Tem uma parte em Como ser legal, o novo livro de Nick Hornby, em que uma pastora da igreja anglicana tenta em vão empolgar os poucos fiéis de seu culto, cantarolando canções de antigos musicais e outras, nem tão antigas, das paradas de sucesso. Os velhinhos ali presentes não entendem nada. A situação é ridícula.
Talvez Hornby sinta-se um pouco assim, como uma senhora religiosa tentando chamar atenção para a sua literatura, enquanto os cabeças-de-vento dizem: “Ei, veja, ele falou sobre o Oasis”. Aquela banda chata. Ou: “Você já chegou na parte em que ele cita Os Simpsons?” Se você ficou feliz e com o rabinho balançando quando identificou pelo menos dez ícones da cultura pop das dezenas que aparecem nos livros dele — esse não é exceção —, que legal pateta, você está no planeta Terra e deve ter pelo menos uma televisão e um aparelho de som em casa. Sinta-se em seu próprio lar.
Ler Hornby desse jeito é como ser uma das velhinhas do tal templo anglicano e dar um sorrisinho na hora que a pastora canta uma conhecida (nem tanto) canção do musical O Rei e Eu. Sabe como é. Você não se sente tão sozinho na nave vazia.
Tá certo. Dá para fazer uma analogia com aquela famosa máxima de Leon Tolstói, desgastada até a medula, que reza que o escritor que quer ser universal deve escrever sobre o seu mundinho. O russo certamente se referia a se dedicar às coisinhas de sua aldeia para que, certamente, o leitor de uma aldeia do outro lado do mundo, e séculos depois, identificasse as coisinhas da sua. Ainda assim, a frase passa mais uma idéia de perenidade temporal que de abrangência espacial. Os escritores mais pretensiosos a interpretam acima de tudo como uma fórmula para a atingir a posteridade. Poderia ser dito de Hornby que ele inverteu a coisa. Não existem mais pequenas aldeias isoladas. Estão todas ligadas por coisas meio estúpidas como o Oasis ou as Spice Girls, por exemplo. O que está separado por uma distância enorme são os acontecimentos desta semana e os da anterior. Hornby abre mão da universalidade temporal e enfatiza a universalidade espacial. Afinal, daqui a vinte anos quantas pessoas saberão quem são essas bandas se não os viciados em cultura pop? Mas fazer todo esse raciocínio é bobagem, afinal ele mesmo disse que abre mão de ser lembrado daqui a 50 anos.
Ele é um escritor do aqui e agora. É a pastora anglicana, tentando chamar a atenção para conceitos realmente importantes por meio das musiquinhas — parece estar meio cansado disso, na verdade, pois durante várias páginas sem fazer nenhuma citação pop, lá pelas tantas, por um motivo ou por outro, faz uma lista de nomes que ocupa quase uma página inteira. Mas o bicho pega no quesito “Os Conceitos Realmente Importantes”. Nele, Hornby é tão somente esforçado. Como ser legal é, como o nome diz, apenas um livro de auto-ajuda. E, ainda por cima com um final meio triste.
Algumas passagens espirituosas, alguns momentos mais ou menos brilhantes e algumas técnicas narrativas sacadas e eficientes servem de esqueleto para aquilo que ele quer dizer. Basicamente que, não adianta querer solucionar os problemas do mundo — isto é, ser legal —, se você não consegue solucionar os problemas da sua vida. É o que costumam dizer os livros de auto-ajuda, mas sem as passagens espirituosas e sem as técnicas narrativas sacadas e eficientes.
A história — O mundo está cheio de novos médicos que escolheram a profissão porque viram aquele filme com o Robin Williams — ou o Tempo de Despertar ou aquele outro do médico brincalhão —, que hoje se perguntam se fizeram a escolha certa porque imaginaram que poderiam fazer a diferença, salvar o mundo e, em meio ao sistema público de saúde, vêem que a coisa não é bem por aí. A personagem principal e narradora do livro, Katie Carr, é assim, uma médica que queria salvar o mundo, mas mal consegue ajudar sua meia dúzia de pacientes — é claro, poderia ser uma advogada, uma jornalista ou uma outra coisa qualquer, mas é médica, afinal cuidar de feridas purulentas no ânus alheio é muito mais dramático. E ela está tão descontente com sua vidinha medíocre que, de uma hora para outra, pelo celular, de um estacionamento, pede divórcio. Mas, tudo bem, ela se agarra a uma das noites da semana em que, junto com o marido e os dois filhos neuróticos, assiste àquela série da BBC, Andando com os dinossauros. Vocês devem ter visto no Fantástico.
Tudo está uma droga, mas a história vira quando o seu marido — responsável por uma coluna de artigos mal-humorados de um jornal local —, só para contrariar os conselhos médicos da esposa, resolve arrumar as costas cronicamente doloridas com um curandeiro chamado DJ Boas Novas, que acaba indo morar com a família. O cara acaba transformando o marido de Katie no sujeito mais paz e amor do mundo, um feroz ativista pelos menos favorecidos, daqueles de colocar em camisa de força e tudo. As coisas, em vez de melhorarem para Katie, pioram. Ela passa a ver a si mesma e a seus filhos como egoístas e, ainda assim, não aceita as mudanças e os novos conceitos que arrombam sua vida, entrando em terríveis dilemas morais.
Umas cinco ou seis passagens são memoráveis, como aquela em que um dos pacientes de Katie vai jantar com a família. É engraçado e triste ao mesmo tempo. O sujeito é deficiente mental e perdeu a mãe. Não sabe o que é para comer quente ou frio e tem comido batatas cruas todos os dias anteriores. A maneira como a personagem lida com a situação é exemplar, ainda que pareça cruel. É um desses momentos do livro que mostram que não é egoísmo não chamar uma pessoa assim para morar em sua casa. Tentar resolver problemas que vão além da sua capacidade não resolvem o mundo. Ao contrário, o complicam. Existem outras soluções, o caminho do meio como vão gostar de dizer os budistas. Quem sabe seja essa a lição — oh! palavrinha — do livro.
No entanto, Como ser legal pára por aí. Certamente não será o livro de Hornby que ficará para a posteridade. Talvez Alta fidelidade, talvez Febre de bola ou talvez algum outro que ele escreva. Talvez nenhum, afinal trata-se de um escritor que, ele mesmo admite, prefere a abrangência à perenidade.