Foi então que aconteceu.
De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Nessa breve epígrafe colhida de um conto de Clarice Lispector, Uma galinha, passagem telegráfica mesmo no seu instantâneo de significação, o leitor vive o prazer de ser golpeado pelo impacto revelador da fabulação.
A palavra “fabulação”[1] é uma palavra muito boa. Boa não apenas — e já é tanto — para nomear o ofício entusiasmado do escritor que vive fabulando ou contando histórias na sua busca incessante de dar mais sentido à vida, motivação maior da literatura. Boa também e talvez especialmente porque fabular é um modo de ser muito particular da existência humana, desde o seu passado mais remoto, quando o homem sentiu a necessidade de inventar e narrar um universo fabulado. Aventura e desventura de ser e de buscar preencher os vazios da realidade, decifrar os seus mistérios ou simplesmente celebrar o que a experiência de viver tem de mais vivo, de mais fantástico, de mais real.
“Contar” sempre foi uma tendência natural das pessoas ou dos grupos de extrair do imaginário fatos fabulosos, inventar histórias exemplares ou reveladoras, escavar do banal um extraordinário, fazer ficções e sonhar nas palavras o sonho de todos.
E o conto na sua forma breve, concisa e concentrada num acontecimento preciso se tornou um correlato perfeito desse sonho ou da fantasia essencial que habita o “sono” e compõe uma feliz junção entre o mundo concreto e o mundo imaginado.
Nesse universo, Antonio Candido afirma, num ensaio primoroso, que, por esta premência e urgência da fabulação, a literatura é um direito de todos[2]: “Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado”.
E mais: “Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”.
É exatamente por isto que fabular é sempre preciso porque se torna manifestação urgente e imprescindível no tempo real e imaginário, tempo sem duração.
Se é certo dizer que “quem conta um conto aumenta um ponto”, ler e reler um conto é encontrar o ponto exato para ver e rever a vida. E não só a vida individual do leitor que se busca e quer se ver espelhado nessas breves narrativas, mas a história de vida do homem brasileiro aqui representada, no período de mais de 160 anos, por essa forma marcadamente literária de registrar a vida na ficção. Isto porque, pelo critério de qualidade expressiva na arte de contar e não apenas pelo valor histórico que remete à publicação de alguns poucos contos anteriores, A noite na taverna de Álvares de Azevedo, composto de narrativas que se entrelaçam em clima de desvario e paroxismo sob o signo da morte, tema tão caro ao autor em prosa e poesia — é o nosso primeiro conto.
Voz definida
Como se pode constatar com raro prazer, lendo e relendo essas primeiras histórias ou historietas, a longa trajetória do conto brasileiro já surge com uma voz definida na originalidade macabra desse nosso poeta dos mais românticos, seguida das inúmeras narrativas de Machado de Assis voltadas para a complexidade da alma humana, outras de Aluísio de Azevedo preocupadas em denunciar até o caráter patológico do homem vitimado pela miséria social e tantas outras de Lima Barreto, Alcântara Machado e até Graciliano Ramos que elege o desvalido como herói predestinado a nunca desfrutar do final feliz da história.
Nessa viagem onde a dinâmica bem tramada e algo ainda aconchegante do tempo das narrativas se encontram e fazem um acordo com a vida cada vez mais rápida dos leitores que se descobrem e se reconhecem numa galeria infinita de personagens — entram em cena Mário de Andrade com o tema da solidariedade e dos encantos e desencontros afetivos, Osman Lins com o sentido tocante da saudade de tempos ainda nem sequer vividos, José J. Veiga com seu lirismo extraído do fantástico e o sentimento de acolhida da raça humana, paradoxalmente presentes em situações nas quais o que impera é a estranheza e o absurdo das relações entre as pessoas.
