A crônica é o gênero literário mais desprezado, embora o mais lido pelo grande público. Talvez por ser tão fugaz — o que não é uma justificativa das mais fundamentadas, pois o orgasmo também é algo bem mais que fugaz e até minha avó ainda gosta, faz questão e respeita. Mas o que faz da crônica algo tão passageiro? Talvez o fato de ela abandonar seu meio ambiente, o jornal, e se aventurar em terreno movediço, o livro.
Mas transferir a crônica das páginas tão efêmeras dos jornais para as dos livros é tarefa que Martha Medeiros, Zuenir Ventura, Luis Fernando Verissimo, Jorge Coli, Moacyr Scliar e mais três ou quatro executam de olhos fechados. A crônica também permite a infestação de outros tipos nem sempre habituês das letras, tais como publicitários, padres, ex-jogadores de futebol, de vôlei, et caterva. Dizem o que todo mundo diz, algumas vezes conseguem inclusive ser mais bestas que a horda semiletrada. A regra é esta: construa seu nome com mármore numa outra profissão e depois publique um livro de crônicas. Ao editor interessa saber se você é conhecido, pelo menos na sua aldeia, se escreve bem é um detalhe que virá à tona no fim do processo.
Mas quem leu Rubem Braga não lê gato por lebre e juntando-se aos citados anteriormente, é bom não esquecer de Fausto Wolff, atualmente no Jornal do Brasil, em sua luta incansável contra as injustiças e a favor dos humildes. A lamentar o fato de Fausto ser único, nosso grande e respeitável Quixote. Meus respeitos e minha admiração.
Com os mesmos compromissos de Fausto, porém recheando-os com o mais fino e permanente humor, temos aquele que atualmente, no entender deste aprendiz pelo menos, é o nosso maior cronista, Aldir Blanc. Onde você leu “atualmente” pode incluir a obra do Nelson Rodrigues cronista.
Dele, a editora Agir acaba de publicar Rua dos Artistas e transversais, reunião de crônicas escritas para o Pasquim, revista Viaje Bem, entre 1975 e 1981, também publicadas em Rua dos Artistas e arredores (Codecri) e Porto de tinturaria (Codecri). Inclui também textos, inéditos em livro, publicados na revista Bundas de junho de 1999 a novembro de 2000 e no Jornal do Brasil em 2005 e 2006.
Um livro, vou adiantar, que não se resigna às palavras, um livro que luta contra as desigualdades, as futilidades, o mau humor, o falso moralismo, um livro onde não há realismo e sim realidade. Acharam muito? Então leiam o dito cujo e verão o quanto sou moderado.
Feito o esclarecimento, voltemos às crônicas do Aldir. Antes, porém, convém lembrar que estamos no país das injustiças. Não fosse assim, a obra desse notável escritor, letrista incomparável, estaria sendo estudada em nossas universidades e o Aldir disporia de menos tempo para cantar sua Rua dos Artistas, visto que os compromissos da ordem das palestras, conferências, aulas e, por que não?, programa inteligente de tevê, o deixariam por demais ocupado e conseqüentemente viveríamos num país menos idiotizado. Eu lamento pelas nossas crianças expostas aos perigos dos livros didáticos, em sua maioria não passam de um furo na memória. Ou vocês têm conhecimento de algum livro didático que faça referência à obra de Aldir Blanc? Isso é apenas a ponta do iceberg da nossa mediocridade e descaso com a cultura. Já nas crônicas de Aldir o que não falta é memória, mas não no sentido de lamentar os tempos idos, mas como um alerta para aproveitar o momento atual. Aldir não deixa Tzvetan Todorov mentir: “sacralizar a memória é uma outra maneira de torná-la estéril”. E na Rua dos Artistas tudo é vivo e se reproduz.
Pensando bem, arte e justiça, justiça na arte, arte na justiça, daria pano pra muitas mangas, que tal um debate?
Mas querer reconhecimento e justiça em nossa pátria já é ambicionar demais.
Tentativa número 2 de voltar às crônicas de Aldir. Dessa vez eu consigo.
Paciente leitor, você deve estar se perguntando o que tem afinal esse Aldir para o Luiz Horácio se derramar tanto? Serão amigos? Infelizmente não, embora já tenhamos nos encontrado algumas vezes em casa de Fausto Wolff. Então é isso, ele é amigo do amigo. Engano número 2.
Acontece que Aldir é um dos poucos cronistas que faz questão de ser original e consegue dedicando-se às questões mais comezinhas de nossa comezinha existência. Para espanto dos Geraldos e dos Tomas (é seu, eu não quero), ele não faz drama, tampouco graça com a desgraça do 11 de Setembro novaiorquino, quando na sua rua acontecimentos envolvendo uma cartomante e um bêbado estimulam a grande reflexão que devia perseguir todo ser humano: a de aproveitar a vida da forma mais descontraída. Adianto aos apressados que estão à beira do engano número 3, se pensaram que dinheiro é fator indispensável para tanto. Nas crônicas de Aldir, o dinheiro jamais merece o foco das atenções, seus personagens, mesmo os mais afeitos a uma sacanagem, são de uma inocência contagiante, deixando no leitor aquela vontade imensa de conhecê-los, de um dia ser convidado para uma feijoada ou até mesmo a um “velório no catumbi”.
