Se a receita de como devorar o homem que maltrata fosse simples quanto cozinhar um bobó de camarão (vide receita em um dos contos), talvez boa parte da literatura de Ivana Arruda Leite perderia o foco — e o humor. A vida não seria tão dura, afinal, mazelas e rancores seriam igualmente “devorados”. Mas não é fácil digerir maus tratos. E, por menos dotes culinários que se tenha, fazer um bobó parece tão óbvio quanto cozinhar um Miojo se comparado à receita macabra.
Contudo, para se livrar das indigestões de mágoa ou mesmo de ódio mastigado, vale insistir e tentar o sucesso do “devoramento” dos sujeitos em algumas das etapas, seguindo fielmente o que diz o livro:
A língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como as mãos, os pés e o cheiro-verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração.
O passo a passo está em uma das histórias de Contos reunidos, lançado em brochura pelo Selo Demônio Negro, assim como Cachorros, também de contos, pela mesma editora. O primeiro é uma seleção de textos curtos escritos de 1997 a 2005. Juntos, os livros oferecem uma espécie de “maratona Ivana”.
Os contos reunidos permitem que o leitor acompanhe os caminhos do imaginário da autora e perceba com mais nitidez as obsessões e as estratégias literárias para dar conta delas com despudor. Entre os temas recorrentes, estão o desgosto dos derrotados, a agressão dos maus tratados, bem como a paixão sem rédeas e o que fazer dela quando o amor fracassa — e isso sempre acontece, não existem finais felizes, Ivana avisa logo no breve Ficção: “Gosto de livros tristes, em que tudo acaba mal”.
Essa aridez, algum mau humor ou tédio preparam o campo fértil para que Ivana cultive as pequenas tragédias cotidianas sem nenhum apelo ao lirismo fora de estação: “No jardim havia uma primavera que arranquei com raiz e tudo”, escreve no ótimo Aqui se faz, aqui se paga.
Assim, (mal) sobrevivem solteironas inseguras, amantes largadas, deprimidas e esquecidas em portarias (nem sequer chegam ao altar), esposas cheias de tédio, mães amaldiçoadas e prostitutas; estas são algumas das personagens recorrentes, que se espalham por um tempo alargado, inchado de domingos ou segundas-feiras.
Laura Christina, por exemplo:
Nem bem entrou o ano, eis-me aqui sentada na cama, rezando pra dormir um sono leve de não acordar mais. Se a vida fosse breve, se o ano durasse um mês ou dois, eu suportaria. Mas sabe Deus quantos réveillons ainda terei de passar à margem deste rio que não seca.
E o que dizer de Raquel?
Pouco adianta ligar o limpador de para-brisa, a vida se embaçou por dentro. A cidade, os prédios, os automóveis, tudo escorre pelo vidro. Eu já não sei onde estou, muito longe de casa.
E Dolores?
Maldita hora em que minha mãe me jogou nesse orfanato. A vaca embarrigou, mas não quis saber de criança. Seu negócio era botar a perna no mundo.
São muitas as dores na encruzilhada de destinos infelizes, rotas de desesperanças. Gente que, como Luísa, tenta cumprir o único compromisso da agenda para o fim de semana — ser feliz — e sempre fracassa. Simplesmente porque não há saída; e, mesmo que a porta esteja aberta, a rua de liberdade está vazia e sem graça. A vida escorre para lugar nenhum. O humor e a fantasia, porém, salvam os dramas da piedade ou do sobressalto. Tudo faz parte de uma morna rotina trágica e, contraditoriamente, natural. Afinal de contas, felizes e lindos são sempre os outros, e o que é imprevisto é o amor dar certo, o homem chegar na hora, o coração não se partir ao meio ou o marido não sumir.
Um humor muito pessoal, à la Ivana, percorre os textos aqui e ali, não deixando o ar sufocante, muito pelo contrário. Há histórias quase cômicas, como é o caso de O carro de Toninha, em que o veículo do título é devorado pelas samambaias, ou do conto que desvenda o segredo do Sabonete das estrelas. Em uma outra história, uma mulher é transformada em baleia de tanto comer na frente da televisão.
Ivana trabalha a personalidade dos espaços públicos em sintonia com o íntimo das personagens — todos estão devidamente mal tratados. Existe uma estreita relação entre a cidade e as almas destas mulheres estranguladas. Como escreve em Mulher do povo:
São Paulo amanheceu parada. A greve de ônibus entope as tripas da cidade. As pessoas se espremem nos lotações clandestinos pra não perder o dia de serviço. Confesso que estou mais preocupada com meu próprio congestionamento. Minha hérnia pode estrangular a qualquer momento. Se isso acontecer, a morte será imediata.
De uma maneira ou de outra, as personagens vivem derrotas íntimas e sonhos desfeitos em dias avulsos que podem desaparecer em segundos por labaredas, como é o caso da moça Joelma. Uma frase aqui repercute ali, embora as situações sejam diversas: “Sonhei que andava a pé por uma estrada de terra vestida de noiva, arrastando uma cauda imensa que ia ficando marrom com a lama da estrada”, escreve em Ao homem que não me quis, conto cujo título é um livro de 2005, finalista do prêmio Jabuti.
Sem príncipes
Em Cachorros, o tempo é um personagem ingrato e cruel. Novamente aqui, a certeza de que não há príncipes salvadores. Se a mulher cismar de se trancar em uma torre vai morrer enclausurada a menos que o milagre do conto de fadas aconteça. Não há ninguém capaz de salvar a mulher que naturalmente envelhece e que é (sempre!) dez anos mais velha do que qualquer homem desejado que aparecer pela frente: “E eu, quem virá me salvar? Meus cachorros. Os únicos que correspondem ao meu amor de cadela”, diz a personagem de A mulher que amava cachorros.
De fato, elas continuam amando e se apaixonando por aqueles que as xingam, por aqueles que nunca estão — jamais estiveram ao lado — pelos bêbados e os apodrecidos: “O bafo da boca dele era bafo de gente podre por dentro”, como descreve em O último encontro. A mesma mulher que sente a podridão de dentro do homem é aquela que está sempre aos pedaços, mas segue adiante.
“Pegou a bolsa e pensou de novo: que parte de mim está faltando?”
A vida está de péssimo humor, e não há muito o que fazer quanto a isso a não ser beber, esquecer o tempo e tentar a felicidade possível, aquela que mora à beira de um xis salada com fritas. Ou então comer um peixe caro, na impossibilidade de garfar o homem que preferiu vazar. Amantes patéticas e desgraçadas; mulheres sem vontade de viver. Homens foragidos e assustados pelo amor-pau das mulheres. Se existe alguma delicadeza, é talvez aquela da mãe valente que insiste em ter sozinha o filho que o homem não quis.
Ivana, mestre em Sociologia pela USP e dona de um currículo de textos em gêneros diversos, que vão de romances, novela, passando por juvenis e infantis, revela em seus contos a consistência de seu projeto estético. Embora girem em quadrantes às vezes fantásticos, como é o caso de muitas histórias reunidas na seleção, suas mulheres e homens são em geral tão reais, que a realidade prontamente os acolhe; a gente vira para o lado e, de repente, encontra um deles.
Ou até mesmo: no próprio espelho.