pobres raramente apareciam. Quando estes surgiam em cena, as lentes deformadoras mostravam-nos como personagens depreciadas e estereotipadas.
Nestas duas biografias sobre Lima Barreto, a luta travada pelo escritor de origem negra para ser considerado um igual na preconceituosa sociedade brasileira do começo do século 20 é o ponto central em torno do qual os estudos de Assis Barbosa e Lilia Schwarcz convergem.
Como enfatiza Lilia Schwarcz, numa época em que o preconceito racial adquirira foros de ciência, o escritor “optou por fazer uma literatura condicionada e afetada pela literatura das populações afrodescendentes”, e a melhor forma que ele cria para sintetizar a dor de seus irmãos — que é a também a sua — passa por uma “literatura à clef”, que, na pertinente observação de sua biógrafa, “implicava abrir uma porta em duas direções: para dentro e para fora”. Nessa via dupla, de um lado, as criações literárias de Lima representavam tudo aquilo que lhe passava no mais íntimo de seu ser — com ênfase para o fantasma étnico que o afligiu durante toda a vida —, de outro, o contato diário com a gente e a realidade do centro e da periferia cariocas, com seus códigos de inclusão e exclusão, permitiu-lhe ser tantos outros que, paradoxalmente, eram um pouco o próprio escritor.
Duas visões convergentes
Se a biografia de Assis Barbosa serviu, em meados do século 20, para abrir as sendas para a (re)descoberta e valorização de Lima Barreto e de sua obra, a publicação do livro de Lilia Schwarcz sobre o romancista, em 2017, só veio corroborar a grandeza da literatura do escritor de Todos os Santos, pondo-o no mesmo pedestal de outros autores canônicos de nossas letras.
Além disso, ambas as biografias têm o mérito de tocar num ponto fulcral da existência atribulada de Lima: a falta de um lugar para o afrodescendente na sociedade brasileira de seu tempo. Desde jovem, conforme ambos os pesquisadores destacam, o romancista sentiu contra si mesmo a permanência dos vezos e dos vícios da instituição escravocrata que vigorou no país durante quase quatrocentos anos. Na apurada constatação do romancista, o 13 de maio e a República pouco fizeram para que de fato houvesse mudanças substanciais na vida dos que tinham sangue negro nas veias. Aliás, estes eram invisibilizados e postos à margem de uma nação que se acreditava branca. Contra o namoro das elites com as teorias eugênicas de fins do século 19 e princípio do 20, Lima vai ser uma das poucas vozes dissonantes, denunciando o estigma vivido por aqueles que possuíam ascendência negra no Brasil.
Nestas duas biografias sobre Lima Barreto, a luta travada pelo escritor de origem negra para ser considerado um igual na preconceituosa sociedade brasileira do começo do século 20 é o ponto central em torno do qual os estudos de Assis Barbosa e Lilia Schwarcz convergem. Infelizmente, a leitura de ambos os livros acaba revelando que, no que tange à questão étnica, pouco mudou desde a época em que Lima viveu. Nesse sentido, as duas obras permitem uma reflexão sobre o racismo que continua à solta no país.
A permanência de uma cultura racista no país, tantas vezes denunciada pelo romancista, saltou dos livros dos biógrafos para a vida real. Na Flip de 2017, a professora aposentada Diva Guimarães emocionou o público presente ao contar como sofreu por ser discriminada em virtude da cor de sua pele. O relato — que viralizou na web — deixou patente que a diferenciação étnica continua vigorando no Brasil do século 21. Tal fato só vem comprovar que Lima, há quase um século, estava correto ao denunciar o preconceito racial por intermédio de seus livros e de suas atitudes.