Conjunto vazio

Em "Resta um", de Isabela Noronha, mãe procura filha em uma equação sem resposta
Isabela Noronha, autora de “Resta um”
26/03/2016

A vinheta do Fantástico, o fim de semana se consumindo em angústia. Assim, domingos e domingos se estendem na trama de Resta um, romance de estreia da mineira Isabela Noronha.

Era uma tarde comum e monótona quando a filha de uma professora de matemática vai visitar uma amiga que mora bem perto e não volta. Com o sumiço de Amélia, Lúcia, treinada pela precisão dos números a ser rígida e exata, passa a se dissolver em argumentos e cálculos que de nada valem em meio a um desaparecimento repleto de incógnitas. A universal cadeia numérica não cabia nos parâmetros capazes de medir a dor. Mas, afinal, o que caberia neles?

Por quê? Quanto? Quando? A objetividade que sempre estruturara o modo de pensar e agir da bem-sucedida professora perde toda a função prática em uma missão impossível e, até então, inimaginável. Porque nós, como humanos, sempre pulamos essa parte. Botar a incerteza no bolso é cômodo, melhor nem pensar. E o cotidiano comum da família completa: Lúcia, José e Amélia tranquilos e vivos no começo do livro nos vem jogando essa bomba no colo: pode acontecer com você, amigo. Comigo, conosco, com qualquer um.

Com o estrondo repentino que ensurdece a razão de Lúcia, vem a quebra de uma rotina que tinha tudo para ser perfeita, um marco sufocante para a mulher que escreve e para a gente que lê. A narradora tira o foco da profissão que tanto ama, vê seu casamento se tornar cada vez mais frágil sem ter a menor sede de recuperá-lo e abandona a si mesma para partir, sem nenhuma bagagem, em busca de um vazio que precisa ser preenchido.

Paralelamente à voz de Lúcia, se desenrola a narrativa de Dona Esmê, uma idosa com problemas mentais, que vive com Kaique, seu cruel filho adotivo, em uma favela na capital paulista. A princípio, não fica claro o papel desse núcleo na história, mas ele desempenha uma função crucial tanto no ritmo do livro, que se torna cada vez mais acelerado e instigante conforme o centro dos acontecimentos se intercala entre dois cenários bem distintos, quanto no sentido do relato, que gradualmente se integra num genial quebra-cabeças.

A propósito, a loucura de Dona Esmê merece destaque. Isabela Noronha consegue traçar um fluxo psicológico confuso, controverso e polêmico, coisa difícil de um leigo entender. Exemplos disso são a maneira ingênua como a senhora relata o abuso que sofreu do padrasto na adolescência — fator que provavelmente tenha desencadeado ou, ao menos, favorecido a formação de seu questionável panorama mental —, sua forma caótica de associar corpo, alma, sangue, seiva, amor, paixão, morte e vida e compreender a realidade, bem como o seu jeito de se referir à agressividade de Kaique.

De capítulo em capítulo, indo da sanidade louca de uma mãe perdida à loucura sã e tranquila de uma idosa sem escrúpulos e extremamente perturbada, a autora transita delicadamente por dois eixos centrais da história e nos leva com ela.

Personagem ausente
Um laptop fechado e vestígios da maquiagem que Amélia usou antes de sair de casa pela última vez. A mãe não queria que ela se pintasse tão nova. Deu uma bronca na menina antes que ela fosse embora para nunca mais voltar. Objetos pessoais e lembranças banhadas à culpa, saudade e tristeza são alguns dos poucos ícones que nos dão a ideia de quem era a menina de 12 anos desaparecida naquela tarde de domingo.

Toda a narrativa não teria o menor sentido não fossem as menções a Amélia, cuja ausência justifica o enredo. Mas a voz da mãe é o centro de tudo, é a matéria-prima para um calmante que tenta curar seu próprio desespero. Ao desaparecer, a garota deixa uma lacuna enorme na vida dos pais, que Lúcia tenta preencher olhando para trás em busca de uma autoabsolvição e olhando para frente sem perder a esperança e o norte, ainda que ele pareça invisível.

