Com rigor e com afeto

Tzvetan Todorov alerta sobre os males da instrumentalização da literatura
Tzvetan Todorov, autor de “A literatura em perigo”
01/05/2009

Para Raquel Bello e Paula Alemand

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver […]. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurda do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo.

A leitura do novo livro de Tzvetan Todorov, do qual foi extraído o vigoroso parágrafo, impulsiona-me à escrita de um artigo livre de certa frieza dos textos impessoais. É por isso que começo relatando uma experiência vivida (não somente por mim, tenho certeza) assim que me formei em Letras e cheguei a um colégio para lecionar literatura no ensino médio.

Embalado pela excelente prática de ensino realizada na UFRJ, sob a regência do brilhante professor André Dias (que bem mais do que nos “ensinar” a maneira correta de apagar o quadro e transmitir a nós meia-dúzia de tolos eufemismos travestidos de respeito ao aluno, apresentou-nos livros de psicologia social, geografia, antropologia, além, é claro, de grandes obras literárias) e cônscio de que não poderia subverter completamente a estrutura curricular do colégio — não feita só de negatividades —, queria quebrar a idéia ainda muito forte de que as artes são matéria para ricos, loucos ou vadios.

Foi então que me dirigi a uma turma do segundo ano, tentando perceber como nossa disciplina era vista, torcendo para que houvesse ao menos uma ligeira simpatia (sabendo, claro, que alguns a ignorariam ainda que ela lhes fosse apresentada da melhor maneira possível). De acordo com o programa, no primeiro ano devem ser lecionados aspectos de teoria literária (literariedade, gêneros, figuras e funções da linguagem), a literatura dos colonizadores do século 16, o Barroco e o Arcadismo, ocupando, cada tópico, um bimestre do ano letivo. Para adolescentes que em média têm quinze anos e muita energia, não é a coisa mais recomendável (mais por conta da linguagem erudita). Mas eu cria que os poemas satíricos de Gregório de Matos, com suas depravações subentendidas, ou mesmo os sonetos de Cláudio Manuel da Costa, repletos de sofisticada carga afetiva, tivessem feito vibrar neles a veia que sempre vibra em todos os que passam a se interessar por literatura, dizendo ser possível conceber o mundo de outra maneira, mais real e transfigurada a um só tempo.

Só que para a minha surpresa, isso não havia sido passado a eles. A própria professora do primeiro ano me informou que necessitou trabalhar com ênfase a teoria, alongando-se, segundo a própria, em versificação e classificação poética, a fim de que eles aprendessem a diferença entre as rimas internas e as encadeadas, entre o idílio e a écloga. Não houve como não pensar que vários leitores foram assassinados antes mesmo de nascerem, pois eles haviam visto uma abstração enfadonha até mesmo para professores.

Automaticamente somei o ocorrido ao estágio que havia feito num colégio público antes de me formar. Na ocasião (2006), não havia mais a disciplina literatura nas grades disciplinares dos colégios estaduais fluminenses de ensino médio (sim, ela fora varrida do mesmo modo que haviam sido filosofia e sociologia), e a professora da turma em que me instalei alternava as disciplinas por bimestre. Ou seja, no primeiro e no terceiro foram ministradas aulas de português; no segundo e no quarto, de literatura. E o secretário estadual de educação da época dessa aberração (governo de Rosângela Matheus) era Arnaldo Niskier, professor e membro da Academia Brasileira de Letras. Um grande mal estava feito, e empreendido por ditos homens de bem…

E é contra esse mal, o da mera instrumentalização das letras (fator de sua marginalização), que se edifica A literatura em perigo, do professor e crítico búlgaro-francês Tzvetan Todorov, livro denunciador dos problemas decorrentes do ensino de literatura, e restaurador do item que está na base das grandes obras estéticas e no cerne do pensamento dos seus espectadores: o amor pela arte.

Roupa suja que não se lava em casa
Num inteligente prólogo, o tradutor do livro e poeta Caio Meira relaciona a discussão do pensador francês ao ambiente universitário brasileiro. Se pensarmos que em sociedades da Grécia os poetas eram convocados para avalizar ou não a decisão de um governante, serão mais desoladoras as palavras de Caio:

Para Todorov, o perigo que hoje ronda a literatura é o oposto [em relação à opinião de Platão, para quem a poesia intervinha na formação do espírito]: o de não ter poder algum, o de não mais participar da formação do indivíduo, do cidadão.

Diante disso, é prática comum entre os que dela discordam a procura pelos culpados de sua disseminação. Fosse formulado um debate, os alvos seriam altamente previsíveis: a política educacional dos governos e a universidade, aqueles por negligenciarem os investimentos numa área essencial para o desenvolvimento e a soberania do País, a educação; esta por tecnicizar excessivamente a literatura, negando ou diminuindo a espontaneidade e a subjetividade de que tanto a produção quanto a análise artística sempre dependeram. “O caminho tomado atualmente pelo ensino literário (…) dificilmente poderá ter como conseqüência o amor pela literatura”, diz o próprio Todorov.

Caio Meira esgarça a questão, e, ao falar dos estudantes dos cursos de Letras, faz-nos perceber uma mentalidade construída pelo mercado e absorvida, voluntária ou coercitivamente pelos que desejam uma formação meramente técnica, voltada para o mesmo mercado de trabalho. Diz o prefaciador:

Tomemos como exemplo os alunos dos cursos de Letras das universidades brasileiras: boa parte, com idades que variam em torno dos 20 anos, pouco ou quase nada leu de nossos romancistas ou poetas. Quase nenhum deles ouviu falar de Baudelaire, Edgar Allan Poe, Goethe, Fernando Pessoa, e raríssimos os leram. Esses alunos chegam à Faculdade de Letras em busca de especialização numa língua estrangeira ou de se tornarem professores de Português. Por outro lado, não lhes falta capacidade intelectual ou espírito crítico. O fato é que, até esse momento, com raras exceções, a literatura pelo menos de maneira direta, isto é, mediante a leitura de romances, contos, poemas etc. não participou da sua formação intelectual e afetiva, deixada, no que diz respeito à arte, bem mais a cargo do cinema e da música popular brasileira ou estrangeira (o que não quer dizer que não haja literatura na música ou no cinema…).

