Quando lemos Anne Carson, temos basicamente duas possibilidades: ou nos sentimos idiotas ou muito espertos. E a alternância entre esses dois estados, muito comum, num mesmo livro dela. Nessas leituras, sentir-se esperto o tempo todo é provavelmente ser idiota.
A escritora canadense nascida em junho de 1950, professora de grego antigo em diversas universidades do Canadá e dos EUA, faz em sua obra publicada e premiada que nem Tom Zé na música Tô: explica para confundir, confunde para esclarecer.
Num ensaio dela com linguagem bem clara, conversada, você termina pensando que há algo mais ali, que não pescou bem a proposta ― e quando volta a ele essa impressão se confirma. É que a proposta dela não é explicar, mas expor situações e reflexões (quando funciona o verbo esclarecer, ampliar). Isso aparece de maneira mais fluida e evidente ou de maneira enigmática, quando Carson ousa na mobilização desse arsenal de conhecimento e investigação por meio da linguagem, trazendo a poesia para sua prosa. Ou logo empinando a prosa, em versos, investindo na fluidez e na concisão. Nesses textos com mais exercício de linguagem e ideias incomuns, terminamos de ler com incertezas, perguntas, novas conexões, desejando e precisando reler. Esperto e idiota são, afinal, dois lados da moeda, parecidos demais um com o outro, um jeito de falar que humildade e curiosidade são qualidades essenciais de leitores. Sem humildade e curiosidade não se aproveita bem uma leitura (ser esperto & idiota). Mas esses elementos nos faltam mais que vitamina D na pandemia.
Em uma entrevista que está no YouTube, a escritora e professora de escrita Maria Negroni diz para Anne Carson, a respeito de seus livros:
A imagem que faço, Anne, é a de colonização dos outros gêneros, trazendo poesia para dentro de todos, fazendo a poesia acontecer em lugares inesperados.
Com armários de cozinha atrás de si, aparentemente, Carson recebeu a leitura de Negroni com um murmúrio do tipo hum, interessante, e respondeu:
Não acho que esteja tentando ser surpreendente. Só que fico entediada em tentar fazer qualquer coisa repetida. Ou como sempre foi feita. Não vejo razão para não mudar os formatos e permitir que seus limites se toquem, se mesclem ou investiguem uns aos outros. Eu não tenho isso como método, me parece apenas um modo natural de ver o mundo, juntar as coisas e ver o que acontece.
Ainda bem que ela não é química. Esse pensamento talvez tivesse explodido já metade do Canadá, se pensarmos em literatura e poesia como potentes elementos da tabela periódica.
Recebi para esta resenha os livros Sobre aquilo em que eu mais penso: ensaios e A beleza do marido: um ensaio ficcional em 29 tangos. Mas não tendo conseguido dar conta da autora nesses dois livros, comprei outros dois, Autobiografia do vermelho: um romance em versos e Falas curtas. Por quê? Por causa desse tédio dela, que a impulsiona a não se repetir, mesclar gêneros literários, pôr poesia na prosa e prosa na poesia com liberdade, palavra muito dita, celebrada, mas sempre, sempre estranhada. Precisava ver como se dava essa liberdade de Anne Carson em diferentes livros. E a coisa toda é de dar uma inveja danada.
Porta de entrada
Sobre aquilo em que eu mais penso é organizado por Sofia Nestrovski e Danilo Horta (informação que está na capa, assim como da tradução, uma atitude prática de respeito que a Editora 34 dá e bem poderia ser seguida por todas as editoras). O livro reúne ensaios que não foram originalmente publicados juntos. A ideia, explicada no prefácio, era demonstrar justamente essa dança marcante da artista, suas diferentes abordagens do ensaio como gênero. Entre os quatro livros da autora, que estão diante de mim agora, diria que este serve de melhor porta de entrada.
