Quando o Congresso Nacional derrubou o veto do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, ao projeto de Lei Padre Júlio Lancelotti no ano passado, deu-se um pequeno passo na complexa e necessária discussão sobre a ocupação dos espaços públicos pelas populações de rua. Para muita gente, foi oportunidade de ouvir pela primeira vez a expressão “arquitetura hostil”. O projeto de lei tem por objetivo evitar esse tipo de construção que afasta ou dificulta o acesso às áreas públicas das cidades por idosos, crianças e pessoas em situação de rua. Não é figurativo lembrar que a legislação, promulgada em 11 de janeiro deste ano, recebe esse nome devido às ações do religioso, uma delas que viralizou nas redes sociais, quando o sacerdote tentou quebrar pedras instaladas debaixo de um viaduto pela prefeitura de São Paulo.
NĂŁo raro nos referimos Ă s pessoas em situação de rua como “invisĂveis”, quando na verdade eles parecem visĂveis atĂ© demais, a ponto de incomodarem todo o resto da sociedade quando pedem dinheiro, comida, para limpar o vidro do carro ou se tornam os personagens centrais de um projeto de lei. VisĂveis ou invisĂveis, como o leitor queira chamar, sĂŁo sujeitos como esses que ocupam Menos que um, dĂ©cimo terceiro romance de PatrĂcia Melo. O livro perfila tipos diversos que moram e ganham a vida nas ruas da capital sĂmbolo do modernismo brasileiro, trazendo Ă superfĂcie suas condições de sobrevivĂŞncia e as razões pelas quais o espaço pĂşblico se tornou o Ăşnico lugar possĂvel.
A seleção de tipos sociais do romance mostra ainda a sequĂŞncia do projeto literário de PatrĂcia Melo, que privilegia temas com forte carga polĂtica e personagens enquadrados em lugares de exceção. Aliás, sua produção, iniciada nos anos de 1990 e que culmina agora em Menos que um tambĂ©m passa em revista momentos decisivos da representação de grupos subalternizados em nossa literatura. Reconhecida e por vezes acusada pelo seu engajamento social, a literatura brasileira a partir da Ăşltima fase do modernismo apresenta duas paradas já bastante revisitadas pela crĂtica especializada e que aponta as dĂ©cadas de 1960 e a de 1990 como dois marcos da produção com enfoque social privilegiando pobres e sujeitos marginalizados (nessa leitura escolho como recorte apenas a literatura brasileira contemporânea, daĂ a exclusĂŁo do romance de 1930).
Nos anos de 1960, a economia explicaria as injustiças sociais, enquanto nos anos de 1990, a marginalização e o abandono social pelo Estado sĂŁo compreendidos como uma espĂ©cie de maldição de origem, sem enfrentar suas razões, conforme explica o professor Victor Hugo Adler Pereira (UERJ) no artigo Documentos da pobreza, desigualdade e exclusĂŁo social (2017). Ainda assim, nesses anos, que coincidem com nossos primeiros passos na redemocratização no paĂs, surge “uma literatura que situa seu cĂrculo de observação e indagação em espaços comunitários delimitados e submetidos Ă carĂŞncia de bens e serviços que abundam em outros espaços sociais”. É interessante notar que PatrĂcia Melo lança Acqua Toffana em 1994, seguido de O matador em 1995, adaptado para o cinema por Rubem Fonseca com O homem do ano (2003). Com uma produção ininterrupta e que na virada do sĂ©culo tambĂ©m passa por roteiros para cinema e textos teatrais, a autora desemboca nessa dĂ©cada participando de um terceiro tipo de engajamento na literatura com discussões que nomeiam os preconceitos contra negros, mulheres, LGBTIQA+, pobres, imigrantes, entre outros. Neste momento, aqui proposto, a autora avança para alĂ©m do diagnĂłstico, ao focalizar as desigualdades sociais como parte de um projeto econĂ´mico e polĂtico eficiente. Ou seja, nĂŁo se trata de mero descaso social, mas de uma tecnologia de exclusĂŁo em funcionamento e operada por polĂticas governamentais.
