Combate interminável

Leitura de "Os sertões" é um empreendimento árduo, mas páginas memoráveis sobressaem em meio aos excessos e ao ensaio histórico
Euclides da Cunha por Osvalter
01/08/2012

Excêntrico e híbrido, Os sertões, de Euclides da Cunha, assemelha-se ao mostrengo de Fernando Pessoa, que se ergue a voar na “noite de breu”, em pleno oceano, e circunda a nau do explorador, interrogando-o: “Quem é que ousou entrar/ Nas minhas cavernas que não desvendo,/ Meus tectos negros do fim do mundo?”. E a reação do leitor, ao se deparar com o grosso volume e seu texto muitas vezes excessivamente rebuscado, quase sempre não corresponde à do navegante que enfrenta a terrível criatura — “Aqui ao leme sou mais do que eu:/ Sou um povo que quer o mar que é teu […]” —, pois se tornou comum a desistência logo às primeiras páginas, quando o inexperto marinheiro se depara com descrições topográficas e geológicas que parecem conduzi-lo ao abismo, e não à passagem do Bojador.

O desejo euclidiano de erigir uma obra total pagou o preço da desmesura, semelhante aos personagens mitológicos julgados por sua hybris. Mas o livro, que veio à luz em 1902, continua a merecer atenção — cuidadosa e necessária. Em relação a Os sertões é preciso distanciar-se das leituras fossilizadas, pois excessivamente laudativas, capazes somente de coroar a obra com jaculatórias, segundo o feliz ensinamento do seu principal estudioso contemporâneo, Leopoldo Bernucci, no evento Euclides da Cunha 360º, realizado em 2009. O pesquisador, aliás, salientava o fato de, no Brasil, cultuar-se esse autor controverso que, ao invés de ser endeusado, deveria ser debatido. Prática, completa Bernucci, fruto de uma cultura em que não se aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na qual o fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua compreensão.

Tais cuidados fazem-se ainda mais necessários quando recordamos a melhor biografia de Euclides da Cunha, escrita pelo norte-americano Frederic Amory (que analisei neste Rascunho em janeiro de 2010). Para o autor de Euclides da Cunha: uma odisséia nos trópicos, a leitura proveitosa de Os sertões exige isolar o valor estilístico dos erros geográficos e das análises deterministas e racistas. A força da narrativa supera, é verdade, em inúmeros trechos, o conteúdo analítico datado; mas não podemos esquecer as sábias observações de Gilberto Freyre, para quem Euclides está “perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico”.

Há quem prefira alimentar opinião mais radical, como Roberto Schwarz, que critica, ao falar de Euclides e Raul Pompéia, a “monstruosa salada que junta naturalismo e parnasianismo, écriture artistique e racismo científico, eloqüência épica e terminologia técnica”. Para Schwarz, a “prosa franca e espirituosa” de Helena Morley (em Minha vida de menina), “inimiga de afetações de superioridade” e livre das “alienações ideológicas e artísticas”, encontra-se num patamar superior ao de Os sertões. Trata-se, sem dúvida, de uma “dialética envenenada”, mera provocação, como aliás já anunciava o próprio título da entrevista, de 1997, em cujo corpo encontramos as citações.

Na verdade, guarda mais razão Franklin de Oliveira, no ensaio Um problema de ontologia literária, presente em Euclydes: a espada e a letra. Ao recuperar o histórico dos termos phantasia e imaginatio, passando por Leonardo da Vinci — para quem a ciência era “uma segunda criação realizada pela fantasia”, pois “a criação artística contém todas as formas que estão na natureza e as que não estão” —, o estudioso maranhense demonstra que, para Euclides, “a fantasia é o fermento, a levedura das criações artísticas e científicas”. Ainda que, páginas depois, Franklin acabe por acorrentar Os sertões à categoria de “ensaio de crítica histórica”, comparando-o, de forma absurdamente exagerada, a Johan Huizinga (O outono da Idade Média) e Jacob Burckhardt (A cultura do Renascimento na Itália), a intuição do ensaísta plantou boa semente: a base de Os sertões é a fantasia — e o livro, de fato, está recheado de ficção.

