Os contistas nĂŁo me levem a mal, mas Ă© mais fácil encontrar bons romances do que bons livros de contos. Primeiro, pelo Ăłbvio, porque há mais romances sendo editados desde sempre, Ă© uma preferĂŞncia do mercado editorial (e dos leitores?). Segundo, Ă© bem difĂcil achar certa unidade em um livro com várias narrativas, Ă s vezes com histĂłrias e formatos bem diferentes — o que tambĂ©m pode ser um trunfo, mas apenas em exceções.
Por isso, quando encontro um grande livro de contos, faço questĂŁo de espalhar a notĂcia. Friday Black, estreia do norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah, Ă© uma reuniĂŁo de narrativas curtas que empolga como os melhores romances. Publicado nos Estados Unidos em 2018, foi editado por aqui no final de 2022. E saiu por conta do esforço do tradutor RogĂ©rio Galindo, que apresentou o livro a várias editoras atĂ© que fosse publicado pela FĂłsforo.
Poderia começar falando de qualquer uma das 12 histĂłrias (todas excelentes), que sĂŁo diferentes entre si, mas ainda assim possuem a tal unidade que faz tĂŁo bem (na maioria das vezes) aos livros de contos. EntĂŁo começo pelo começo. A primeira histĂłria, Os cinco de Finkelstein, Ă© certamente uma das melhores do livro. É um conto forte, contestador e com uma fabulação incrĂvel. Ainda assim, Ă© narrado de uma forma muito sĂłbria. Tanto Ă© que dei uma googleada para saber se a histĂłria nĂŁo havia mesmo acontecido — porque parece e poderia ser real.
Nana (vou chamar o escritor assim, porque é o nome mais fácil que ele tem) relata o assassinato de cinco crianças perto de uma biblioteca por um homem branco chamado George Wilson Dunn. Ele decapitou as crianças com uma (pasmem!) motosserra porque “se sentiu ameaçado por jovens negros”, que ao invés de estarem lendo, estavam à toa fora da biblioteca.
Quem narra a história é Emmanuel, jovem e igualmente negro que busca um emprego e luta para driblar o preconceito diário a que é submetido — como ser seguido por seguranças no shopping, algo bem rotineiro no nosso Brasa também.
Todas essas histĂłrias sĂŁo permeadas por um espectro chamado racismo. Mas a habilidade de Nana Ă© tamanha, que esse elemento de crĂtica social Ă© incorporado Ă narrativa de tal forma que Ă© impossĂvel chamar Friday Black de panfletário, na pior acepção da palavra. Ainda que o seja, na melhor acepção do termo.
O conto Ă© o mais longo do livro e cheio de nuances. Como a “escala de negritude” que Emmanuel cria para cada situação vexatĂłria que passa por causa da cor. Se está vestido como um rapper, o Ăndice aumenta, assim como quando entra em algum comĂ©rcio sozinho e de gorro. O desfecho injusto do julgamento do branco decapitador de crianças negras causa uma onda de revolta, e Emmanuel entra nessa e nĂŁo se dá nada bem.
Ambiente opressivo
A questĂŁo racial perpassa tambĂ©m O hospital onde, em que um jovem negro tenta dar conta das idas e vindas a um hospital onde o pai está internado. O que guia a histĂłria Ă© o pacto que o narrador, um aspirante a escritor, faz com uma entidade chamada “Deus de Doze LĂnguas”. “Ele tinha prometido que eu melhoraria nossa vida. Que eu poderia usar o poder que ele tinha me concedido para mudar as coisas.” “As coisas” nĂŁo saem tĂŁo bem como o planejado e o conto termina de forma surpreendente, em uma espĂ©cie de dia de fĂşria do narrador.
Nana volta ao “sobrenatural” em uma história ao mesmo tempo divertida e deprimente. Cuspindo luz narra como Superbalofo, um “solitário desagradável” que sofre bullying na universidade, mata uma colega com um tiro na cabeça e depois se suicida.
Os dois se reencontram no purgatório e o conto todo é um cabo de guerra entre Deirdra, a garota assassinada, e seu algoz. Ela acha que vai para um “bom lugar”, enquanto ele, que vai aos poucos se desintegrando, luta para não virar “um nada”. Os diálogos, mais uma vez de forma indireta, dão o tom do ambiente escolar opressivo nos Estados Unidos.
O conto-tĂtulo, Friday black, Ă© hilário, amedrontador e uma paulada no consumismo desenfreado dos Estados Unidos. A histĂłria se passa em uma loja de roupas no dia da maior promoção do comĂ©rcio americano, a Black Friday.
Quem narra é o melhor vendedor da loja, que segue firme tentando bater “as metas” e se manter como o primeiro da equipe. Com um toque surrealista, os clientes são descritos como verdadeiros zumbis sedentos por calças, jaquetas e acessórios, que arrancam membros uns dos outros para conseguir os melhores produtos. É um ótimo conto, que tem a cara dos filmes de George Romero.
Os contos No varejo e Como vender uma jaqueta, segundo o Rei do Gelo têm a mesma temática. No geral, mostram como o capitalismo gera demandas e necessidades ilusórias e como isso afeta a mente das pessoas, que veem no consumo uma razão para viver. Tudo isso torna ainda mais impressionante o fato de Friday Black ter se transformado em um best-seller da famosa lista do New York Times.
Nana acaba de publicar nos Estados Unidos seu primeiro romance, Chain-gang all-stars, sobre duas mulheres negras tentando sobreviver no sistema carcerário privado. Torço, sinceramente, para que o romance seja tão bom quanto o grande livro de contos que ele escreveu.