Complexo de Sexta-feira

O recente lançamento do filme Náufrago (Cast away, em inglês), com o ótimo Tom Hanks, ressuscitou entre nós a figura de Robinson Crusoe
01/07/2001

O recente lançamento do filme Náufrago (Cast away, em inglês), com o ótimo Tom Hanks, ressuscitou entre nós a figura de Robinson Crusoe. Mas sempre me surpreendeu o fato de nunca ter visto qualquer menção às ligações do célebre personagem com o Brasil, fato que só posso atribuir à falta de leitura do clássico de Daniel Defoe. Dizia Saramago, em palestra no Rio, que não ler os clássicos é uma maneira de assassiná-los. Ficam lá solenes, mortos de sobrecasaca, dentro de seus caixões mortuários de cartolina ou couro, alinhados nas estantes empoeiradas como num cemitério. São apenas ícones da cultura que, à semelhança dos monumentos públicos, com o tempo adquirem caráter meramente ornamental. Esquecemo-nos de que se são clássicos é pelo simples fato de que regurgitam de vida, conservando por isso mesmo espantosa atualidade.

Afinal de contas, não deixa de ser curioso que Crusoe, depois de diversas aventuras, viesse se estabelecer no Brasil, como proprietário de uma fazenda de cacau na Bahia. E é exatamente da Bahia que ele parte num veleiro, para ir traficar escravos, na viagem em que acabaria naufragando e dando com os costados, como único sobrevivente, numa ilha deserta. E no final da história, é a venda dessa fazenda que possibilitará ao ex-náufrago levar boa vida na Inglaterra.

Sabe-se que o personagem foi inspirado num marinheiro inglês que passou anos sozinho numa ilha, depois de naufragar. O relato que escreveu vendeu como pão quente e Defoe não hesitou em se utilizar largamente dele para a composição de seu romance, publicado com extraordinário sucesso em 1719. Essas apropriações eram tidas como normais na época, vide Shakespeare, mas confesso ignorar até aonde vai a imaginação de Defoe e começa a realidade biográfica do Crusoe de carne e osso.

Toda essa divagação é para tocar num ponto que me interessa: a relação de Robinson Crusoe com o personagem Friday — ou Sexta-feira (como se consagrou na tradução brasileira). Depois de anos na ilha, o náufrago entra em pânico ao descobrir uma pegada humana na areia. Sua perquirição pela ilha em busca da solução do mistério o leva a salvar a vida do pobre Sexta-feira, prestes a ser devorado por canibais. Ato digno de um escoteiro; mas como compensação, Crusoe acha-se no direito de escravizar o “bom selvagem”. Atitude aliás nada surpreendente em quem partira de viagem exatamente em busca de escravos para sua lavoura. Ele trata paternalisticamente, mas com uma possessividade grotesca, o homem de pele escura, que chama de “my man”. E aqui, com a malícia que o tempo nos proporciona, poderíamos dizer que Freud seria capaz de encontrar nessa forma de tratamento combustível para alguma divagações.

Sexta-feira é figura patética, pouco mais que um cão de estimação, para quem o máximo da felicidade é poder bem servir. É claro que trata de aprender logo o inglês que o amo lhe ensina (como sabemos, sem inglês não dá para subir na vida). E, depois de resgatados, continuará a pagar na Inglaterra seu débito, interminável como a dívida externa dos países do Terceiro Mundo.

Essas alusões não são gratuitas. Involuntariamente embora, Sexta-feira é um protótipo (e um precursor) do servidor terceiro-mundista deslumbrado com o patrão alienígena, a quem procura em tudo imitar (por exemplo, comemorando o Halloween), a quem quer agradar a todo custo (usando expressões como delivery ou sale na linguagem cotidiana, para demonstrar aculturação e familiaridade com o idioma). Seria talvez o caso de se falar num Complexo de Sexta-feira, que acomete determinados segmentos meridionais.

Sexta-feira também simboliza, pelo avesso, a consciência da superioridade branca. Nesse sentido, poderia ser visto como a matriz de certos personagens da cultura de massa, em que um valente, competente e esclarecido branco é sempre coadjuvado pelo representante de uma das raças inferiores, menos capaz (e, claro, menos corajoso), mas de uma fidelidade a toda prova. Assim é que o branco Zorro tem o seu índio Tonto, os pigmeus adoram um Fantasma que acreditam eterno (haverá melhor símbolo da crença do imperialismo na sua perenidade? — aqui ecôo Eco) e o parrudo negro Lothar serve a Mandrake. Este último herói, o preferido de minha infância, encarna bem os poderes mágicos que o conhecimento científico proporciona ao homem branco. Ele nunca suja as mãos; se sugestão hipnótica não basta e é preciso dar porrada em alguém, quem entra em ação é Lothar, o dono da força bruta.

Estão abertas por aí, dizem, várias vagas para o cargo de Sexta-feira. E ao contrário do que acontecia no tempo de Defoe, parece que o salário é bom.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho