Contornos complexos

Sutileza de elementos e de camadas articula o clima de suspense nos contos do russo Nikolai Leskov
Nikolai Leskov. Pintura de Valentin Serov
01/12/2012

A obra do escritor russo Nikolai Leskov é baseada, sobretudo, em uma genial construção de personagens, homens e mulheres carregados das mais absurdas e fascinantes características. Os dois livros de contos de Leskov, A fraude e Homens interessantes, lançados há pouco tempo pela Editora 34, dão uma boa medida da amplitude alcançada por Leskov na tarefa de dar vida àquilo que, nos escritores comuns, é apenas tinta e papel. Trata-se, além do mais, de um importante aprimoramento do cenário tradutório brasileiro, especialmente no que diz respeito à literatura russa.

Interesse pelo bruto
Os Leskov eram uma dinastia eclesiástica: sem interrupção, o tataravô, o bisavô e o avô de Nikolai ocupavam-se das almas da cidadezinha de Leski (distrito de Karatchev), exatamente o lugar do qual retiraram o nome da família. O pai de Nikolai foi o primeiro a romper a tradição — o que desencadeou a ira do avô e também o distanciamento de casa. Com isso, Nikolai aprende desde cedo a estar em movimento, fazendo os mais variados tipos de trabalho, uma vez que a família era grande e desprovida de recursos (o desvio biográfico, portanto, se justifica na medida em que podemos observar como certos elementos dos primeiros anos do escritor serão fundamentais para o desenvolvimento de sua obra literária, que só aparecerá muitos anos depois).

Mais tarde, já adulto, Leskov encontrará um trabalho que o fará retornar aos hábitos dos primeiros anos — as viagens e o contato com os mais variados tipos de gente. Esse reforço na experiência será o primeiro passo em direção à consolidação de sua voz como escritor, algo que só começou a acontecer quando ele já havia passado dos 30 anos de idade. Para a maioria dos escritores, a experiência humana e a artística caminham em paralelo, em um processo de osmose; para alguns poucos (como Rimbaud, por exemplo) a aventura artística parece antecipar, parcial ou completamente, o momento da plena maturação do sujeito; para um terceiro grupo, como para Leskov, a prática da literatura é precedida largamente pela descoberta paulatina do mundo. As páginas desses escritores parecem, às vezes, explicações tardias dadas a eles mesmos, cujo foco é sempre um conjunto de momentos particulares vividos e personagens vistos.

Dos anos 30 aos anos 80 do século 19, o tema fundamental da literatura russa foi o campo — e, por analogia, o camponês. Para os grandes escritores de origem aristocrática, a figura do camponês permaneceu substancialmente estranha. É com Gógol que o mundo do campo, a Rússia profunda, começa a aparecer em primeiro plano, e em Almas mortas o centro de interesse é transportado da cidade ao interior. O mundo agrário preocupava Gógol porque era visto como o nó fundamental do problema nacional que tanto o afligia — uma consciência das contradições russas que Gógol só alcançou plenamente quando estava no exterior, morando na Itália.

É com Nikolai Leskov, no entanto, que a questão ganhará contornos mais complexos. A grandeza de sua ficção está, entre outros elementos, no fato de ter indicado o camponês do seu tempo como uma espécie de herói russo — sem, com isso, violentar a realidade e suas contradições inerentes. As histórias de Leskov mostram um escritor fascinado pelo aspecto bruto da vivência russa — “bruto” no sentido de um “diamante bruto”, algo que somente a contragosto se revela pleno de beleza. Leskov está interessado nos modos de vida arcaicos que sobrevivem no campo, o tormento das ocupações e das relações viciadas.

Camadas
No lugar do herói único e da narração monolítica, Leskov apresenta a realidade da vida feita de um transcorrer de acontecimentos e de personagens reciprocamente condicionantes, cada um com sua dignidade e com seu direito de reconhecimento. A partir desse procedimento, Leskov faz de cada um de seus contos uma forma aberta, suscetível às transformações imprevisíveis. Como no Tristram Shandy de Laurence Sterne, o conto em Leskov é feito a partir de uma contínua mudança de papéis: o herói principal vira secundário, freqüentemente terciário e, em alguns casos, pode até desaparecer antes do fim da história.

Leskov leu e apreciava muito o livro de Sterne, porém é preciso ter cuidado antes de afirmar uma direta correlação entre os dois autores e suas poéticas. Sterne cria situações ligeiramente paradoxais, por vezes inconsistentes, cujos desenvolvimentos provocam uma particular forma de humorismo, uma ironia que mantém a primeira camada de sentido do texto sempre acessível. Leskov, por outro lado — e isso fica bastante evidente tanto nos contos de A fraude quanto nos contos de Homens extraordinários – , procura um efeito diverso, por vezes contraditório àquilo que se encontra no Tristram Shandy. As peripécias e os eventos cômicos de suas histórias não constituem fins em si mesmos, servindo, contudo, para a colocação de um problema maior: o contraste entre os ressentimentos e os desejos de “evolução”, ou ainda, o embate permanente que existe dentro de cada indivíduo, no qual os sentimentos são dissecados, por parte de Leskov, no momento exato de suas emergências e conflitos.

Mas o aspecto digressivo de Sterne está sem dúvida presente também em Leskov. Para o escritor russo, cada digressão corresponde a um tema e a uma fisionomia particular, que deve ser rastreada e reforçada, de forma enigmática, ao longo de todo o relato. Trata-se de mais uma camada da ficção de Leskov: para além da satisfação que decorre da leitura de uma história criativa e bem escrita, está a progressiva descoberta de todos os mínimos elementos que Leskov posiciona no transcorrer dos contos, que explodem, ao final, em uma epifania de compreensão muito característica.