É de notar então que onde a literatura deveria ser celebrada e dignificada, ela também é submetida à marginalidade, virando mera peça decorativa, entretenimento esporádico ou veículo para estigmatizar como “porraloucas” ou “cdfs” os seus amantes. O próprio currículo disciplinar do curso de Português-Literaturas apresenta maior ênfase no ensino da língua. Evocando outra experiência, foi muito penoso para mim (e para tantos outros colegas) ter de estudar língua portuguesa — de forma geralmente rasa e insípida — por todos os oito períodos da graduação, sendo que decidi fazer Letras para estudar literatura. E foram apenas quatro os períodos para estudar as literaturas brasileira e portuguesa, e dois para estudar as africanas e literatura comparada (que é uma espécie de literatura geral do Ocidente).

Diante disso, não é difícil perceber que os literatos, já expulsos da república platônica, são também expulsos do lugar onde deveriam figurar como soberanos: as próprias faculdades de letras. Dificílimo então a busca de culpados, pois até mesmo muitos escritores têm feito de suas obras apenas exposições de conhecimento teórico, e a literatura preponderante entre nós (na prosa e na poesia), chamada vagamente de experimental, torna-se estéril na medida em que renuncia escavar os solos da existência.

Mais produtivo que assinalar culpados é conclamar os que podem mudar os fatos: os professores. Mas, pelo menos no Rio de Janeiro, eles têm como remuneração geral R$ 9,51 por hora de aula, e acabam não tendo tempo (ou estímulo) para a efetivação de novas práticas em sala de aula.

O humano no centro
O livro de Tzvetan Todorov é um manifesto contra os excessos críticos que retiram do fenômeno artístico (ou o diminuem) seu aspecto mais intenso, que é a capacidade de interferir na vida humana. Partindo da leitura do Boletim Oficial do Ministério da Educação (da França), do ano 2000, referente ao ensino da língua e da literatura daquele país, o autor fica indignado ao observar as diretrizes apresentadas no documento, todas voltadas para o conhecimento dos gêneros literários, a história literária, os tipos de discurso, etc.

O conjunto dessas instruções baseia-se, portanto, numa escolha: os estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem. Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.

Pode-se então pensar numa incoerência, pois Todorov é muito conhecido como um prócere do estruturalismo, tendência crítica que estudava a obra literária de maneira fechada, isolada em suas especificidades. No livro, o autor aponta que tal corrente, entre os anos de 1960 e 1970, foi a gênese desse mal, hoje sobressalente nos estudos universitários.

Mas ele mesmo se encarrega de explicar o impasse: as teorias têm por objetivo tornar o estudo da literatura mais abrangente e profissional, para fugir da mera apresentação de opiniões, sempre discutíveis pela subjetividade do gosto. É inegável, por exemplo, a contribuição que a sociologia, a psicologia e a história oferecem à crítica. O grande problema é a empresa, tão humana quanto a literatura, de validar uma verdade a partir do desmerecimento da outra. Ou seja, de acordo com certo pensamento, a crítica só poderia ser levada a sério caso não se restringisse ao mero impressionismo, devendo ser ele varrido dos estudos, o que é tão equivocado como acreditar na inutilidade das teorias.

No Brasil, essa discussão é muito forte nas universidades atualmente. Na Formação da literatura brasileira, Antonio Candido fala da peleja entre os esteticistas (contrários às teorias) e os historicistas (afeitos às mesmas). No caso, ele explica que durante muitos anos vigorou a idéia de que a literatura era um mero reflexo da história, servindo apenas para ilustrá-la. E no momento em que literatos reivindicaram a autonomia, a “solução” encontrada foi banir a história das pesquisas literárias. É o típico caso em que um exagero conduz ao outro, e ambos se afogam abraçados no poço das generalizações. A literatura passa a ter “donos”, entre os quais se vêem menos escritores do que senhores feudais.

A literatura em perigo é um livro voltado decisivamente contra tais maniqueísmos, e toca em questões esquecidas pelos críticos, negligenciadas pelas teses, e diminuídas em congressos: as questões mais tocantes e envolventes que um texto literário pode nos apresentar, levando-nos à transcendência, sentindo ódio e paixão pela vida. “Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver”, diz Todorov numa de suas páginas iniciais, nas quais nada há de auto-ajuda ou de pieguice romantizada.

O alerta do autor diz que a literatura está mecanizada, e ele grita para que os seus estudiosos não se esqueçam dos motivos pelos quais decidimos nos dedicar às artes, aqueles mesmos motivos que acendem nossas retinas diante de um texto tocante, os mesmos motivos que não raro nos fazem torcer o nariz para os cálculos, as fórmulas e as leis.

A literatura em perigo
Tzvetan Todorov
Trad.: Caio Meira
Difel
96 págs.
Tzvetan Todorov
Nasceu na Bulgária, em 1939, mas vive na França desde 1963, onde atua como professor e pesquisador de diferentes ciências humanas. Publicou A conquista da América — a questão do outro, As estruturas narrativas, entre outros.
Marcos Pasche

É crítico literário.

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