Colorida(mente)

Todas as cores do mundo, de Giovanni Montanaro, recria um período da vida de Van Gogh para discutir loucura e preconceito
Giovanni Montanaro, autor de “Todas as cores do mundo”
26/11/2015

Em Todas as cores do mundo, o jovem escritor italiano Giovanni Montanaro deu vida a um curto período da trajetória do pintor holandês Vincent Van Gogh do qual se tem pouco registro. Van Gogh, que só começou a pintar depois de adulto e, pelo que se sabe, só vendeu um único quadro em vida, é, sem dúvida, um personagem fascinante para falar de paixões e muitos outros sentimentos que a sua arte traduz.

As cartas ao seu irmão, Théo, são uma fonte importante de informações sobre a vida e a personalidade desse pintor que é considerado um dos maiores pós-impressionistas de todos os tempos, mas que só teve o seu talento reconhecido após a morte. Sério, introvertido, depressivo, epiléptico e possivelmente esquizofrênico, Van Gogh carregava desde cedo o estigma da loucura, contra o qual sempre lutou. Seus quadros, no entanto, mostravam o colorido vibrante das coisas do mundo, assim como toda a beleza existente no que a sociedade tradicionalmente considera imperfeito.

O romance é uma carta apaixonada escrita por Teresa Sem Sonhos, uma menina que nasceu no vilarejo de Gheel, na Bélgica, lugar que ficou conhecido como uma das primeiras colônias para pessoas com doenças mentais por acolher com alguma aceitação aqueles ou aquelas que, na época, eram considerados “loucos”, fazendo-os conviver com os demais membros da comunidade sem ficarem presos.

A escolha desse cenário, no entanto, não foi por acaso: não apenas porque se sabe que Vincent Van Gogh peregrinou pela Bélgica durante um período de sua vida do qual pouco se tem registro; mas também porque um dos objetivos do livro parece ser tratar do surgimento dos sanatórios, dos argumentos usados para definir a loucura na época, além dos tratamentos desumanos que essas pessoas recebiam em nome da “ciência”. Apesar da aparente socialização existente em Gheel, as pessoas rotuladas como doentes (e aqueles e aquelas erroneamente considerados assim) tinham uma condição de vida nada justa, muitas vezes cruel, e quase sempre invisível.

Em sua carta para Van Gogh, Teresa conta toda a história do povoado de Gheel e também a sua história para o pintor, que provavelmente nunca viria a receber a carta. Teresa era filha de uma mulher apelidada pelos moradores da cidade de Sem Sonhos, cuja situação de invisibilidade era tal que seu nome verdadeiro só é revelado depois de sua morte. Teresa herdou da mãe não só o apelido, mas também o estigma, apesar de ser perfeitamente lúcida. Sem Sonhos, que ganhou esse nome por perambular pela cidade sem conseguir dormir com medo de que alguém a machucasse, é abusada sexualmente por um desconhecido e fica grávida, mas vem a falecer durante o parto, em um dia de muita ventania. Para que a história de violência contra uma das doentes que moravam na cidade não chegasse aos ouvidos das autoridades, a criança primeiro é acolhida pela paróquia e depois por uma das famílias da região. Anos mais tarde, recebe o nome de Teresa Sem Sonhos. Teresa e seus tutores concordam em diagnosticá-la como louca para que ela possa continuar morando com uma das famílias ricas da cidade de Gheel, que acolhiam pessoas com doenças psíquicas em troca de dinheiro do Estado. Dessa forma, Teresa cresce trabalhando como lavadeira para essa família, em uma condição totalmente subalterna, e um dia conhece Van Gogh, que, em uma de suas muitas andanças solitárias e sem destino, acaba por chegar até a casa da família Vanheim, onde recebe abrigo por uns dias.

Com Van Gogh como personagem, o autor constrói um romance epistolar, narrado por uma jovem que conheceu o pintor antes do início de sua carreira, para falar sobre preconceito, loucura, violência e o que faz de nós seres únicos.