Evoluindo assim, em termos de qualidade estética e volume de produção, o conto brasileiro vai se instaurar, sobretudo na modernidade dos anos sessenta, enquanto expressão depurada na vocação de ser contista com uma trupe de escritores que experimentam uma enorme variedade de temas e formas de ver o mundo como é a disciplina do amor e a presença do mistério nas “coisas” mais simples em Lygia Fagundes Telles, a sedução e o espanto do ser que vive uma súbita descoberta interior na rotina mais familiar do cotidiano em Clarice Lispector, a solidão e a incomunicabilidade quase como um destino em Carlos Drummond de Andrade, a paixão e a compaixão no exercício de viver e de sobreviver em Fernando Sabino, Ivan Ângelo, Luiz Vilela, a religiosidade com gestos de terno erotismo em Adélia Prado, o grito amorosamente ousado e quase feroz da mulher que cobra face a face o homem impossível em Ana Cristina Cesar. E mais tantos outros contistas que vão do realismo ao fantástico, da denúncia social ao clima de alma, das aventuras e desventuras ao relato poético, do terror das histórias às histórias de amor, do factual ao abstrato, do suspense ao humor.
Por tudo isto e muito mais, não é exagero entender e acolher o conto como memória dos tempos esparsos e mais reveladores da história subjetiva do leitor e dos tempos da história coletiva de um grupo, de uma geografia humana, de um país, pelo seu lampejo e precisão centrados na brevidade enxuta dos elementos que compõem a explanação envolvente e sensivelmente expressiva de um acontecimento.
Como um relâmpago de significações para usar uma imagem justa do ritmo e do traço iluminador dessa peculiar forma narrativa, o conto conta e parece prestar contas, por meio de flashes e porções precisas da realidade, do tempo da vida de cada um e do tempo da arte de todos, nos dois sentidos espelhando e repassando aos olhos de quem escreve e de quem lê esta nossa matéria tão viva, a fabulação que talvez seja uma das poucas formas de vivenciar qualquer coisa de absoluto na própria transitoriedade do tempo: ler para guardar na memória e, mais do que tudo, para nunca esquecer.
Pois é esta experiência tão humana que o conto promove, sem nunca ter a presunção de contar dando conta de tudo. O conto apenas se entrega à concisão, à brevidade e à precisão de contar o que fomos, o que estamos sendo e o que podemos ser nos limites e nas transgressões da experiência única de viver.
Enfim e sempre, num bom conto, especialmente o conto que acerta o universo de sentidos por nocaute, não é exagerado também dizer que o imaginário, reduto primeiro da fabulação, faz a vida vencer no seu duelo permanente com a morte.
Nocaute poético
É claro que, sendo o encontro entre texto e leitor sempre meio imprevisível e sendo a leitura um acordo ou não das expectativas afetivas de quem lê com as idéias que uma história possa oferecer, para cada pessoa existe o conto bom e o conto ruim, o conto eterno e o passageiro, o conto expressivo e o superficial. Entretanto inúmeras narrativas curtas têm a força poética de “nocautear” a maioria de leitores, como tão certeiramente o escritor Julio Cortázar pontuou, para situar com a exatidão de crítico intuitivo “essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta.”[3]
E é verdade: um conto — como um relâmpago de memória para insistir um pouco mais nessa imagem — ilumina uma realidade muito mais ampla do que o mundo imediato no que ele tem de previsível e de imprevisível, de esperado e de inesperado, de visível e de invisível, porque ele é incisivo, concentrado, excitante, provocador, “mordente”, lembrando o atributo mais identificador do conto para Cortázar.
Para este escritor único e sensível leitor, o conto não é novela nem noveleta que podem se alongar fazendo digressões ou se dando o direito de ramificar os conflitos. Estas outras histórias ganham o leitor por pontos ou fios narrativos; o conto pela concentração de um polo de atenção norteado por um tema preciso, sem nada a mais nem nada a menos, tudo no ponto. É a vitória do sentido e dos sentidos por knockout.
Daí vem o prazer de ser nocauteado por um conto, nocaute que, metaforicamente no universo da leitura, quer dizer um soco de significações muito bem tramadas e amarradas que conquistam o leitor, desde as primeiras linhas, para uma viagem entre a vigília e o devaneio. Mais precisamente o leitor vivencia um tipo de felicidade repentina e espraiada de leitura como se estivesse no espaço contido, enquadrado e maravilhosamente desafiador de um ringue que se abre para o imaginário de mundos conhecidos e desconhecidos, sendo que este imaginário — exercício feliz do conhecimento — também não tem tempo de duração.
