Como sair do abismo?

As discussões políticas e suas consequências no Brasil atual estão no centro de "O intérprete de borboletas"
Sérgio Abranches, autor de “O intérprete de borboletas” Foto: Rafaela Cassiano
02/08/2022

Nada melhor ao momento político atual, quando todas as saídas parecem fechadas ou em perigo, do que um romance começando com um pesadelo: “um túnel escuro, que acaba no abismo da pura escuridão”. Todos os gestos parecem impotentes; todas as ações, desarrazoadas. Com a chegada ao poder da extrema direita, vivemos uma era de rupturas, não só nas instituições, mas, principalmente, entre amigos e dentro das famílias.

É possível que jamais tenha havido um período de tamanha discórdia. Muitos podem dizer que, no passado, o Brasil também esteve dividido: esquerda e direita, comunismo e integralismo, golpe militar e resistência armada etc. No entanto, os dias de hoje são mais radicais. Não por ações políticas fundamentadas por alguma razão ou teoria filosófica, mas pelas possibilidades que as redes sociais oferecem quando o caso é a cultura do cancelamento. Uma ou várias pessoas podem ser linchadas moralmente e jamais se recuperarem. Por exemplo, às vezes, observamos que alguém é acusado de determinado crime ou delito, mas depois, caso nada tenha sido provado, não somos informados. Ações de linchamento moral são muito comuns na Rússia. Há poucos dias, esteve em cartaz o filme Kompromat, do diretor francês Jérôme Salle, em que um diretor da Aliança Francesa em Irkutsk, na Sibéria, foi acusado de abuso sexual contra crianças. Nada foi provado. Ele teve de fugir e escreveu um livro que originou o filme. O Brasil, infelizmente, segue o mesmo caminho. O oponente, sobretudo o extremista de direita, não aceita o contraditório nem o debate. As redes sociais estão plenas de exemplos assim. Essas mesmas redes podem não ter culpa, mas sabemos quem são seus proprietários, o tanto que lucram e também sabemos a responsabilidade que deveriam ter.

No passado, dependíamos dos jornais diários, de papel. Cada um comprava o que mais lhe agradava, o que mais estava de acordo com sua opinião e ponto final. No momento, as redes sociais fomentam facilidades que não existiam antes. Uma facção de direita pode criar um jornal muito bonito, publicar notícias falsas e ter milhões de seguidores. Todos podem se manifestar. Isso é importante. O que predomina, no entanto, são afirmações sem fundamentos e acusações gratuitas, chegando ao linchamento digital, isto é, a cultura do cancelamento.

Lados opostos
O intérprete de borboletas, romance de Sérgio Abranches, tem o enredo de um Brasil governado pela extrema direita, onde o fascismo cresce dia a dia e, principalmente, agride. O autor cria personagens que atuam nos lados opostos, mesmo pertencendo às mesmas famílias. Antes, eram amigos, mas, no momento atual, já não conseguem encontrar-se. Irmão contra irmão, mãe contra filha, etc.

Difícil trazer para a literatura o assunto que mais nos incomoda no momento. A discussão do contemporâneo precisa de tempo, de amadurecimento, daí o risco de se ficcionalizar o presente que está a nos roer os pés. Sérgio Abranches enfrenta o risco, expõe-se a cometer algumas falhas que, na verdade, não são suas, mas da falta do tempo que ainda não passou.

No romance, todas as esperanças parecem solapadas pelo autoritarismo, os personagens mais sensatos perdem-se em algumas dúvidas, e chega-se a dizer que os comportamentos extremos são de ambas as partes, o que na maioria das vezes não é verdade. No terceiro terço do livro, percebe-se que o narrador, com razão, vê nos personagens de esquerda um poder maior de reflexão. Como é o caso de Afonso e de Eduardo, um escritor e o amigo, que sempre se mostraram mais sensatos, intelectuais e reflexivos.

A narrativa é dividida em fragmentos, com o nome do local onde acontece a ação: São Paulo, Morumbi; São Paulo, Vila Madalena; Rio de Janeiro, Leblon, etc. As personagens vão aparecendo, num constante ir e vir, à medida que os conflitos se intensificam. Além de escritores, há advogados, estudantes, intelectuais, e pessoas de extrema direita como Isaura, mãe de Maria, e seu irmão, o assassino do grafiteiro, que não hesita em atirar num artista de rua negro que tem nos muros da cidade o único local para apresentar sua arte.

Ao se escrever esse gênero de narrativa, que focaliza um governo de extrema direita com características fascistas sempre a incentivar seus seguidores a agirem de modo violento, a dizer que todos os cidadãos precisam estar armados para acabar com a violência, qual estrutura este romance poderia ter? Que história, além da que traz, poderia apresentar? É bom afirmar que o autor não menciona em momento algum o nome do presidente ou de qualquer outro político. No entanto, sabe-se perfeitamente a que e a quem ele está referindo-se.

À flor da pele
Embora tenha domínio da sua escrita, é possível ao leitor atento perceber alguns eixos narrativos que poderiam ter caminhos diferentes. A história é contada muito à flor da pele, com personagens que defendem tanto um lado quanto outro. Sobressai o lado que está causando maior malefício, porque quem está no poder os está a incentivar. Talvez com um romance mais intimista, de forma que o foco principal fosse a vida pessoal de cada personagem, as mazelas políticas pudessem se apresentar de modo mais natural. Fica parecendo que os personagens não possuem vida privada, que isso se perdeu devido ao momento político. As personagens acabam transmitindo certa artificialidade, estigmatizadas por ações referentes ao lado a que pertencem.

Outro problema fácil de distinguir são os longos trechos em letras menores, que focalizam um tipo de reflexão das personagens envolvidas na ação naquele momento. Por exemplo, quando Maria está conversando com o pai, ou com a namorada dele, logo depois há um trecho em que desaparece o narrador convencional em terceira pessoa para dar lugar a um narrador em primeira, que seria a voz da mesma personagem e suas reflexões. Tais reflexões, algumas vezes, soam redundantes. A estrutura ficaria mais leve e atraente com a utilização do discurso indireto livre, tão em voga em muitos momentos da nossa literatura, que deu solução a muitas narrativas, tornando seus autores mestres no gênero.

No final do romance, ainda temos a chegada da pandemia ao Brasil. O autor consegue apresentar a luta contra o vírus nas várias classes sociais. Há aqueles que conseguiram fazer o confinamento numa casa de campo ou de praia, enquanto outros, habitantes das favelas e dos cortiços, ficaram jogados à própria sorte.

Apesar das questões e críticas enumeradas acima, o saldo deste romance é bastante positivo. É importante termos autores sempre a colocarem em questão os mais diversos problemas que vivemos, tanto a nível individual como a nível político. O modo como isso acontece é, na verdade, característica ou estilo de cada um. O que vale mesmo é combater a mentira.

O intérprete de borboletas
Sérgio Abranches
Record
237 págs.
Sérgio Abranches
Nasceu em Curvelo (MG) e mora no Rio de Janeiro (RJ). É sociólogo, escritor e comentarista da rádio CBN na série Conversas de política. É autor, entre outros, de No tempo dos governantes incidentais, A era do imprevisto: a grande transição do século XXI, Copenhague antes e depois, Que mistério tem Clarice? e O pelo negro do medo.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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