O espírito atormentado de Vincent é descrito com sensibilidade por Montanaro que, através do olhar inocente da narradora, Teresa, ainda uma menina quando se encontra com Van Gogh pela primeira vez, revela a insegurança e a instabilidade do futuro pintor, que buscava se encontrar e ao mesmo tempo se perder do destino que lhe parecia determinado.

Teresa, uma jovem tímida descobrindo a sua sexualidade, se apaixona perdidamente por Vincent, alguns anos mais velho, e que tinha uma personalidade visivelmente conturbada. Até então ele escrevia muitas cartas, passava as noites em claro, e desenhava coisas que quase ninguém apreciava. É Teresa, em um dos passeios que faz com Vincent pelos campos de trigo, quem lhe apresenta o que lhe faltava: as cores para representar o mundo. Não como uma cópia fiel da realidade, mas como elas eram em sua mente, afinal “toda coisa tem sua própria cor” (p.25). É ela quem lhe diz que ele será um pintor célebre no futuro. Essa é, sem dúvida, a parte mais bonita da história que Montanaro criou, a que mostra a arte como possibilidade de redenção para essas pessoas que estavam aprisionadas ao que os outros julgavam que elas fossem. O nascimento desse pintor que encontrou na arte uma forma de se expressar e de registrar suas recordações, revelando que cada um de nós tem uma forma singular de ver o mundo, é um dos pontos altos do romance. São os quadros de Vincent que, anos depois, ajudam Teresa a recobrar a sua identidade após anos de sofrimento nos sanatórios. A arte passa a ser o seu ponto de contato com o mundo, já tão irreal e sem esperanças. Nós, leitores, somos transportados para um ponto privilegiado de observação, quando reconhecemos entre as descrições de paisagens e momentos do livro os belos quadros de Van Gogh, como é o caso de A noite estrelada, descrito de forma poética por Teresa.

Mas o livro é mais que uma carta de amor, já que trata também de outras questões não tão nobres. Os critérios absurdos usados para definir quem era ou não doente na época são chocantes. Epiléticos como Van Gogh, depressivos, homossexuais, mulheres que simplesmente não aceitavam o tradicional papel feminino de submissão carregavam todo o peso da intolerância e do desrespeito à diversidade e eram internados pelas famílias como loucos. Os “tratamentos”, em muitos casos, eram o que causava, após muito sofrimento físico e psicológico, a insanidade nessas pessoas, julgadas apenas por serem diferentes, seja por sua personalidade, seja por sua sexualidade. O sofrimento de Teresa nos comove e nos faz refletir sobre as muitas vidas que certamente se perderam por conta da não aceitação da diferença, além dos muitos abusos cometidos em nome da “ciência”, de uma religião, ou uma possível “cura”. Ou, ainda, simplesmente como forma de tirar proveito de pessoas que não tinham como se defender, pois não seriam sequer ouvidas.

Pautado em muitas pesquisas sobre a cidade de Gheel e sobre os manicômios do início do século XIX, além de leituras de filósofos que se debruçaram sobre o assunto, como Michel Foucault, o romance de Giovanni Montanaro promove uma reflexão indispensável ainda hoje sobre direitos humanos, sobre o tratamento recebido nos manicômios e sobre as condições de vida dessas pessoas que vivem às margens da sociedade.

Todas as cores do mundo é uma história comovente sobre um amor que não se realizou, que se perdeu pelos caminhos que os dois seguiram apesar de terem tanto em comum. Mas é bonito imaginar que foi por um amor tão inocente que um dos maiores pintores que conhecemos descobriu o seu talento e o seu destino.quadro, que a moldura não existe.

Todas as cores do mundo
Giovanni Montanaro
Trad.: Joana Angélica d’Ávila Melo
Alfaguara
142 págs.
Giovanni Montanaro
Nasceu em 1983. É escritor e advogado veneziano. Escreveu contos, peças de teatro e publicou os livros La Croce Honninfjord (Marsilio, 2007) e Le conseguenze (Marsilio, 2009).
Paula Dutra

É professora, tradutora e doutora em Literatura pela UnB.

Rascunho