Enfim e sempre, num bom conto, especialmente o conto que acerta o universo de sentidos por nocaute, não é exagerado também dizer que o imaginário, reduto primeiro da fabulação, faz a vida vencer no seu duelo permanente com a morte. Isto acontece desde As mil e uma noites, em que Sherazade alonga e prolonga a existência contando e tecendo histórias para o rei Shariar que, desiludido com a traição da sua primeira mulher e decidido a nunca mais ser traído, trama desposar e sacrificar cada uma das virgens na manhã seguinte ao casamento. Mas não é com essa nossa contadora de histórias que a morte vai se dar porque, contando e recontando uma história, ela seduz o esposo que passa a tramar e destramar a morte por conta do seu jogo de fabuladora com a astúcia e o esquivo de adiar sempre e sempre para depois de amanhã o ponto final. Mais do que o nocaute conquistado pelo tema, é o nocaute alcançado pela palavra.
Quando essa iluminação ocorre e não é raro ocorrer para quem se entrega ao fascínio que a literatura é capaz de exercer em cada um de nós, uma história puxa outra e muitos contos podem surgir e naturalmente se multiplicar para o leitor passar e repassar o tempo, feliz e contemplado com a experiência única de ler e reler quantas vezes a leitura motivar o impacto dos sentidos e da revelação.
São muitos os nocautes provocados por contos que contam uma história no ponto e aqui apenas dá para vislumbrar alguns.
É a dona de casa aparentemente tranquila dentro de certo desconforto com marido, filhos e lar, simples mulher que, voltando das compras de bonde, de súbito vê um cego mascando chicletes e tem, pela primeira vez, a sensação de se ver sendo vista por dentro, o que desencadeia nela uma profunda revolução interior. Não por acaso este conto se chama Amor e é de Clarice Lispector.
Ou é o operário do conto Primeiro de maio de Mário de Andrade, que ingenuamente acorda bem cedo, toma banho, põe até gravata para celebrar o seu dia e encontra um mundo cerrado e deserto, vigiado por policiais que estão alertas para evitar uma possível manifestação trabalhista, depois algumas aglomerações impessoais e, por fim, este suposto protagonista, do entusiasmo de ser um herói trabalhador, acaba vivendo o sentido do anonimato, do medo, da solidão. Ou é o poético conto fantástico Teleco, o coelhinho de Murilo Rubião em que o narrador acolhe e leva para casa um coelhinho que progressiva e aceleradamente vai se transformando nos mais diferentes bichos, numa tentativa dramática de preservar alguma singularidade num mundo impessoal e automatizado, até virar “uma criança nua e encardida”, revelando a fatalidade de viver numa realidade onde não é mais possível ter algo de original.
Multiplicidade
São muitos também os focos de atenção e são muitas as visadas de mundo presentes nos contos. É o sentimento instantâneo de ser herói numa viagem de avião em que o narrador recupera a sua força de “homem”, antes algo entediado, amparando uma mulher temerosa pelo voo no conto Um braço de mulher de Rubem Braga. É o sentido da opressão e de ser diferente num conto fantástico de Julio Cortázar, Carta a uma senhorita em Paris — o personagem vomita coelhinhos, todos eles ternos e muito bonitos no seu mundo segredado e clandestino, mas que acabam levando o narrador a um gesto extremado, quando o fato se torna público e ele é condenado precisamente pelo que tem de melhor. É também o sentimento de exílio voluntário e de desistência do convívio humano de um velho que resolve passar o resto da vida numa canoa que persiste quase imóvel em A terceira margem do rio de Guimarães Rosa e, aos olhos sensibilizados e contemplativos do filho, vai definhando sem o menor desejo de retornar. É o tema do amor tocante e sempre indecifrável de Lygia Fagundes Telles, o sentido da obstinação e da paixão extremada em Caio Fernando de Abreu, o humor corrosivo e humanamente insatisfeito diante dos afetos e desafetos daqueles que vivem à margem em quase todos os contos de Dalton Trevisan e de Marcos Rey, a solidariedade poeticamente estranhada daqueles que existem ensimesmados na implacável solidão e se tornam cúmplices e até amigos na arte de viver e de morrer em Dois corpos que caem de João Silvério Trevisan. É a descarga poética com rasgos de lirismo muito comungados com a voz da poesia em toda a obra de Mia Couto e aqui especialmente no conto pleno de encanto — O mendigo Sexta-Feira jogando no mundial —, em que o personagem se confessa e até se compensa da sua miséria, pelo fato de estar doente como única prova de ainda “estar vivo”.