Tem Grécia Antiga em praticamente tudo. Mas ela não é chata, muito menos rasa e imprecisa, como o pai da noiva no filme Casamento grego. As obras de Carson, uma das mais respeitadas estudiosas da cultura grega antiga no mundo, traçam paralelos de escritos incompletos de quase três mil anos atrás com obras do século 20, juntando por exemplo a poeta Safo com Simone Weil, Virginia Woolf com Tucídides. E muito Homero aqui e ali.
Logo na abertura, o texto Desejo e sujeira: Ensaio sobre a fenomenologia da poluição feminina na antiguidade é como um tratado de origem da opressão sobre a mulher. É um ensaio sobre a essência do ensaio, buscando clareza nas exposições, incluindo citações que mostram de onde partem suas ideias e ao mesmo tempo ampliando o repertório do leitor, permitindo que acompanhemos suas investigações e pensamentos, sem cravar uma conclusão apenas. Porque o ensaio é isto: uma investigação a respeito de algo, não a defesa de um ponto de vista. Uma exposição.
Os ensaios variam de forma e tamanho ao longo da coletânea. O quinto texto, Ensaio sobre aquilo em que eu mais penso, é escrito em estrofes, quase todas com seis versos. A forma parece ter convidado a autora a uma clareza ainda maior, buscando concisão. É uma investigação/exposição tão aprofundada quanto a dos ensaios anteriores, mas com isso de diferente.
No seguinte, Toda saída é uma entrada (um elogio do sono), temos o texto em prosa, no entanto um pouco mais enevoada, como se tivesse assimilado a própria imprecisão do sono, de que ela trata, com muitas citações e paralelos, também com uma vivência pessoal ancorando a reflexão, o que sempre torna o ensaio mais vivo e único. E este é encerrado com uma conclusão. Não tinha dito que ensaio pede para não ter conclusões? Pois esta é aberta, bem aberta: um poema, uma “Ode ao sono”.
Lembra da observação da escritora argentina na entrevista? Ela viu isso, essa oferta da poesia em lugares inesperados. Mas Anne Carson lhe respondeu tirando o peso da escolha, como se tivesse cozinhado um mero arroz e feijão, apenas juntando as coisas para ver no que dá… Ah, doutora! Não é comum, não. Quer dizer, tem muita autora e muito autor que misturam prosa e verso, mas ficar instigante, relevante, não é todo mundo que consegue.
Aí, me perguntei: por que dá certo com ela, mas não com outras pessoas? Que critério é esse que valida o experimento, a estranheza que Carson apresenta e invalida ou desqualifica o de outras escritoras e escritores? Analisando os elementos de maneira separada, tenho pistas.
1) O embasamento que os anos de pesquisa lhe dão. Ela apresenta textos da antiguidade como quem cozinha com temperos ao alcance dos braços, do ladinho do fogão. Conhece e compartilha. Mais: se dá o direito de não cravar explicações fechadas, mas considerando possibilidades ― como faz com um dos fragmentos de poemas de Safo. Carson mobiliza esses conhecimentos os une a outros, de escritos contemporâneos, não eliminando o tempo que os separam, mas ressaltando elementos que estabelecem uma conversa mais pareada, abrindo ao leitor a chance de refletir sobre alguns assuntos de maneiras inovadoras (novidades do passado em nossos tempos de velhas novidades).
2) Quando Carson parte para o verso, é com muita força que ela alcança o que a poesia tem de mais desejável: concisão, deslocamento e encanto.
Assim é o primeiro poema da narrativa em versos de A beleza do marido:
Uma ferida emite luz própria
dizem os cirurgiões.
Se todas as lâmpadas da casa fossem apagadas
você poderia fazer um curativo nessa ferida
usando a luz que dela brilha.
Cara pessoa que me lê, ofereço apenas uma analogia.
Um atraso
[…]
O que está sendo atrasado?
O casamento parece.
Meu marido o chamava de lugar oscilante.
Veja como a palavra
brilha.