Misterioso defunto
Um dos trechos mais belos e instigantes de Os sertões é Higrômetros singulares, no qual Euclides apresenta a “secura da atmosfera”, na região de Canudos, por meio de uma cena perturbadora. O leitor acaba de enfrentar as páginas iniciais de A Terra, primeira parte do livro, e encontra-se dividido entre abandonar o volume ou seguir em frente. É a reação natural de quem, não sendo geólogo, pergunta-se o que significam, por exemplo, “assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares”. Ele percebe, graças a seu instinto panglossiano e à eufonia, a relativa beleza de dizer que

Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda — restos de velhíssimas chapadas corroídas — se derramam ora em alinhamentos relembrando velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajes fraturadas, delatando idênticas violências.

Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de “cristais de feldspato”, “estratos de um talcoxisto”, “formações silurianas”, “cachopos de quartzito” e quejandos. Nesse momento, quando suas vísceras começam a gemer, salva-o da escuridão o narrador, abraçado à tarefa de explicar as características climáticas, mudando subitamente a inflexão da voz para torna-se íntimo, lírico:

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.

Nesse cenário idílico, no qual “icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes” explodem não só graças ao brilho que ofusca, mas à aliteração da frase, um soldado “descansava… havia três meses”. A antinomia dos elementos seduz. Passadas dezenas de páginas em que o linguajar técnico enfastiava, no centro do jardim luxuriante surge o morto:

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido.

A cena, trágica, tem uma beleza que atordoa. Ali está o defunto, protegido pela longa sombra do sol poente, “braços largamente abertos, face volvida para os céus”. Euclides acrescenta o comentário enternecedor: “O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante […]”. E prolonga nossa pena por meio de uma sugestiva amplificação: “[…] e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…”.

As linhas finais servem não só à comprovação científica da “secura extrema dos ares”, mas acrescentam caráter filosófico ao texto. O narrador contrapõe uma nota de enlevo à sua constatação, lacônica e aguda, colocada entre travessões, sobre o fim da matéria, como se a degradação invulgar daquele corpo pudesse fugir à lei universal:

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível.

São trechos desse tipo, nos quais a fantasia estraçalha o ensaio histórico, que justificam a leitura de Os sertões. E o colocam bem acima do livro pueril de Helena Morley — e de grande parte da literatura produzida no Brasil até o início do século 20.

Esse trecho encerra também uma característica misteriosa. Como afirmei em meu blog, em 2006, considero Higrômetros singulares uma espécie de paráfrase do poema Le dormeur du val, de Arthur Rimbaud. A semelhança entre os textos é fascinante, inclusive se utilizarmos a tradução impecável de Ivo Barroso. Em Euclides, “um velho jardim em abandono”, com uma “árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina”; em Rimbaud, “um recanto verde onde um regato canta/ doidamente a enredar nas ervas seus pendões/ De prata”. No brasileiro, “o sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão”; no francês, “o sol, no monte que suplanta,/ Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões”. Se o soldado, em Os sertões, tem “os braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…”, no poema ele apresenta a “boca aberta, fronte ao vento,/ […] estendido sobre as relvas, ao relento,/ Branco em seu leito verde onde chovia luz”. Luz que fulge na “flores rutilantes” de Euclides. Este fala da “ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono”; no poema, o verbo dormir surge duas vezes. A transposição me parece clara. Euclides tirou o soldado do vale verdejante de Rimbaud e colocou-o entre seus “icozeiros virentes”, também num vale, descrito no seu estilo algo hiperbólico.

A similaridade me encanta. Leopoldo Bernucci já demonstrou (em A imitação dos sentidos) as relações intertextuais que Os sertões mantém com, entre outros, Victor Hugo e Domingo Sarmiento. E há um dado, de ordem biográfica, que corrobora minha hipótese: sabe-se da influência que teve — não só no que se refere a sugestões de leitura, mas, de maneira indireta, na própria elaboração de Os sertões — o intendente de São José do Rio Pardo, Francisco Escobar. Entre 1898 e 1901, período durante o qual Euclides viveu na cidade do interior paulista, ocupando-se da reconstrução da ponte que ruíra, os dois estabeleceram profunda relação de amizade, prolongada depois em razoável número de cartas. Ora, Escobar foi um autodidata culto, além de bibliófilo, dono de farta biblioteca, que deve ter representado universo sem precedentes para Euclides. Há quem afirme, inclusive, que Escobar apresentou ao amigo os clássicos portugueses, como Alexandre Herculano, além de inúmeros escritores, exercendo, assim, influência sobre o estilo do autor.