Cidadania e justiça social
As histĂłrias de pedintes, desempregados, flanelinhas, imigrantes e outros tantos com subempregos precários em Menos que um se conectam com a urgĂŞncia dos nossos dias e nĂŁo Ă toa nos desmontam. Elas concretizam aquilo que deveria acompanhar toda experiĂŞncia estĂ©tica proporcionada pela leitura, a aproximação de uma realidade muitas vezes distinta do leitor ou o realce Ă s situações já conhecidas, mas que ganham tĂ´nus no texto ficcional. Sem medo de generalizações, todo e qualquer pessoa já cruzou com pelo menos um personagem de Menos que um. Eles sĂŁo coadjuvantes das nossas narrativas ordinárias, atravessando nosso caminho a contragosto e expondo as malezas do neoliberalismo. Nas entrevistas sobre o romance, PatrĂcia Melo destaca o choque ao ver o aumento da população de rua em visita ao Brasil — a autora vive na SuĂça há dez anos —, uma observação, segundo ela, anterior Ă pandemia de covid-19 que, sabemos, piorou o quadro já tĂŁo deteriorado.
A lista de personagens é longa e aqui escolho apenas três para compor o retrato proposto pela autora: um imigrante venezuelano, uma diarista, uma mulher trans. Um dos personagens sintomáticos dos últimos anos a ganhar face e nome na narrativa é Seno Chacoy, venezuelano que migra para o Brasil e lava as ruas de São Paulo. A orientação do seu superior é clara: não se deve jogar água diretamente nos moradores de rua para não criar problemas com “os fazedores de petição”, o pessoal “dos direitos humanos”. É preciso agir com sutileza, jorrar água em um ponto que os fragilize, “aquela quebrada de punho, sabe?”. Papelão, carrinhos, sacolas. Nesse processo, que inclui um tanto de desumanização do oprimido e do opressor, Seno Chacoy, que vive em outra ponta do sistema de exploração, passa a não se importar com os moradores, apenas executando ordens dadas pelo chefe. Outros personagens igualmente frágeis na estrutura social, porteiros e zeladores, sugerem se incomodar mais com a ocupação das ruas e calçadas do que com as condições de vida de quem as ocupa.
Já a diarista JĂ©ssica tem desejos prosaicos, que dĂŁo a dimensĂŁo das dificuldades que ela enfrenta, como juntar dinheiro com as faxinas e tirar seus documentos perdidos. Nesse caso, ter documentos, alĂ©m de um gesto de cidadania básico, demonstra sua vontade de inclusĂŁo. O mesmo Estado que abomina os pedintes nas ruas deve lhe assegurar a garantia de direitos, sendo um documento de identificação uma sinalização da sua existĂŞncia como sujeito para uma sĂ©rie de polĂticas pĂşblicas essenciais. Uma terceira personagem dos nossos tempos a mostrar o fosso entre ricos e miseráveis Ă© Glenda, antes Weverton, mulher trans, um dos alvos preferenciais da violĂŞncia no paĂs — o Brasil segue há 13 anos no posto de paĂs que mais mata travestis e mulheres trans de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Se para JĂ©ssica, o documento Ă© uma conquista, para Glenda, o nome social Ă© uma primeira vitĂłria, mesmo ela dizendo que “tem gente que sĂł existe depois que morre”.
Ao passo que o livro apresenta pequenos retratos das vidas dessas pessoas, em capĂtulos curtos e ágeis, concentrados nas ações e nas falas das personagens, tambĂ©m oferece ao leitor uma espĂ©cie de biografia nĂŁo autorizada dos dias recentes de SĂŁo Paulo.
A sociĂłloga Leonor Arfuch nos ensina que embora o gĂŞnero autobiográfico, que foi o cerne dos estudos da pesquisadora argentina, concentre-se nas etapas da vida humana, Ă© inseparável a dimensĂŁo espacial dos relatos de vida. A partir desse argumento, a pesquisadora pensa a cidade como uma autobiografia, o que pode nos inspirar a lermos no romance de PatrĂcia Melo tambĂ©m como um recorte biográfico dos Ăşltimos anos da cidade de SĂŁo Paulo, a mesma capital que promoveu a Semana de Arte Moderna de 1922 e as Bienais de Arte a partir dos anos de 1950. Esta SĂŁo Paulo reconfigurada se entrelaça aos personagens marginalizados, brasileiros comuns, que ocupam seu espaço, sendo transformada por eles e transformando-os tambĂ©m. Menos que um Ă© um choque com a nossa prĂłpria imagem no espelho, mas que nĂŁo podemos ignorar se quisermos mudar o que tanto nos causa repulsa.