“Para todos os efeitos, estamos felizes”: é este o verso que inaugura Instruções para morder a palavra pássaro, antologia póstuma da poeta potiguar Assionara Souza (1969-2018). Com projeto gráfico impecável e trabalho atento com o texto da poeta, apresenta-se ao leitor uma excelente porta de entrada para a obra da autora nascida em Caicó (RN), mas que passou grande parte da vida em Curitiba (PR).
O segundo verso do livro de imediato desfaz a esperança breve, o conforto tópico do “estamos felizes”: “Não vamos considerar”… A poesia aparece sempre maleável pelo tempo, pela história (a história de suas sílabas e da mão que as escreve, claro, mas também a história dos olhos que as encontram). O texto na página pode ser constantemente outro, e lemos essas Instruções no Brasil, em 2022 — onde e quando outra vez há fome e o silêncio do cansaço; onde e quando vive um povo extenuado. A única sequência possível para o verso de abertura é agora o “porém”; não estamos, afinal, felizes.
Essa palavra pássaro chega às nossas mãos pelo cultivo de Bárbara Tanaka, editora e fundadora da Telaranha, que recebeu o manuscrito de Assionara há quatro anos, quando a poeta enfrentava um câncer. E a pergunta que nasce pode ser apenas uma: haveria um modo de dizer (alguns diriam “uma enunciação poética”) que desse conta ao mesmo tempo da ausência e do que vem? Aquilo que vem, afinal, mais do que o futuro, evoca um presente permanente. Apresenta-se aqui, por outro lado, o exercício de se ler poesia conhecendo seu desfecho — a morte da autora.
Testamento poético
O trajeto de Assionara como escritora não tem a marca da restrição pelo gênero — escreveu contos e poemas, ficção e não ficção. Melancólico mas não sisudo, Instruções para morder a palavra pássaro se destaca em sua obra vasta. Mas haveria modo de lê-lo sem enxergar nele um testamento poético? Uma confissão pelo verso? Desdobra-se ali um mapa das ausências, dos nomes que ecoam por trás de páginas preenchidas.
É uma constelação de últimos gestos: a poeta conversa com amigos (“Você, depois de uma tosse longa,/ Fala-me do romance que está lendo”; “Encontro Laura no meio da tarde”), vagueia pela cidade (“As ruas, seus espasmos de luz em meio às sombras/ Tatuagens sutis de conversas e risos”), escorre pelos dias (“Hoje, somente hoje/ Além do que estava previsto/ Uma felicidade passeia”), e às vezes se nota o ímpeto da despedida (“E eu penso: está tudo bem/ A finitude é tão intensa”). Olha-se para tudo travestindo o gesto de fascínio da criança que descobre as mãos.
Nota-se no livro a sobreposição dos lugares que cada poema ocupa, o tensionamento de certas dicções: há uma voz que é do riso, há uma voz que é do amor, há uma voz que cantarola baixinho enquanto se lava a louça acumulada do fim de semana — Assionara apresenta em seus últimos poemas uma voz que, consciente do desfecho, conserva ao máximo o sabor das paisagens banais: “Você nua é tão bonita”; “Uma criança manca dança/ Mais lindo que qualquer bailarino”; “As nuvens, nesse juntar-se e afastar-se,/ Sabem de ti mais do que os que te fazem sombra no centro de tua luz”; “Voltamos para casa aos domingos/ Com aquele pedaço de torta/ Dentro do tupperware/ ‘Não misture com os teus/ Semana que vem, busco lá’”. No domingo, olhar para o que vem.
O domingo, aliás, é presença constante como operação metonímica — sempre final e começo, abriga a memória da semana que passa e projeta, com uma tristeza própria, os dias que vêm. É também pelo domingo que se entrecruzam o amor da poeta, a quem a voz poética se dirige, e o destino incontornável — com a ambiguidade bem-vinda do clichê que cerca a imagem de quem escreve poesia: “Sua mãe não quis comentar/ Mas sei que ela sofreu na pele/ Por saber que você estava/ Completamente envolvida/ Com alguém ‘sem futuro’”.
Individualidade marcante
Assionara Souza não parece preocupada com tradições. A sua palavra pássaro vai de Belchior a Prévert, de Rimbaud a Hilda Hilst, mas há uma individualidade marcante no modo como a poeta compõe. Zombeteira de certo contexto literário em que brotam volumes de poesia a cada esquina, em que cada poeta “busca sua voz”, ela saboreia a ironia de partir antes do encontro com seus leitores e dedica versos à “nova geração”: “Ora, a nova geração é exatamente/ Isso que você está vendo/ Carradas de ansiolítico e fones de ouvido”.
As Instruções para morder a palavra pássaro exibem um certo “maquinário de sal e areia”, como a poeta afirma a certa altura em meio a poemas nos quais se infiltram Franz Kafka e Patti Smith. A contaminação do leitor pelo gesto nobre do apaixonar-se, o domínio do som (esculpido com cinzel de grande compositora), a tal Curitiba, “ilha carnívora”, apresentada pelas suas sombras e pelos antídotos às pequenas solidões — tudo isso faz da obra de Assionara um expoente da poesia que se pode produzir hoje, neste agora de Brasil.
Conserva-se a última beleza, o eco da palavra de quem parte e toma parte. “A energia circulando, tudo vivo e moldável/ Uma borboleta para o voo na altura do teu nariz/ Que presente, meu bem/ Estonteante e sólido e cheio de diversão/ Não façamos projeções/ Os deuses não compreendem o tempo fora do tempo/ Qualquer segundo perto de ti calibra a órbita das estrelas.”