Dessas constatações surgem várias perguntas: Escobar teria apresentado Rimbaud a Euclides? Le dormeur du val aparece em duas edições: Reliquaire, poésies (L. Genonceaux, Paris, 1891; prefácio de Rodolphe Darzens) e Poésies complètes (L. Vanier, 1895; prefácio de Paul Verlaine). Um desses livros faria parte da biblioteca do intendente? Teria importado o volume? Acompanhava os lançamentos editoriais franceses, hábito comum entre os brasileiros cultos da época? Ou trata-se apenas de um tema recorrente na literatura, mera coincidência, como em vários casos? Mas se Euclides da Cunha leu o poeta Maurice Rollinat, como afirma Frederic Amory, por que não conheceria Rimbaud? Se existir um catálogo ou lista dos livros de Francisco Escobar, ali poderemos descobrir parte das respostas.

“Celeiro agreste”
Não é preciso sair de A terra para encontrar mais páginas memoráveis. Veja-se, por exemplo, a descrição da seca. Euclides interrompe a narração de algumas tradições locais, como os desafios, para descrever a estiagem prolongada que susta a vida e a esperança simples do sertanejo:

De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.

As frases bruscas introduzem o fenômeno de maneira cortante, pois o autor sabe que este é o centro da tragédia — parte fundamental das causas que desencadearão a guerra. Podemos lastimar o discurso que idealiza o sertanejo, transformado num estóico quando, na verdade, age não por opção consciente, heróica, mas porque só tem duas escolhas, submeter-se ou fugir. E há trechos de exagerada retórica, como ao qualificar a seca de “sezão assombradora da Terra”. No entanto, o crescendo que Euclides descreve está além da épica; marcado por extremo realismo, evidencia cada gesto da luta pela sobrevivência — e o malogro que se renova:

Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas… Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas…

O ritmo da frase alcança, muitas vezes, musicalidade poética. Tal afirmação, repetida por dezenas de autores, recebeu atenção criteriosa de Augusto de Campos (no ensaio Transertões), que dissecou o texto, demonstrando, com inúmeros exemplos, a ocorrência da métrica clássica na prosa euclidiana e como ela constrói uma estrutura em tudo oposta à mera “caricatura do parnasianismo”. Poesia encontrada na descrição das manifestações de religiosidade que acompanham “a insurreição da terra contra o homem”:

Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes…

A caatinga transforma-se, então, num “celeiro agreste”, oximoro que sintetiza a busca por alimento, cada vez mais desesperada, na qual parcela da fauna volta-se contra o gado e contra o homem. No fim, os próprios urubus rejeitam a carne dos “bois mortos há dias e intactos”, pois “não rompem a bicadas as suas peles esturradas”. Banido pela seca, o sertanejo migra. E mesmo sabendo que o final feliz da narrativa, contestado pela realidade, nem sempre é verdadeiro, não podemos negar-lhe o acerto dos termos, a simetria dos períodos, a harmonia à qual colabora perfeita pontuação:

Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”. Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho… No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.

Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.

Atinge-os. Salva-se.

Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados.

Síntese e ampliação
Os sertões também está polvilhado de personagens que, apesar de serem reais, ganham contornos próximos do fantástico. Na terceira parte do livro, A luta, encontramos o coronel Moreira César, cuja “legenda de bravura” Euclides desmonta com perfeita ironia, primeiro inserindo-o no quadro maior da história do país, cuja “sentimentalidade suspeita” está — até hoje — pronta a criar “heróis de quarto de hora destinados à suprema consagração de uma placa à esquina das ruas”. Tão lunático quanto Antônio Conselheiro, Moreira César, servil à pior face do ditador Floriano Peixoto, é apresentado como criminoso contumaz, responsável, durante a Revolução Federalista, por um dos mais sangrentos episódios, no qual ordenou prisões e fuzilamentos sumários. Não por outro motivo o coronel é escolhido para comandar a primeira tentativa séria de debelar Canudos:

Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades. Despontavam, efêmeras, individualidades singulares; e entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.

