A vantagem de morar neste fim de mundo é que os países de língua espanhola estão pertinhos. Logo, comprar um livro de Gabriel García Márquez no original não chega a ser uma aventura das mais desastrosas. É claro que se eu morasse nos Jardins, em São Paulo, bem que poderia encomendar o livro numa loja bacana, com estantes em alguma madeira escura em extinção e um atendente bichinha para me bajular. Mas este não é o meu caso.
Fiz algumas ligações e aproveitei uma viagem de trabalho à Colômbia para comprar Memoria de mis putas tristes. Apesar de ter sido lançado há pouco tempo, já havia nas livrarias de Bogotá alguns exemplares de segunda mão, que comprei porque admiro os livros amarrotados e usados. E também porque são mais baratos.
Foi um dia feliz. Perdi duas horas lendo as 105 páginas da edição como se fossem 300. Saboreei cada palavra, cada frase e cada diálogo como se estivesse degustando um risoto de trufas brancas, que há muito comi em algum restaurante bacana. Com a vantagem de que o livro não vai se transformar em nenhuma massa repugnante. Antes, vai para um lugar de destaque em minha estante: o dos raros livros que mudaram a minha vida.
Mas para entender meu estado de maravilhamento depois de ler o Memoria de mis putas tristes é preciso voltar no tempo uns poucos meses. Eu estava fazendo uma busca qualquer pela internet quando me deparei com a notícia de que Gabriel García Márquez lançaria um novo livro. É incrível como estas notícias que não busco me chegam, numa invasão de privacidade violentíssima. Li a matéria com quase lágrima nos olhos, se fosse do meu feitio.
Porque sempre fui um admirador de Gabriel García Márquez. Julguei, porém, que com o lançamento deste livro ele me traía. Sim, me traía. Como todos os escritores que admirava desde mais longínqua infância. Um livro sobre sexo, dizia a matéria. Um livro de velho babão. Respirei fundo, caí dentro do Cem anos de solidão e esqueci. Até que mais uma onda de notícias inconvenientes se convidou a me visitar: o livro vendeu um milhão de exemplares em uma semana, o livro é isso, o livro é aquilo.
Fui conferir para aprender uma lição antiga, que eu insisto em esquecer: jornalistas são burros. Não menos do que isso. Além de não terem a menor capacidade de leitura, são uns grossos. E moldam qualquer coisa bela que ainda hoje se ouse criar a seus padrões de podridão. Memoria de mis putas tristes não é nada do que se diz por aí. Não é um livro sobre sexo. Só uma mente rasteira pode pensar assim.
Mas eu sei que as mentes rasteiras abundam neste mundo decadente. Os milhares de leitores brasileiros que comprarão o livro de Gabriel García Márquez em 2005 não têm capacidade de compreender sua beleza. Os homens ficarão excitados; tenho certeza de que alguém falará em pedofilia; uma ou outra mulher ficará vermelha de vergonha e outra se assanhará. Mas serão poucos, muito poucos, pouquíssimos aqueles que lerão Memoria de mis putas tristes com a atenção devida para o verdadeiro tema do livro.
Não que eu queira ser um caga-regras aqui. Mas algumas coisas neste mundo de literatura são mesmo revoltantes. Um bando de esnobes tentando se afirmar como mais inteligente que o outro. Como se fossem cavalos num concurso de relincho. Aposto que sei quem ganha.
Memória… é um livro sobre a velhice e a passagem do tempo. O sexo é acessório, um adento, uma lantejoula apenas. O tempo, aliás, é o grande tema de todos os grandes livros de Gabriel García Márquez. Ainda que um ou outro cavalo de raça insista em dizer que Cem anos de solidão é uma metáfora da América Latina na mão do imperialismo ianque. E ainda que um asno em cavanhaque afirme que O amor nos tempos do cólera é uma análise profunda da psiquê humana.
De un modo solene, como si acabara de inventarlo, me dijo: El mundo avanza. Sí, le dije, avanza, pero dando vueltas alrededor del sol.
O protagonista do livro é um senhor de noventa anos que nunca amou. As pessoas dizem que ele é um pederasta, quando na verdade é um freqüentador silencioso de todos os bordéis da cidade. Por sua cama já passaram mais de quinhentas mulheres. Todas prostitutas, segundo ele. Umas declaradamente, outras disfarçadamente. Mas todas, sem exceção, putas.
Com a proximidade dos noventa anos, este homem misógino, amante de música clássica e estudos de gramática e latim, resolve dormir com uma menina virgem. Seria a celebração da proximidade do fim de sua vida. O problema é que o velhinho se apaixona pela menina de apenas catorze anos, cujo nome não sabe nem vem a saber, e cujo corpo ele não macula.
Não há, para a decepção geral dos asininos dos cadernos de literatura, nenhuma cena de sexo em Memoria de mis putas tristes. O que há é a contemplação da juventude por um velho de noventa anos, que admira os seios imaturos da menina que dorme como quem admira um bebê que acaba de dizer sua primeira palavra. O que Gabriel García Márquez compõe com as cenas em que a menina dorme, apenas dorme, em companhia do velho é de uma beleza ímpar na literatura: o encontro daquilo que é vivo e cheio de esperança com aquilo que é decrépito e desesperançado.
Ao contrário dos velhos babões da literatura brasileira, que depois de certa idade inventam de escrever sobre sexo e o fazem com uma vulgaridade atroz, como se fossem caminhoneiros minimamente letrados, García Márquez faz dos encontros entre o velho e a ninfeta uma fonte de beleza. Não sobra ali palavra alguma, não há nenhuma descrição indecente, não há gozos de novela mexicana, nem podofilia tão ao gosto de poetas cegos. O que há é apenas beleza, que é o que se espera de um grande escritor.
Para variar, Gabriel García Márquez não compõe apenas personagens centrais de uma riqueza delirante. Também se destacam com força absoluta personagens que, no começo do livro, parecem colocados ali apenas por um capricho. É o caso de Damiana, uma espécie de criada que foi apaixonada pelo protagonista sem nunca com ele ter dormido. Sua raiva, seu ressentimento, sua amargura são de uma força temível. Posso sentir o amargor da sua boca quando se dirige ao velho, do qual continua a tratar com devoção.
Se Gabriel García Márquez não faz do sexo algo vulgar, não seria de se esperar que o fizesse com a velhice. Ah, se os escritores brasileiros tivessem a humildade de aprender. Eu leio autores octagenários fazendo análises profundas sobre suas fraldas geriátricas. Um desperdício.
O nonagenário de García Márquez é um homem vivo e pleno. Ele espera a morte sem resignação e com revolta juvenil. Se quer se deitar com a pequena, é porque quer sentir o ardor do amor de que falam os poetas ruins. Ele é sábio, e é assim que a cortesã o trata, como um velho sábio, mas não faz de sua sapiência um fim.
Memoria de mis putas tristes é, ainda, um livro sobre a superioridade da vida com relação à literatura ou qualquer outra forma de arte. O nonagenário é um erudito, mas às vésperas de morrer ele percebe que nenhum livro de Suetônio ou Lampedusa ou quem quer que seja é comparável à beleza de uma menina que dorme, nua, entregue, desprotegida, com uma volúpia mal disfarçada pelo sono. Não por acaso a biblioteca do velhinho é inundada pelas chuvas que rompem a fragilidade da casa antiga. O tempo passa, as águas vão e vem, os homens morrem, os livros também apodrecem, os nomes se perdem nos catálogos telefônicos de cada ano.
Tudo o que se entende como importante, tudo o que resta é aquilo que se compreende até o fechar definitivo dos olhos. Depois deste momento, tudo é mistério.