Esse livro tem uma personagem narradora ou eu-lírico, tratando de uma relação com um marido, de quem se separa. Há uma história, mas há principalmente reflexões sobre a relação e um forte trabalho de linguagem. O livro carrega muitas referências, as epígrafes de cada poema ou parte ou capítulo (não sei nomear nesse caso) são fragmentos do poeta inglês John Keats (1795-1821). Os títulos de cada poema ou parte ou capítulo são uma narrativa à parte, pelo o que sugerem os primeiros do livro, insinuando uma conversa paralela (mal comparando, como os versos em tipologia grande de Um lance de dados, de Mallarmé. Mas na sequência quebra-se o encadeamento claro e esses títulos ora parecem completamente descolados do texto principal ou, ao contrário, servem de primeiro verso…
Anne Carson deve se divertir com as resenhas, olha aí outro idiota. Já imaginei ela escrevendo com o único objetivo de foder a vida de quem tenta falar algo minimamente coerente de seus livros. Deve morrer de rir, naquela mesma cozinha do vídeo a que assisti, aquele jeito de “só fiz arroz e feijão, nada demais…”.
Voltando à belezinha desse marido, mentiroso convicto, o texto traz acontecimentos, sim, sequências de fatos, o que caracteriza a narrativa, mas o que tem mais é um clima construído, que transmite uma ambiguidade própria de relações conjugais complexas. Desperta aquele sentimento em quem o lê de “por que ela aguentou isso por tanto tempo?”, “como esse homem consegue ser tão canalha?”, que, ditos assim, fazem da coisa toda rasa, comum. Eis a importância da literatura, o como se conta algo, envolvente no livro, fraco na resenha.
Outro recurso típico da poesia que Carson mobiliza nesse texto é a pontuação ou a falta. Não pude rastrear um padrão. Versos que sugerem ser perguntas não têm ponto de interrogação. Mas às vezes têm. E assim com os pontos finais e vírgulas. Isso me remete ao início do Ensaio sobre aquilo em que eu mais penso:
O erro.
E suas emoções.
O que pode nos dizer o que parece simplesmente um erro? O texto refletindo eventualmente enganos de julgamento de um personagem, de um narrador? É uma chave intrigante de leitura, não é?
Em A beleza do marido o caldo que Carson prepara é denso, às vezes cai pesado, a depender de quando se lê. Neste trecho abaixo a complexidade da relação a dois está posta de modo notadamente conciso:
Pequenos buracos que se alargam e rompem.
As cartas chegaram.
Agora rápidos os buracos se multiplicam e fluem à colisão concentricamente.
Com cartas o marido amarrou ela a ele.
Ou desaceleram e simplificam, quatro três dois.
As cartas, alimento natural e necessário, chegavam com menos frequência do que a comida precisa chegar.
Um.
As cartas faziam um dia ser diferente do outro, como se feitas ao sol.
Vou terminando esta resenha com uma sensação muito concreta de incompetência, de não ter dado conta dessas leituras. E arrumando um lugar bem visível na estante para esses quatro volumes dela, que chegaram há pouco até mim. Porque se uma coisa eu aprendi em minha trajetória como leitor de literatura, muito, muito mesmo por causa da oportunidade maravilhosa de escrever para o Rascunho nesses últimos dez anos, é que chegar ao final não é terminar de ler. Alguns livros chegam para a gente voltar a conversar com eles, conviver com eles (nunca emprestar!).
Não é que a obra de Anne Carson traga algo de novo, no sentido vanguardista. Não parece ser o caso. Mas é muito próprio, um jeito bem dela. Ou seja, o que é mais desejável na literatura. Gostar ou não é outra coisa, é pessoal. Quando isso acontece, o encontro com algo muito próprio, o contato tem sempre a sensação do novo, sim, de uma descoberta. Ainda mais quando ela nos apresenta aspectos inovadores para ela, que se tornam inovadores para nós, sobre coisas de quase três mil anos. Como escreveu Murilo Mendes, nascer é muito comprido. A humanidade engatinha.