A expedição é descrita pormenorizadamente, incluindo-se os erros táticos, a arrogância do comandante que se considerava imbatível e o absoluto despreparo da tropa. No fim, em plena debandada do exército, até o corpo de Moreira César é atirado “à beira do caminho”. Na última cena, os jagunços decapitam os cadáveres. “Alinharam, depois, nas duas bordas da estrada as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas…” E ao perverso estetismo do sertanejo, Euclides adiciona o seu comentário, não menos mórbido:

A caatinga mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes…

Euclides da Cunha também se mostra hábil nas cenas breves, capazes de sintetizar todo o horror da guerra:

Numa das refregas subsequentes ao assalto, ficara prisioneiro um curiboca ainda moço que a todas as perguntas respondia automaticamente, com indiferença altiva:

“Sei não!”

Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.

“De tiro!”

“Pois há de ser a faca!” contraveio, terrivelmente, o soldado.

Assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escumando, à passagem do último grito gargarejando na boca ensanguentada:

“Viva o Bom Jesus!…”

Mas é nos longos períodos, perfeitamente encadeados, que o escritor revela suas melhores qualidades. Perto do fim da guerra, antes que a solução definitiva — o uso da dinamite — seja colocada em prática, a insânia do combate surge reconstruída num parágrafo do qual transbordam, em iguais proporções, armamentos e força abusiva, vitória e devastação:

E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos — os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela história, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços — sob a impassibilidade dos céus tranqüilos e claros — a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte…

Vencer e não vencer
Retomando os primeiros parágrafos deste ensaio, poderíamos tê-lo escrito de modo diverso, salientando o que é afetado, grandiloqüente e pleno de preciosismo em Os sertões. Ou, tarefa ainda mais fácil, detalhando equívocos e impropriedades nascidos do olhar determinista e de tantas outras influências, mais que datadas. No entanto, mal se começa a reler esse livro, contaminado de idéias envelhecidas, ressurge o mostrengo indomável, que nos condena a repetir a luta do sertanejo, “recontro que não vence e em que se não deixa vencer”. Não é outra a tarefa — interminável — do leitor que se dispõe a abrir Os sertões.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Coelho Neto e Turbilhão.

Euclides da Cunha
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha foi engenheiro, jornalista, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta. Nasceu em Cantagalo (RJ), a 20 de janeiro de 1866, e faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de agosto de 1909. Em 1884, matriculou-se na Escola Politécnica. Dois anos depois assentou praça na Escola Militar. Em 1888, ocorre o episódio de insubordinação que ficou famoso, no qual lança aos pés do ministro da Guerra a sua espada de cadete. Submetido a Conselho de Guerra, é desligado do Exército. Reintegrado ao Exército, após a Proclamação da República, concluiu o curso da Escola Superior de Guerra como primeiro-tenente. Em 1896, deixa o Exército e dedica-se à engenharia civil, em São Paulo. Encarregado, pelo jornal O Estado de S. Paulo, de acompanhar, como observador de guerra, o movimento rebelde chefiado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, em pleno sertão baiano, ali inspira-se para escrever Os Sertões. Em 1898, fixou-se em São José do Rio Pardo, onde redigiu o livro. Em 1904, é nomeado, pelo barão do Rio Branco, chefe da Comissão Brasileira no Alto Purus, para demarcação de fronteiras. Passa a trabalhar no Itamarati em 1907. No ano seguinte, é aprovado num concurso para ser professor de Lógica, no Colégio Pedro II. Na manhã de 15 de agosto de 1909, na Estação de Piedade, Estrada Real de Santa Cruz, Euclides da Cunha foi assassinado pelo amante de sua esposa. Deixou, dentre outros textos, três obras: Peru versus Bolívia (1907); Contrastes e confrontos (1907); e À margem da história (1909). Suas Obras completas foram organizadas por Afrânio Coutinho, em 1966.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho