Um bonde na capa de um livro é o suficiente para me fazer perder o rumo da resenha: “O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração./ Porém meus olhos/ não perguntam nada”. Toda hora é hora de citar Drummond, mas talvez aquilo na capa nem seja um bonde — a não ser na variante lingüística de alguns locais, em que se chamam assim os ônibus. Fato é que o veículo na capa me lembrou o bonde elétrico desativado que ilustra a rua XV de Novembro, aqui em Curitiba — talvez isso deva às cores: vermelho, com algumas listras brancas. Hoje, os visitantes o usam para outro tipo de viagem: intitulado Bondinho da Leitura, ele é um dos principais pontos de difusão de literatura da cidade.
Difusão de literatura. Interessante que o parágrafo anterior, mais aleatório impossível, tenha terminado com esse conceito. Creio que ele tenha tudo a ver com a proposta da coleção Otra língua, que a Rocco começou a publicar em maio deste ano. Com os títulos Deixa comigo, de Mario Levrero, e Asco, de Horacio Castellanos Moya, a editora deu início ao projeto de lançar por aqui importantes autores hispano-americanos que mal — ou não — eram editados no Brasil.
Imagens animadas
Deixa comigo, traduzido por Joca Reiners Terron (também organizador da coleção), não é apenas a primeira edição brasileira de uma obra do autor: a orelha do livro nos informa que “Esta é a primeira tradução para qualquer língua de um romance de Levrero”. Quem já leu o caudaloso 2666 — romance póstumo de Roberto Bolaño, aclamado em muitos países como “o livro do ano” quando da sua publicação — deve ter alguma idéia do que esperar do livro desse uruguaio. Se não tiver, o diálogo inicial (“— O romance é bom. — disse o Gordo, e fez uma pausa significativa. — Mas…”) e um pequeno trecho já matam a curiosidade:
Escutei, pois, com resignação, sobre as atuais dificuldades da indústria editorial em nosso país, como se fosse uma grande novidade, como se o Gordo as tivesse descoberto após profundas meditações e pesquisas. Como se existisse uma indústria editorial em nosso país. Como se nosso país fosse um país.
Se a trama não é das mais originais — afinal, é resultado do encontro dos tropos do “escritor que não é publicado” e do “detetive que tenta descobrir o paradeiro de um grande autor” (que interessa aos suecos!, se é que você me entende) —, esta parece ser uma boa oportunidade de reiterar a velha ladainha que cansamos de ouvir: a questão não é o que você escreve, mas como escreve.
Sinto que é como se o romance tivesse sido escrito para comprovar que Levrero era tudo aquilo que consta de sua minibiografia de orelha: “Escritor, fotógrafo, livreiro, chefe de redação de revista, autor de textos humorísticos e histórias em quadrinhos”. Se o texto flui que é uma beleza — e nessa apreciação não podemos nos esquecer do trabalho do tradutor — é principalmente por conta das imagens criadas pelo autor. Da mesma forma que muitos quadrinistas justificam o seu trabalho como um meio mais fácil (e cujo controle é quase absoluto) de fazer o mesmo que faz o cinema, poderia dizer que o autor de Deixa comigo faz quadrinhos e animações de sua literatura.
Como nos desenhos animados, apareceu sobre minha cabeça um balãozinho com a imagem de uma chupeta e a palavra sucker.
O leitor logo se acostuma a tantas intervenções, de modo que não se espantaria se uma bigorna caísse em cima do protagonista, como em “um cartum qualquer” — sim, estou dizendo que Mario Levrero talvez tenha mais a ver com Clarice Falcão do que julga nossa vã filosofia. Digo mais: ele se mostra tão afeito à intersecção entre linguagens que, se conhecesse os versos de Drummond sobre o bonde, é muito capaz de que também o tivesse citado, ao narrar a viagem (e perdas de rumo) do protagonista até Penurias.
Busca menor
Desejo retomar um trechinho citado: “O romance é bom. (…) Mas…”. Umas duas coisinhas me incomodaram nele. Não são hediondas ou não justificáveis, mas…
Machismo. Vamos às prováveis justificativas: é o personagem, não o autor; a estética detetivesca e Pulp fiction exigia esse comprometimento do escritor quanto às ações do protagonista — há todo um tropo de como deve haver uma femme fatale e de como o homem tem que ser “pegador”; é uma representação fidedigna do que pensa o homem médio; tal como representação fiel do pensamento da maioria, os trechos que tendem para o lado da palavrinha que inicia este parágrafo farão rir a muitos e, portanto, servirão ao propósito humorístico do escritor — eu mesmo estava rindo a valer até chegar ao final do sexto capítulo (a partir daí, as situações que descambam para esse lado se tornam mais e mais freqüentes, infelizmente). Ser feminista significa, para muitos, ser chato. Mas não estou nem aí: para mim, esse é um dos deméritos do livro.
O outro probleminha: o MacGuffin literário. Juan Pérez — o escritor procurado pelo protagonista (aquele da grande obra que interessou aos suecos) — não é o único desaparecido. Também não temos acesso a trecho algum do seu romance, que dá início à busca relatada no livro de Levrero. Ok, em 2666 acontece a mesma coisa: não me lembro de ter lido nenhum dos escritos de Archimboldi, nada que justificasse sua busca incessante. A diferença é que o próprio 2666 é uma grande obra — grande em mais de um sentido. Deixa comigo deixa a desejar por esse lado.
O que não significa que não seja um bom livro. É. E é apenas o primeiro romance do autor traduzido para outra língua. Se depender da boa apresentação deste livro — que inclui entrevista e posfácio nas últimas páginas —, o Brasil ainda vai querer mais Levreros por aqui.