O fim de um domingo tranquilo, de um amor tão forte, o desfecho vazio, o nunca mais e a morte são, sem dúvida, medos muito presentes na fala da protagonista de Resta um.

Para a escritora e pesquisadora Carol Bensimon, autora da dissertação A personagem ausente na narrativa literária, publicada pela PUC-RS, em 2008, “obras que operam com esses mecanismos de luz e sombra, do ausente que está longe, mas perto, que não diz, mas sobre o qual dizem muito, que não age, mas conduz, essas obras que optam por esse jogo delicado de mostrar sem mostrar, têm a intenção, majoritariamente, nas suas camadas menos ou mais profundas, de refletir a respeito da morte, que nada mais é do que a ausência suprema”. O fim de um domingo tranquilo, de um amor tão forte, o desfecho vazio, o nunca mais e a morte são, sem dúvida, medos muito presentes na fala da protagonista de Resta um.

Culpa e remorso
Professora e pesquisadora dedicada, mulher rígida e centrada na carreira, a personagem principal se mostra bem diferente do padrão de mãe convencional — passiva, frágil e doce. Na educação de Amélia, era Lúcia quem ditava as regras, impunha limites e levantava a voz. Ao marido José restava o papel mais brando. Ele era um pai acolhedor, o bonzinho da história. Lúcia mostra sentir ciúme da parceria que o marido tem com a filha, mas não consegue ser diferente. E enquanto ela se dedica incansavelmente ao trabalho para atingir destaque no mercado acadêmico, o marido tem tempo para se tornar íntimo da garota. Nos poucos momentos que lhe restam com a menina, Lúcia se vê na obrigação de suprir seu tempo longe colocando ordem na casa e retomando as rédeas do ambiente doméstico — algo que os homens não são treinados para fazer.

Essa estrutura comum nos lares modernos gera remorso em Lúcia. A todo tempo a professora se sente culpada por ter demonstrado pouco do seu afeto e, com muita frequência, se lembra dos momentos que viveu com a filha, se perguntando se deixou claro seu amor ao menos nas entrelinhas dos dias. Atormentada por uma eterna dúvida: “Será que ela sabia que eu a amava”?

Isabela e as perdas
A história de Lúcia não foi a única perda relatada por Isabela Noronha. A ideia do livro nasceu quando a autora, em 2004, era repórter iniciante de um grande jornal em São Paulo e entrevistou mães de crianças desaparecidas. “Me lembro de detalhes, da mulher que tinha parado de se cobrir à noite porque o filho, onde estivesse, poderia estar passando frio, do cheiro de papel acumulado do escritório de uma delas, do nome da rua de outra: Fartura”, relatou em artigo no blog da Companhia das Letras.

Quando cursava Criação Literária na Inglaterra e precisou escolher o tema do livro com o qual concluiria o curso, o assunto dos desaparecimentos lhe veio à mente com força. Daí surgiu Resta um, que, tempo depois, foi premiado com o Curtis Brown.

Em 2013, a mineira obteve destaque com outra obra: Adeus é para super-heróis, título infantil que recebeu o Barco a vapor, um dos mais importantes prêmios de literatura infantojuvenil. Na história, o garoto Tom precisa lidar com a dificuldade de se despedir de um amigo e encarar a distância e a separação. Mais uma vez, Isabela consegue mostrar com sensibilidade e delicadeza que um adeus pode se perder em arquivos, palavras e lágrimas, poder matar, apagar ou destruir qualquer possibilidade. Menos a dor de quem fica.

Resta um
Isabela Noronha
Companhia das Letras
300 págs.
Isabela Noronha
Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1980. Jornalista e mestre em Criação Literária pela Universidade de Brunel, na Inglaterra, onde Resta um recebeu o prêmio Curtis Brown Prize. Publicou também a obra infantojuvenil Adeus é para super-heróis, vencedora do prêmio Barco a vapor, em 2013.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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