🔓 Colonialismo revisitado

Em "Sobrevidas", o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, ganhador do Nobel de literatura 2021, expõe o cinismo europeu na África
Abdulrazak Gurnah por Ramon Muniz
01/01/2023

Ainda que seja um tanto desconhecido do público brasileiro, Abdulrazak Gurnah possui uma consolidada obra literária. O Nobel de literatura, outorgado em 2021, apenas coroa uma trajetória a conferir-lhe uma notoriedade a ponto de iniciar os processos de tradução de seus livros para o nosso idioma, dando-nos acesso a um material até então exclusivo, preso nas mãos de especialistas. Sobrevidas, de 2020, é o seu primeiro livro editado no Brasil.

Abdulrazak Gurnah nasceu no arquipélago de Zanzibar, atual Tanzânia, em 1948. Ainda muito jovem, devido aos conflitos em seu país, emigrou para a Inglaterra, onde vive até hoje. Durante esse tempo, manteve uma relação muito próxima com a cultura de seu país e o continente de origem, sobretudo a África Oriental. Firmou-se como professor universitário, ministrando aulas de literatura na Universidade de Kent.

Foi durante o exercício da docência que iniciou os seus passos na escrita. Diferentemente de outros autores consagrados, conforme nos diz em algumas entrevistas, quando jovem, não sabia que um dia se tornaria escritor. A sua formação literária ocorre em paralelo à acadêmica, revelando traços singulares de sua escrita, mesclando a necessária curiosidade do pesquisador com a capacidade narrativa do escritor — evidenciada pela construção de diálogos entre diversos autores africanos bastante influentes em sua produção, como Chinua Achebe, Ngũgĩ wa Thiong’o, entre outros.

Ao ser laureado pela Academia Sueca, foi sublinhada a capacidade do autor em descrever, falar, pelos imigrantes na Europa — temática bastante presente em sua obra, cujo expoente neste sentido é Paradise, ainda sem tradução para o português. Simultaneamente, frisou-se a atenção dada aos efeitos do processo de colonização na África, com destaque para a Tanzânia. Sobrevidas exemplifica este último ponto.

Sobre vidas
Gurnah não se furta à crítica ao colonizador. Poderia fazer isso por meio de uma afinada ironia, como forma de subestimar ou ridicularizar os europeus na África; ou mesmo por meio de uma escrita quase toda repleta de elementos exclusivos das culturas africanas, esforçando-se por remeter a uma secular autenticidade, à originalidade e riqueza, reforçando o quanto disso foi destruído pela ganância ocidental.

Contrariamente, o autor de Sobrevidas segue por outro caminho, optando por expressar singularidades e, consequentemente, a capacidade de elaboração e interpretação das experiências vividas por parte dos africanos — a partir de agora, tomemos cuidado com a palavra “colonizado”, que perde o seu sentido no livro. Enfim, não há preocupação em apresentar respostas, em reivindicar algo, em fornecer uma espécie de reação a todo um agressivo processo social, político e cultural que prevaleceu por mais tempo do que deveria.

Sobrevidas realça o cinismo europeu ante a dominação trajada de missão emancipadora e desenvolvimentista. A visão colonizadora, datada e, portanto, anacrônica, orienta-se pela suposta incapacidade de os “colonizados” compreenderem aquilo que realmente lhes faria bem. A isso, como sabemos, tem-se a desconsideração das experiências pessoais e, por sua vez, das singularidades envolvidas nos processos relacionais ali evidentes. Gurnah afia a lâmina de sua crítica ao demonstrar a preocupação quanto às relações sociais, às trocas culturais, sempre presentes em uma determinada sociedade. Em seu caso específico, a Tanzânia, tais relações ocorrerão com o que lhes estiver posto à mesa.

Por isso que não é somente a resistência ao movimento colonialista que se torna algo importante para Gurnah — embora a sua relevância seja inquestionável. Nas mesmas proporções, a própria conivência, ou mesmo ingenuidade, de alguns que, durante aquele período, foram entusiastas da dominação europeia, e no caso de Sobrevidas, da dominação alemã e inglesa, também são importantes. O que fica, independentemente do que seja, não pode ser negligenciado enquanto fator para a construção de uma história, ou de várias histórias.

Mistura cultural
Sobrevidas inicia com Khalifa, um trabalhador comum que tenta ganhar a vida honestamente. Pela apresentação, sabemos que ele tem origens indiana e africana, sugerindo a existência de uma mistura cultural na Tanzânia — importante entroncamento comercial no Oceano Índico. Mais do que a valorização da essência de uma identidade cultural ou outra, importa, aqui, o que de fato está presente.