Sem desviar o olhar
Nas crônicas de Rua dos Artistas, podemos perceber a evolução do gênero, o abandono do exclusivo caráter jornalístico, as atenções voltadas aos fatos do dia-a-dia e a gradual ocupação do terreno da ficção sem jamais desviar o olhar, no caso do Aldir, da critica às relações humanas e nosso modus vivendi quotidiano onde o desejo (capitalismo) supera por vários corpos a solidariedade (socialismo). Convém sempre lembrar que segundo Galileu Galilei (1564-1642), nada que pode ser visto pelos olhos pode ser considerado uma inverdade. Sendo assim, podemos dizer que as concepções, quer a respeito das limitações do universo, quer a respeito das funções ou das ambições literárias bem como dos acontecimentos da Vila Isabel, Muda e Tijuca, não podem ser desconsideradas. A cada uma sua devida importância. Tanto tiveram, que agora neste exato momento, humildemente, ocupamo-nos dos ditos cujos.
Assim como a literatura, podemos dizer que a ciência também é uma narrativa em evolução.
Sem salamaleques, Aldir Blanc faz as apresentações de seus personagens, praticamente seus vizinhos, os descreve, não esconde suas idiossincrasias, seus vícios, suas deficiências e seus artifícios, os nobres e os nem tanto; e logo vai se criando uma intimidade entre eles e o leitor.
Alguns dos livros mais elogiados pelos coleguinhas são aqueles que apresentam as tais referências pops, mero eufemismo, para não dizer atirar para tudo quanto é lado com a preocupação única de errar em todos. Mas é pós-moderno, sacaram?
Aldir Blanc, da sua rua dos artistas, mostra como é que se faz: para dizer que a partir de um determinado ponto o território não era dos mais amistosos, ele diz se tratar de “território sioux” e mais adiante citará Tantor, Mandrake, Fantasma, o espírito que anda e sua trupe, o universo das histórias em quadrinhos utilizados para clarear Vila Isabel e adjacências.
E para acentuar a tal intimidade entre leitor e personagem, Aldir estabelece um diálogo. Não são poucas as vezes em que interrompe a narrativa para falar com o leitor, pregar-lhe uma peça, dar um puxão de orelha ou até mesmo um esporro. No leitor e na leitora, em certos momentos ele se dirige à leitora.
Ler Aldir Blanc é acima de tudo compreender que a reflexão não é necessariamente da laia das coisas sisudas. Muito pelo contrário. Assim como o amor não é nada simples, o amor na verdade é um espetáculo; viver é saber dançar ao som da alegria, do senso crítico e da ironia. Não basta estar vivo.
Aldir é um filósofo útil, é prático, seu objeto é a crítica social, a condição humana e sua precariedade. Rua dos Artistas e transversais é um dos mais importantes livros de nossa literatura. São 428 páginas em que não se percebe o menor desperdício ou excesso. E olha que nem falei das orelhas de autoria do Fausto Wolff. Outro fator importante nas crônicas do Aldir é o fato de não percebermos nelas o ranço, o corrosivo hálito do tempo, mesmo naquelas mais antigas. O cronista, poeta e letrista lida com objeto perene — a vida e sua interminável renovação. Nós somos apenas isso que ele tão bem retrata: personagens. As crônicas de Rua dos Artistas me trazem à lembrança Borges: “as veces en las tardes una cara nos mira desde el fondo de un espejo: el arte debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara”.
E se por acaso você for mais um desses que permitem que outras cabeças pensem por você, lamento. É bom esquecer aquela máxima que também te empurraram goela abaixo, aquela que diz que o jornal depois de lido só serve para embrulhar o peixe. Esqueceram de dizer que antes se deve recortar a crônica do Aldir.
Agora, se me dão licença, já entrei no táxi, o motorista está à beira de um torcicolo.
— Toca pra Vila Isabel.
— Que altura, doutor?
— Rua dos Artistas, aquele boteco na esquina, depois do centro espírita da Heronda. Marquei com o Belisário, com o Lindauro, dr. Waladão, a Deysinha me garantiu que também estará por lá, o Ceceu Rico, o Waldir Iapetec, o Paulo Amarelo e mais os que vão sem avisar.
Se der sorte ainda encontro o Aldir, o avô Aguiar e o papagaio Plínio. O que eles não sabem é que o Nelson Rodrigues ligou há pouco. Já está no local.