Eu tinha uns cinco anos e esperava ansiosamente os fins de semana. Quando os amigos de meus pais começavam a chegar, era só alegria! Afinal, eu era a queridinha da galera, toda cheia de mimos, de atenções. E ia poder dormir tarde. Só quando os olhos não agüentassem mais ficar abertos. E isso demorava a acontecer, pelo que eu me lembro. Meu pai tocava violão — ainda toca, embora bem menos agora — e os amigos todos, cheios de cerveja e fumaça do churrasco, cantavam, dançavam e tocavam caixinhas de fósforo, chocalhos, raladores, o que tivesse pela frente. Mas havia sempre um momento que não podia faltar. E era meu! Meu pai me olhava, dava uma risadinha e dizia: “Essa é pra Deinha: ‘Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês…’” Eu delirava! Cantava e dançava mais do que antes. Eu achava — e espalhava para todos os meus amigos — que aquela música, que eu chamava de “Agoreuererói”, tinha sido escrita pelo meu pai. Para mim! Era a minha música. Eu era a princesa, eu era a noiva do caubói. As outras três eu não tinha idéia de quem fossem e nem me preocupava… uma delas devia ser a minha mãe, outra a minha irmã.
Eu tinha nove anos quando fui passar um carnaval em Mandaguari (norte do Paraná), na casa de minha prima. Foi lá que eu escutei, no rádio, a minha música. Só que o locutor disse que a composição e a interpretação eram de Chico Buarque. Como assim? Claro que eu conhecia o Chico Buarque… Meu pai cantava muitas músicas dele — uma delas, Acorda, amor, me fazia rir como se não houvesse amanhã (por causa do refrão “chame o ladrão, chame o ladrão”… era bom ser criança). Mas não podia ser dele aquela música… Era do meu pai, não era?
— Pai… Quem fez Agoreuererói?
— O Chico.
— Buarque?
— É. Por quê?
— Nada, não…
Acho que eu tinha uns 20 anos quando falei para o meu pai que eu achava que João e Maria era minha música. E eu acho que até hoje eu sinto que ela seja. E para mim ela ainda se chama “Agoreuererói”. É que músicas deixam marcas na gente. Deixam lembranças, cheiros, cores. E quando elas chegam a nossos ouvidos, nos apropriamos delas. Damos corpos, formas, significados…
Livre inspiração
Cada um se apropria das canções de seu jeito. No meu caso, literalmente. Mas o escritor gaúcho Luiz Paulo Faccioli, por exemplo, apropriou-se de algumas canções de Chico Buarque para fazer o livro de contos Trocando em miúdos. Ele contou novas histórias a partir de letras do Chico. São 15 contos, inspirados por 15 canções. Livremente, sem ter a obrigação de uma análise acadêmica sobre os significados das músicas. Ainda bem… Porque para análises acadêmicas, temos as academias, certo?
As referências às músicas do carioca de olhos azuis são feitas já nos títulos (a começar pelo do livro). A maioria dos contos tem o mesmo nome das canções. E há muitos versos do Chico espalhados pelas histórias de Faccioli. Isto, devo admitir, me incomodou um pouco — nada demais. Mas eu estava lá, lendo uma história, e de repente topo com um verso igual (ou quase igual) ao da música que dá título ao conto. “Até então a única desordem que eu avistava era a de nossas roupas embaralhadas no armário. Dividindo o mesmo cabide, meu paletó enlaçava um vestido, enquanto meu sapato pisava uma sandália de festa.” (conto Eu te amo). Para quem não conhece a música, os versos são: “Como, se na desordem do armário embutido/ Meu paletó enlaça o teu vestido/ E o meu sapato inda pisa no teu”. Vou explicar meu incômodo: assim que eu identificava um verso ou uma parte da canção, a música não saía mais da minha cabeça. Eu começava a cantar e, de repente, precisava retomar a leitura do início, porque já estava perdida na canção. E eu sou muito fã do Chico Buarque (já vou dizendo logo, para quem ainda não percebeu). Então, eu sempre vou preferir a música. (Talvez para quem não goste das canções, ou não as conheça, isso não seja nenhum empecilho. Aliás, talvez nem para quem goste. Eu é que divago muito…)
Não… não é preciso conhecer as músicas do Chico para ler — e gostar — das histórias que o gaúcho escreveu. Os contos são independentes das canções. E são bons. Faccioli escolhe bem as palavras que vai usar. Não desperdiça, não esbanja vocabulário pretensioso… Conta histórias. Simples, curtas — ou curtíssimas. Que falam de amor (ou da falta dele), de desejos, de sonhos. Nada de política ou engajamentos. O livro é focado em canções românticas e, por isso mesmo, é romântico. É de leitura fácil, rápida, despretensiosa.
Imagino que Faccioli goste do Chico. E que tenha feito, com esse livro, uma homenagem a ele. Uniu música e literatura, artes diferentes que se completam, tropeçam… No caso de Trocando em miúdos, trombam. Como numa verdadeira embolada. Mas saem, ambas, ilesas.