Khalifa se casa com Bi Asha, sobrinha de seu patrão, o mercador Amur Biashara. Posteriormente, conhece Ilyas, de quem se torna grande amigo, adotando a sua irmã caçula após a ida para a guerra, iludido que se encontrava com a dominação alemã — tratam-se de conflitos alemães decorrentes da Primeira Guerra Mundial.

Na calma narrativa de Gurnah, despontam os acontecimentos e como eles são assimilados pelas pessoas envolvidas. O fato de Ilyas se alistar voluntariamente entre os temidos askaris (uma espécie de mercenários locais), para lutar ao lado dos alemães, não nos induz a um julgamento de seu caráter. Contrariamente, o escritor apresenta as razões que o fizeram seguir este caminho, mostrando o quanto da própria personalidade em questão foi moldada por circunstâncias construídas ao longo de sua história.

Em momento seguinte, a narrativa fica centrada em Hamza, também recrutado pelos alemães, na Schtztruppe (a tropa oficial dos germânicos na região), com os guerreiros askaris. Por sua vez, ele vem a ocupar um cargo doméstico, de serviçal, junto ao Oberleutnant, um oficial, atuando como seu assistente particular — gerando diversos comentários preconceituosos entre os demais recrutas que se encontram na linha de combate.

É por exigência de seu oficial que Hamza aprende alemão. Chega a ler Schiller no original. E, a despeito da posição ocupada, Gurnah não deixa de insinuar a violência existente no domínio europeu no continente africano, seja pela condicionada subserviência à qual Hamza se encontra submetido, seja pela finalidade com a qual o aprendizado de outro idioma lhe é imposto.

Mas, claro, a violência física existe. Concomitante à derrota alemã, Hamza é gravemente ferido durante o ataque de raiva de um oficial. Retirado do conflito, transfere-se para um acampamento a fim de se restabelecer, retornando, depois, a Zanzibar, onde, enfim, encontra Khalifa, passando a trabalhar com ele e o mercador Biashara.

Aqui, Gurnah nos entrega um belo senso de humanidade e solidariedade logo após a descrição dos conflitos que feriram Hamza. Isso porque Khalifa o acolhe em sua casa, mesmo nada sabendo sobre o seu passado e o que o levou até ali. Como consequência da guerra, Hamza permanece calado — chega a temer que saibam de seu conhecimento do idioma alemão, sob a pena de ser identificado como um colaborador, tendo em vista a dominação, agora, inglesa sobre o país. Na convivência entre os dois, conhece e se apaixona por Afiya, irmã de Ilyas, perdido no conflito e criada como se fosse uma filha de Khalifa e Bi Asha.

Chama atenção a importância da oralidade na obra de Gurnah. São muitas as remissões a conhecimentos de povos locais e passagens do Alcorão, atestando o seu vínculo cultural com a região. Entretanto, o autor não confere um tom de exotismo ou excentricidade a este fato, pontuando-o até mesmo como referência para que se compreenda o lugar ocupado pela cultura do colonizador ao longo do processo de dominação. Sobrevidas está longe de ser um livro contemplativo.

A despeito de seu conhecimento do idioma alemão, praticamente o único uso que Hamza faz disso é a transcrição de um poema de Schiller para a sua amada. Eis uma interessante metáfora quanto ao fato de nada de sua história ficar para ser escrito, permanecendo no silêncio, mesmo na relação com os mais próximos, restando unicamente a oralidade como fonte primordial para que se tenha acesso às experiências singulares dos africanos com o colonialismo dos séculos 19 e 20.

Os protagonismos
Sobrevidas não foca o colonizador. A atenção está nas relações entre mundos e culturas distribuídos nas inúmeras partes dos muitos territórios africanos. Por isso o silêncio de Hamza se faz importante. Seguindo na terceira pessoa, o autor produz um efeito de insinuação, fazendo-nos pensar o tempo inteiro sobre o que se passa na cabeça de seus personagens. Ao leitor, preso em uma instigante curiosidade, resta prosseguir com a leitura de maneira a ficar em evidência a complexidade de cada um deles. Uma complexidade, a partir de tal insinuação, que valoriza as experiências individuais e, por sua vez, suas histórias.

