Como se fosse uma noite de sábado

"A cidade ilhada", de Milton Hatoum, é um convite para cada leitor mirar, mergulhar e revisitar o próprio passado
Milton Hatoum por Ramon Muniz
01/06/2009

Se há um tempo-espaço para onde quero voltar e, sempre que possível retorno, é para a noite de sábado. As noites dos sábados, enquanto realidade, passam muito rápido. Não consigo (mas gostaria de) prendê-las. Procuro usufruir cada segundo, sem ruído, comida ou bebida. Apenas fruição, que logo se desmancha. Com aquela nuance que sugere tudo ser possível. A ameaça da segunda-feira não existe sábado à noite, apenas um flerte com as manhãs de domingo. Por isso, e por muito mais, são excelentes as noites de sábado, com ou sem brumas, até com chuva.

O (menos que excelente é pouco) livro de contos A cidade ilhada, de Milton Hatoum, é passaporte para sábado à noite. Há um timbre naquela prosa, timbre que é nuance e funciona como trampolim que leva o leitor rumo a esse fragmento da semana em que o tempo parece parar. Abrir e ler as páginas desses contos de Hatoum é, também, entender como tudo o que segue sempre se desmancha no ar, e surge depois. Paraísos e infernos são perdidos. Algum personagem não diz, mas poderia ter dito nunca seremos tão felizes como agora. A memória irá mostrar que tudo foi lindo, mesmo o que foi péssimo (ou parecia, lá atrás, não suave).

Depois da página 126, ainda havia dias e noites, incluindo uma de sábado, antes de sentar e então, na véspera da impressão, escrever essa resenha. Se foi acaso, golpe de sorte, ou nada disso, estive (enfim) em pelo menos cinco bibliotecas particulares, dessas que, individualmente, guardam mais de 10 mil volumes. O que eu fazia dentro desses paraísos, paredes de livros, proteção contra muito, é outra prosa; mas, enquanto circulava entre livros, queria lembrar e encontrar algum outro livro de contos, de outro autor. Precisava localizar, ao menos um, livro que tivesse, assim como A cidade ilhada, apenas contos bons (e não, como é a regra, um conto bom e outros quaisquer apenas para dar recheio entre a capa e a contracapa). Deve existir. Não encontrei nenhum.

Uma Manaus que existiu, mesmo que apenas para Hatoum, e que seguramente não existe mais é recriada literariamente. Por nuances, imagens e cliques. A zona portuária. A perda da virgindade. Uma vizinha inesquecível. As chuvas. A pobreza dos ribeirinhos. O solo natal onde pouco frutifica e a certeza de que a única saída é realmente sair dali. Mas, como aflora em um conto, “Manaus me persegue”, o passado deve ter cobrado o preço e Hatoum, então, acerta as contas consigo mesmo e com o pretérito por meio desta obra-prima.

Virgindade
Tudo pode acontecer nas noites de sábado. Um grande e definitivo encontro. Um encontro marcado. Com a vida ou o seu fim. As cores da noite de sábado são como a ficção de Hatoum: não há como descrever. E, então, um rio-mar, daqueles de Manaus, envolve tudo, como o silêncio das noites de sábado e um enredo pede para ser citado: os amigos iriam perder a virgindade, mas um deles não foi. Um dos que esteve lá na zona, apaixonou-se pela sua “primeira” mulher, mas nunca mais a viu. Passa o tempo, toda aquela turma acaba, acaba-se aquele tempo. No futuro, um dia, o menino que virou homem e perdeu a virgindade na zona vê o colega que não entrou: esse, o que não entrou, diz mãe, e surge uma mulher — a mesma com quem o que foi na zona perdeu a virgindade.

Há o casal que gastará tudo numa grande noite de prazer, mesmo que o resto da existência seja penar, pois aquilo será matéria de memória para ser lembrado até o final dos tempos. Tem um sujeito que compra um caixão, mata o futuro ocupante do caixão e então se entrega: limpou a sua honra de sujeito traído e segue com a consciência leve rumo ao xadrez. Mas resumir um conto, dois contos, de Hatoum desse jeito deveria ser vetado, até por lei. A cidade ilhada é fruto de rara maturidade. Tudo soa como resultado de muita reflexão, escrita, reescrita: cada frase, cada palavra, os temas. O livro, como um todo, também soa como uma resposta do autor para a pergunta: o que é isso, essa perplexidade que chamam de vida?

Mas não é apenas Manaus o cenário dessa ficção (menos que genial é pouco para adjetivar). A Europa, o solo português, por exemplo, ambienta um conto em que traição, jogo de espelhos, Eça de Queiroz e Machado de Assis, além de três personagens, serão argamassa para esse mundo dos sonhos que pode jogar, quem quiser, para as noites de sábado. Paris será o abrigo de exilados brasileiros durante a ditadura, onde vaidade e amor desgastado terão vez e hora para explodir — sobretudo com uma canção do Chico Buarque embalando, até em silêncio, uma dupla de personagens trágicos.

O romancista, que abocanhou prêmios pelos geniais Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do norte, mostra-se um contista brilhante. Todos os contos apresentam uma mesma densidade, beleza e timbre: que é uma espécie de ponte que acessa universos ruídos, em meio a dor e delícia. A cidade ilhada, de Milton Hatoum, é mais que passaporte para sábado à noite: é um convite para cada leitor mirar, mergulhar e revisitar o próprio passado (e a própria existência).

A cidade ilhada
Milton Hatoum
Companhia das Letras
126 págs.
Milton Hatoum
Nasceu em 1952 na cidade de Manaus (AM). Estudou arquitetura, lecionou literatura na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia em Berkley. É autor dos romances Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do norte (20005), ambos vencedores do Prêmio Jabuti. Dois irmãos já foi traduzido para oito idiomas. Cinzas do norte abocanhou ainda os prêmios Bravo!, APCA e Portugal Telecom. Atualmente, Hatoum é colunista de O Estado de S. Paulo e Terra Magazine.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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