Desvios
Talvez por conta da consciência de viver um período de transição e, especialmente, o fim de uma época (ocaso do século e também de uma Rússia imperial), Leskov experimentou muitos gêneros, muitas formas de escrita e muitos registros literários. Os contos que agora temos a oportunidade de ler são exemplos dessa pulsão experimental de Leskov: neles, o registro documental por vezes se mescla a visões religiosas, delirantes, a trechos de memórias, a transcrições de diálogos, numa espécie de tentativa de fazer com que a fórmula do ofício literário coincida com o conteúdo das histórias. O elemento que dá coesão a todos esses registros é, sem dúvida, a fluidez da prosa de Leskov, sua capacidade de reconstruir, a partir da sintaxe, a coloração específica de cenas muito imagéticas. Como acontece, por exemplo, no conto A voz da natureza, do livro A fraude:

De repente, sem quê nem pra quê, um homem rompeu de trás da multidão, aos empurrões, e correu direto para a estação, onde o marechal de campo continuava deitado sobre o lençol que cobria o sofá sujo, e pôs-se a gritar:

— Não agüento mais, eleva-se em mim a voz da natureza!

Todos olharam para ele, perplexos — mas que grosseirão! Os moradores locais, todos eles, conheciam esse homem e sabiam que o seu título não era alto, já que não era funcionário civil nem militar, mas só encarregado do pequeno depósito local da intendência ou do comissariado e, junto com as ratazanas, roía torradas do erário e lambia botas, tendo conseguido, com a roedeira e a lambição, uma casa bonitinha, de madeira e com mezanino, bem em frente à estação.

Esse trecho condensa também o sistema digressivo desenvolvido por Leskov em seus contos. O marechal de campo, adoentado, aparece em toda a primeira parte da narrativa e, com sua chegada à cidadezinha, somos apresentados àquele que nos guiará ao longo da segunda parte — o homem que recebe em si “a voz da natureza”. A descrição do homem é abrupta como sua chegada, e feita de forma indireta, a partir daquilo que “os moradores locais” pensariam sobre ele. O marechal de campo, a partir daí, divide as atenções com o “grosseirão”, aceitando o convite de ficar em sua casa. O clímax do conto se dá com o cruzamento das duas vidas e com uma subterrânea remissão a um passado comum: o “grosseirão” afirma que ele e o marechal se conheceram alguns anos antes, porém, por delicadeza, diz ao militar que lhe dará tempo para relembrar por conta própria. O foco da narrativa, na primeira parte, é intensificado sobre a figura do marechal, para em seguida dividir-se entre este último e o “grosseirão”, atingindo uma espécie de resolução oblíqua (um pouco daquilo que veremos em Hemingway algumas décadas mais tarde).

Alguns contos, no entanto, são pautados pela clássica resolução de um mistério — algo que permanece desconhecido ao longo de toda narrativa e que, ao final, se revela fonte de engano. O conto A fraude, por exemplo, já indica esse percurso desde seu título. Um grupo de militares russos está na Polônia, temporariamente instalado na casa de um rico comerciante. A beleza da esposa do anfitrião começa a causar problemas:

Sem dúvida, teve início uma agitação nos corações. Entre nós, havia um oficial que chamávamos de Faublas, porque era surpreendente como logo conseguia encantar as mulheres; se acontecia de passar em frente a uma casa onde estivesse sentada uma burguesinha jeitosa, ele dizia não mais que cinco palavras: “que meigos olhos de anjinho”, e, de repente, estavam estabelecidas as relações. Eu próprio era devotado à beleza até a loucura. No final do almoço, vi que ele já tinha a fuça em brasa e os olhos como brocas.

Até o detive:

— Você está sendo inconveniente.

— Não agüento — respondeu —, e não me atrapalhe, eu a estou despindo em minha imaginação.

A fluidez da prosa de Leskov está aliada, de forma ainda mais exacerbada neste conto, a um progressivo adensamento do suspense. Ao contrário de Dostoiévski, no entanto (e também de Poe), o suspense em Leskov não é da ordem do crime ou da conspiração. A expectativa criada por Leskov em seus textos tem sempre algo de vívido, de luminoso, como se acontecesse sempre durante o dia, o que tem íntima relação com o aspecto irônico da prosa de Leskov (a “fuça em brasa” e os “olhos como brocas” do jovem oficial, além de sua resposta: “não me atrapalhe, eu a estou despindo em minha imaginação”). Relendo a história depois da revelação final, percebem-se os pequenos desvios que Leskov agrega à narrativa, que estão, simultaneamente, presentes e escondidos, revelados e cifrados (o que revela um esforço hercúleo em dar uma pátina de facilidade e frivolidade ao texto). É já um clichê afirmar que todo bom conto leva à releitura — e os livros de Leskov certamente confirmam a regra.

A fraude e outras histórias
Nikolai Leskov
Trad.: Denise Sales
Editora 34
224 págs.
Homens interessantes e outras histórias
Nikolai Leskov
Trad.: Noé Oliveira Policarpo Polli
Editora 34
328 págs.
Nikolai Leskov
Nasceu em 16 de fevereiro de 1831, na Rússia. Depois de abandonar a escola e trabalhar no comércio, começa a publicar contos em 1862, em São Petersburgo. A partir daí, lança inúmeras obras, nos mais variados gêneros, com destaque para o romance Sem ter para onde ir e para a novela Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Morre em 5 de março de 1895, de uma doença cardíaca.
Kelvin Falcão Klein

É crítico literário, autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de Nuvem, 2011). Escreve em falcaoklein.blogspot.com.

Rascunho