Como nossos pais

Em "Onde você vai encontrar um outro pai como o meu", a italiana Rossana Campo examina a própria história familiar — com suas belezas e desgraças
Rossana Campo, autora de “Onde você vai encontrar um outro pai como o meu”
01/03/2021

As marcas deixadas pelos pais nos filhos formam o que os corpos têm de visível e invisível, e tendem a fundir amor e dor, cuidado e repulsa, afeição e ressentimento. Em Onde você vai encontrar um outro pai como o meu, Rossana Campo apresenta ao leitor o inventário deixado pelo seu pai, ao mesmo tempo em que aprende a se ver no mundo sem a marcante presença desse homem tão vivo, encantador, violento, egoísta, e com tantos outros adjetivos.

O relato da escritora italiana é aberto com uma frase jocosa do pai: “Rossaninha, você nunca deve ter medo de nada na vida, pois tenha sempre em mente que você foi concebida em cima de uma mesa de bilhar!”. Essas palavras são o ponto de partida do complexo retrato que um homem tão potente e multifacetado exige. Aliás, esse homem é assim aos olhos da filha, estamos vendo um pai tendo como filtro os olhos de sua prole, que tanto o admira quanto se aflige com a forte impressão de ser muito parecida com ele.

É curioso notar que o começo e o fim da narrativa são delineados com um acolhimento mais sereno da herança de Renato por parte da escritora. O meio do caminho, no entanto, é por vezes tortuoso e angustiado. As frases curtas, simples e recorrentemente bem-humoradas ganham peso e pressa quando alguma lembrança dolorosa é delineada, ou quando os tempos se sobrepõem e a narradora parece se perder entre a infância e a vida adulta:

No sonho desta noite, eu precisava refazer os exames finais do Ensino Secundário, não entendo por que ainda estou nessa fase, não entendo por que aos cinquenta anos, e depois de formada, depois de ter escrito uma dúzia de romances, etc., ainda enrosco nisso.

Memória e coragem
O livro chama a atenção pela coragem e pelo encadeamento narrativo. Não é particularmente lírico em termos de linguagem, a riqueza está em outro lugar: no esforço realmente notável da escritora em examinar a própria história familiar para tentar distinguir o que lhe foi transmitido e quem são essas duas pessoas que a formaram e a fizeram ser do jeito que é. Também se sobressai o ritmo e o uso dos tempos verbais, por dar forma à memória pelo que relata e como relata. O presente, por exemplo, transita entre o tempo da escrita e de algumas das lembranças, bem como os momentos em que o pai é o destinatário do texto. Também há um cuidadoso trato nos empregos dos vocativos com os quais os pais são chamados, entre os nomes próprios e derivações carinhosas de pai e mãe, talvez como uma forma de ver os dois como pessoas que não são apenas genitores, mas sim indivíduos com ricas histórias de vidas.

A leitura desse romance autobiográfico faz pensar que ser compreensivo com os próprios pais não é uma coisa banal. Um ponto tocante do livro é quando a narradora tenta conversar com o pai sobre o alcoolismo dele, um aspecto da vida de Renato que era destrutivo para a filha, a mãe e o irmão. Primeiro aparecem os restos que as bebedeiras deixavam para trás, os relatos dos dias em que mãe e filha tinham de sair de casa porque o pai estava bêbado e possivelmente violento, ou porque tinham de percorrer os bares e comércios para quitar as dívidas deixadas por Renato.

Depois, o leitor se depara com um breve e simples diálogo, no qual o pai, que cresceu concomitantemente ao regime fascista e teve de participar da Segunda Guerra, explica que bebia porque se sentia angustiado e triste, e com o álcool era possível alcançar uma pequena fuga, um recurso para não se sentir tão mal. Tudo de tão doloroso que causava à companheira e aos filhos se originava de uma tentativa dele próprio de não sentir tanta dor. E é comovente encontrar esse diálogo, encontrar o percurso da filha para tentar entender o pai, compreendê-lo como alguém dotado de uma imensa alegria coexistente com um lado sombrio.

Legado
O ofício da escrita é apresentado como algo transmitido pelo pai, um policial afastado da corporação por causa da indisciplina. Não é uma ligação tão óbvia, Renato não era propriamente um literato, embora a narradora apresente alguns poemas que o pai registrava em cadernos conservados até o final de sua vida. Essa herança parece passar por outras vias. Sempre aos olhos da filha, Renato era um exímio contador de histórias, narrativas nas quais realidade e fabulação se misturavam de forma indissolúvel e marcadas por um vigor de quem esteve alerta e desperto enquanto vivia — talvez um pouco como o pai do filme Peixe grande e suas histórias maravilhosas (2004), de Tim Burton.

A escrita também parece se originar na tortuosa forma de Renato viver a vida, “o sopro de ar fresco, a rebelião, a tentativa de viver de acordo com aquilo que se é e não com aquilo que os outros esperam”. Notar em si mesma a presença desses atributos, entretanto, faz a escritora se sentir também condenada a não ter um lugar no mundo, uma inadequação crônica de quem sempre estará em falta diante das regras que regem o convívio coletivo. As semelhanças com esse homem complexo, por quem ela sente tantas coisas diversas e ambivalentes, faz com que a imagem de si também oscile entre uma excentricidade desejável e um desajuste penoso e irreversível. A associação dessa marca ambígua com a escrita carrega certa beleza, já que escrever pode ser um recurso para criar nuances entre extremos, ao passo que também permite estar no excesso e tentar relatá-lo.

E agora, José?
A grande dor pela perda de Renato parece ser a solidão por se ver desamparada de referência, uma vez que quem norteava esse modo de existir entre a particularidade e a inadequação se foi:

Não me deixe sozinha aqui embaixo, papi, eu não estou equipada para ficar no mundo sem você, sem pelo menos mais um da minha tribo, sem pelo menos mais um apache, um cigano, eu não conheço a língua bífida desses caras-pálidas, eu não penso como eles, não vivo como eles, não sinto como eles.

A vida sem Renato soa como um redimensionamento do estar sozinha. Enquanto a perda oferece uma nova perspectiva para a história do pai, e permite talvez um pouco mais de paciência e complacência com o ausente, fica o vazio não só da vivacidade de Renato, mas também do sentido que a personalidade desviante do pai poderia oferecer, por contraste e aproximação, à narradora.

A delicada organização do romance faz com que a frase de abertura da história, dita por Renato, ligue-se às palavras da escritora endereçadas ao pai no desfecho, como se fosse uma conversa entre ela e este que partiu e faz tanta falta. É um modo bastante bonito e honesto para dar forma à perda, porque soma à dor uma certa dose de agência, por mais fugaz que seja. Assim, num átimo, é possível estar um pouco menos sozinha e seguir em frente, com ossos cheios de heranças — silenciosas e ruidosas.

Onde você vai encontrar um outro pai como o meu
Rossana Campo
Trad.: Cezar Tridapalli
Âyiné
176 págs.
Rossana Campo
Nasceu em Gênova, em 1963, e vive entre Roma e Paris. Tem 20 romances publicados e foi premiada com as condecorações Strega Giovani e Elsa Morante por Onde você vai encontrar um outro pai como o meu.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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