Vou morar numa égua. Cansei dessa vida de apartamento. A idéia não é original. Vou imitar o protagonista de Beleza, conto de abertura de O professor de piano, novo livro de Rinaldo de Fernandes. Não sei onde vou achar uma égua para roubar, como fez o personagem, mas gostei da proposta. “Andar montado pela cidade, indo e vindo. Era o que eu queria agora.”
Ele chamou a égua de Beleza. Deu na telha roubá-la depois que foi despejado por não pagar o aluguel e também depois de ser expulso da casa do primo que o abrigou um fim de semana. Saiu por aí, indo e vindo pela cidade, montado em Beleza. Antes, trabalhava no posto, de frentista. Quando ia à boate em frente, os clientes do posto riam. “Como se dizendo: olha aí, é o cara do posto. Eles só me viam no posto atendendo, atirado, e pensavam que eu era um pamonha, que não gostava da vida. Só eles podiam estar ali, apertando aquelas garotas?”
Beleza é um conto de muita tensão social, daqueles que nos fazem sair por aí querendo roubar uma égua para morar. O frentista é invisível. Não, ele não é invisível. Ele é tratado com invisibilidade pelos clientes. Isso, acho que essa é nova. Ele é tratado com invisibilidade por nós. Isso, nós mesmos. Você já deu bom-dia ao frentista do posto, já perguntou o nome dele, onde mora, quantos filhos tem? Não, né? Eles são invisíveis para nós. Podemos até reconhecê-los no boteco da esquina, mas não cumprimentamos. O cara é só um frentista, porra. Quer ser alguém, roube uma égua. Cuidado, a próxima vez que você não cumprimentar o frentista do posto, ele pode aparecer montado numa égua e enforcá-lo com uma corda.
Mas isto é conto ou é crônica, cacete? O Rinaldo diz que é conto. Mas pode ser crônica. Eu acho que é crônica. Acho que o Rinaldo já roubou uma égua e mora nela. Claro, porque escritor também é invisível, ninguém cumprimenta. Ninguém acha que eles podem ir à boate apertar mulher. Será que o Rinaldo já enforcou alguém com uma corda? Rinaldo, empresta a corda. Aí, só me falta encontrar a égua.
Mas é conto ou crônica? Tem uma parte muito séria (para não dizer chata) do livro, chamada de posfácio (porque não chamam de epitáfio? Afinal, o posfácio, ou o prefácio, tudo isso, é para matar o escritor e o leitor). Mas vamos lá. A tal da Regina, que fez o epiposfácio, disse que o Mário de Andrade disse que conto é tudo aquilo que a gente chama de conto. Ah, é?, então eu digo que crônica é tudo aquilo que a gente chama de crônica. Qual a diferença? Sei lá, crônica é verdade?, conto é mentira?
É mentira morar numa égua? Agorinha mesmo é que vou procurar uma égua para morar. Conheci um cara que morava num carro. Verdade. E para parecer mais mentira, vou te dizer que ele morava no carro num país que no inverno tinha neve e fazia até 10 graus negativos. É crônica ou conto? É crônica, porque é verdade. Parece conto, porque parece mentira. Quer mais, o nome dele era Zé do Chifre. A mulher plantou os cornos nele e ele foi para o carro. Não lembro a marca, mas vou inventar que era um Nissan, velhinho. Ele morava num Nissan. Quer rir? O cara que morava no carro trabalhava na imobiliária, ajudava os outros a encontrar casa. Desculpe, essa parte não é do livro do Rinaldo. Mas morar numa égua é parecido como morar num Nissan a 10 graus abaixo de zero.
E o tal do professor de piano? E não é que o professor rouba o carro do aluno. Só faltou chamar de Beleza. No primeiro conto, o cara rouba uma égua. No segundo, o professor rouba um carro, no terceiro, uma bicicleta. Brincadeira, Rinaldo ficou no roubo do carro. O professor acha que o aluno anda de olho na mulher dele. A vingança é contra o carro. “Nunca mais seus pneus com o barro amarelo da estrada do meu sítio.” Belo conto, daria uma crônica. O professor, quando morava em apartamento, gostava de tocar Mozart para a frentista do posto vizinho; Brahms para o borracheiro; Tom para a balconista. “Eu achava que música era isso mesmo, era para ir para as pessoas simples.”
Belo conto, Rinaldo. Dá quase vontade de desistir de roubar uma égua. Talvez eu roube o Nissan do Zé do Chifre, até porque a mulher dele, já roubaram.
Vida amalucada
Esqueçamos a égua, o Nissan, vamos para o restaurante nos confins do mundo. A descrição é perfeita:
O garçom cochila, a cortina de tiras na porta da cozinha se retorce com o vento. A cozinheira, agora recostada no balcão, estira o olhar morto na extensão do restaurante. A sombra de um dos coqueiros azula a areia próxima a um velho balanço de criança.
A coisa parece tranqüila, ainda mais com cortina de tiras, mas não vai ficar. O homem que vem de barco para o encontro amoroso vai cometer um erro. Ele vai menosprezar a força do mendigo que rouba seu tênis esquecido no restaurante. A calmaria do restaurante vai virar cenário de horror. Da égua, do carro, vamos parar no barco que, no mar, vira uma poça de sangue. E o narrador do conto, a testemunha de tudo, acaba protagonista, sozinho no barco, justificando o nome do conto, Ilhado.
No conto O cavalo, o animal assiste à briga do casal. O cenário é diferente de Beleza, onde o ambiente era pobre e a égua vira opção de moradia. Aqui é uma casa nobre, em que o cavalo passa pelo portão aberto. A moça deixa o marido e sai a cavalgar por aí, não para morar no animal, mas para descobrir que a liberdade pode estar às costas de um cavalo.
Os contos de Rinaldo beiram o fantástico, mas carregam muito dessa nossa vida amalucada, no lombo de uma égua. Tem material de crônica de sobra, transformado em conto com umas pinceladas de mentira, de um exagero possível. Ninguém vai morar numa égua ou num cavalo (num Nissan é possível), mas que dá vontade, isso dá. É só ler Oferta, conto que deve acontecer todas as noites em centenas de cidades brasileiras onde garotas menores ganham a vida com o corpo. “Assim que a cigarra para de zoar, a menina vem, ergue a perna, senta-se no meu colo. Passa a mão na minha barba, põe a língua na minha boca, toca-a na minha orelha. A folha da bananeira treme lá fora”.
A tal da Regina, no posfácio, disse que Rinaldo é mestre do conto. Exagero, obviamente. Mestre do conto, só existe um, e não vou dizer quem é. Mas Rinaldo exibe em O professor de piano o texto seguro de sempre, aliado à criatividade extraída deste mundo contemporâneo, onde só falta a gente morar numa égua para completar a bizarrice.