Isso fica claro nos momentos em que Khalifa, sujeito desconfiado e com certo amargor adquirido com o passar do tempo, interroga Hamza, contentando-se com o silêncio na resposta. Existe sempre a expectativa de algo a ser dito, justificado. Mas a importância quanto ao que deve ser dito, justificado, encontra-se toda sobre os personagens.

Tanta coisa tinha sido arrancada de sua vida que ele às vezes ficava paralisado por uma sensação de inutilidade diante de tudo o que pudesse desejar fazer. Era uma sensação que ele combatia diariamente e que a oficina e o trabalho com a madeira, além da benéfica companhia cotidiana do carpinteiro, de alguma maneira, ajudavam a dissipar.

Definitivamente, o colonialismo é importante para o entendimento da África de Sobrevidas. Através das experiências dos personagens fica nítido o impacto da violência da dominação europeia, operando em um plano mais profundo. A mudança da personalidade de Khalifa, com o passar dos anos, tornando-se uma pessoa mais amarga, deixa isso bastante evidente — serve até mesmo para demarcar a passagem do tempo.

Isso denota a vulnerabilidade dos personagens do livro, desprovidos de heroísmo e redenção. Não estão ali para ser reverenciados, contemplados. Isso é um claro artifício do autor para fazer com que diferentes vozes se manifestem revelando as suas experiências com a África colonial e o subjugo europeu em seu intenso processo exploratório. Não há uma visão única, mas, sim, uma polifonia, decorrente de vivências diferenciadas.

Assim sendo, Gurnah fica à vontade para desfazer qualquer tipo de expectativa e noção de final feliz como recompensa por tudo o que foi vivido. Isso porque, normalmente, o final feliz poderia ser admitido como o coroamento de uma trajetória, muitas vezes repleta de desafios. Trata-se de uma herança da literatura ocidental que, durante parte significativa dos séculos 19 e 20, admitia, em nome de uma noção muito precisa de missão a ser cumprida, que desafios deveriam ser enfrentados ante uma lógica previamente estabelecida de bem e correto a serem buscados.

Claro, o caminho traçado em Sobrevidas não é novidade na literatura contemporânea. Mas, definitivamente, sugere a ruptura com uma perspectiva de interpretação da trajetória ocidental de colonização que, em se tratando especificamente do continente africano, tem Coração das trevas como referência para boa parte do ocidente moderno. Gurnah revira Conrad do avesso, reposicionando o foco do tema tal qual ele deve ser tratado. O dualismo civilização e barbárie é vivido pelo próprio africano a descobrir o coração da África.

Eis o motivo pelo qual Gurnah fornece uma grande aproximação com os personagens. Através disso, projeta uma consciência quanto a sua escrita, quanto ao tema tratado, porque o narrador, em terceira pessoa, poderia, de antemão, ser detentor de um conhecimento sobre a situação vivida e que ali se encontra descrita. Entretanto, é ele quem exige do leitor o constante envolvimento com a trama apresentada.

Desde o primeiro livro publicado, em 1987 (já com quase 40 anos), até os dias atuais, Abdulrazak Gurnah escreveu dez romances. Produção significativa, demonstra o nosso desconhecimento quanto a obras desse quilate. O escritor tanzaniano é o primeiro de seu país a ser laureado com o Nobel de literatura. Ao todo, dos 119 ganhadores, o continente africano teve apenas cinco premiados: antes dele, Wole Soyinka, Naguib Mahfuz, Nadime Gordimer e J. M. Coetzee — os dois últimos, brancos.

Mais do que celebrar a entrada de Abdulrazak Gurnah para um seleto rol de maiores escritores da história, a premiação deve servir para que obras como as suas sejam popularizadas, de maneira que cheguem ao grande público e a países que não se encontram no centro das decisões sobre a produção e o consumo cultural no mundo. Se Gurnah, com sua narrativa potente, conseguiu inverter a lógica do entendimento quanto ao processo de compreensão do colonialismo na África, talvez esteja aberto agora o precedente para que se inverta igualmente o eixo dessa produção cultural, desmanchando o seu centro e espalhando focos para diversos territórios do mundo.

Sobrevidas
Abdulrazak Gurnah
Trad.: Caetano W. Galindo
Companhia das Letras
333 págs.
Abdulrazak Gurnah
Nascido em 1948, em Zanzibar, na Tanzânia. Em 1994 foi finalista do Booker Prize, com Paradise. Foi professor de literatura na Universidade de Kent e recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2021.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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