Nesse circuito de revelações instantâneas, tem lugar dos mais comoventes João Anzanello Carrascoza com seus belos contos que flagram aquele trânsito telegráfico em que a realidade se nega a ser matéria pronta para se oferecer como encontro de vozes, não raro da voz da criança com a do adulto, resultando igualmente num feliz encontro entre ficção, biografia e memória. Do perfeito casamento desses três componentes, o núcleo temático que predomina e naturalmente vence é a realidade desvelada na dimensão e aparência das coisas miúdas, das pequenas porções de vida, como se dá no conto Cidade-mundo.
São estas e mais tantas outras histórias que, de forma breve, concisa e sempre carregada da mais funda expressividade humana, só pensam nas dores, amores, sonhos, lutas, inquietações, ternuras, venturas e desventuras da condição humana e se oferecem como um modo privilegiado de recuperar os tempos individuais e coletivos da vida, felicidade esta tão oportuna para viver e reviver esses nossos tempos de cada dia vencendo e distraindo a morte.
Tensão significativa
A morte que está presente nos contos de Adriana Lunardi. Breves narrativas sempre centradas em situações extremas de forte tensão significativa, mescla de ficção e biografia que transcende um possível gênero, recuperando e recriando a morte de fato de escritoras da literatura mundial como Virginia Woolf, Dorothy Parker, Ana Cristina Cesar, numa atmosfera de Vésperas[4] de um último dia.
Nesse contexto significativo de fabulação, sobretudo quando um conto por nocaute acontece, vale lembrar Jack London, ativista social e um dos primeiros prosadores a alcançar celebridade mundial. Não por acaso também, entusiasmado como era por todos os componentes da condição humana, tinha uma paixão tão excitante pelo boxe que chegava a levar um par de luvas em suas constantes viagens e desafiar alguém para uns rounds. Como ele mesmo confessava, nunca teve um bom punch, mas na opinião dos seus leitores, sem dúvida, aparecia como um dos maiores contadores de história de todos os tempos.
É vastíssima a sua obra e igualmente relevante a sua vocação para nocautear o leitor com o impacto de sentidos da sua prosa, como acontece, apenas a título de ilustração, no conto O jogo. Em uma das diversas narrativas breves sobre boxeadores, London trata do lado cruel da existência num ringue, espaço referencial e alegórico com forte dimensão humana.
É no mínimo um modo de fabular “mordente”, lembrando mais uma vez Cortázar, que acerta com uma palavra a natureza pungente, provocante, não poucas vezes sensivelmente esquiva e, ao mesmo tempo, tão reveladora dos contos.
E, para pôr um ponto final provisório nesse breve estudo que acredita na arte de contar como gesto imprescindível da arte de viver, vale também lembrar que a memória assimilada dessas breves histórias resulta em matéria utópica, fazendo o leitor acreditar num tempo muito melhor e mais generoso para cada um de nós leitores passar e repassar o tempo como um modo, cada vez mais pleno de sentido humano, de estar dentro da arte e dentro da vida.
NOTAS
[1] O termo fabulação aqui tem o sentido de contar fábulas e também de força do imaginário que está na origem do homem, na fonte da vida, na aventura do conto.
[2] CANDIDO. Antonio. “O direito à literatura” in: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, São Paulo: Duas cidades, 2004, p. 169.
[3] CORTÁZAR, Julio. “Alguns aspectos do conto” in: Valise de cronópio. Tradução de Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 153.
[4] Vésperas é o título da coletânea de contos em que autora celebra, com sensível inventividade literária, traços de vida e obra de outras escritoras: Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Sylvia Plath, Zelda Fitzgerald, Júlia da Costa, Colette.