No começo do ano, a Melhoramentos publicou A filha do doutor Moreau e apresentou ao público brasileiro a obra da mexicana Silvia Moreno-Garcia, que esteve em quase uma dezena de lista de melhores leituras de 2022 de periódicos como The New York Times Book Review e a Time.
Inspirado no romance de H. G. Wells, A ilha do doutor Moreau, Moreno-Garcia transporta os experimentos do doutor para a península de Iucatã, no México. Aqui, dr. Moreau é um pesquisador francês que parte para uma região isolada com o objetivo de continuar seus experimentos sob a tutela de um rico financiador da região, Hernando Lizalde, e longe dos escrutínios dos pares europeus.
Moreau convence seus apoiadores a transportar o laboratório para Yaxaktun, uma propriedade dos Lizalde, sob a justificativa de criar trabalhadores menos custosos e violentos. O que o pesquisador europeu faz é manipular geneticamente os animais selvagens da região e transformá-los naquilo que eles chamam de híbridos — seres selvagens com traços humanos.
Vemos essa história pelos olhos de Montgomery, um trabalhador alcóolico e endividado, contratado pelos Lizalde para ser o novo mayordomo de Yaxaktun e de Carlota, filha de Moreau e portadora de uma doença sanguínea raríssima, curada, segundo o doutor, graças à pesquisa com os híbridos.
O equilíbrio de Yaxaktun é bastante frágil. A existência e manutenção da nova forma de vida não é bem recebida. Todos os seres têm uma qualidade de vida baixa, sofrem dores intensas, possuem fragilidades ósseas, precisam tomar injeções frequentes e possuem uma expectativa de vida relativamente baixa. Soma-se a isso o fato de que Moreau os mantém em um regime rígido, educando-os e controlando-os de forma intransigente.
Essa rotina é perturbada com a chegada de Eduardo Lizalde, filho de Hernando, e seu consequente envolvimento com Carlota, um relacionamento permeado pelas questões financeiras, políticas e familiares da região.
Diálogo certeiro
O diálogo proposto por Silvia Moreno-Garcia com a obra de H. G. Wells é certeiro. As ações do império britânico foram aprofundadas em diversas obras do escritor. Em A máquina do tempo, um de seus mais conhecidos romances, o conflito entre seres da superfície e criaturas do subsolo evoca uma questão de política interna e de conflitos entre classes sociais.
Já em A ilha do dr. Moreau, Wells aprofunda questões de política externa e traz visões sobre ações colonialistas da nação inglesa, em uma trama que mescla a ficção científica mais clássica do autor com pitadas de romances de aventura em lugares exóticos. Ao mostrar a história de um náufrago descobrindo os experimentos de Moreau e a natureza dos híbridos, o escritor britânico evidencia o choque entre os ditos “civilizados” e os “primitivos”.
A violência do encontro colonizador, sob a defesa do progresso, não instaura a “civilização”, mas brutaliza todos os envolvidos. Para transformar “animais em homens”, o Moreau de Wells tem um método científico articulado em duas frentes: externamente, mutila o corpo do animal em sessões doloridas de vivissecção para que ele atinja uma forma antropomórfica; internamente, transforma a mentalidade dos seres por meio da hipnose e de rituais religiosos, em que Moreau é posto em paralelo ao grande Criador.
Moreno-Garcia mantém alguns dos elementos. Em seu livro, Moreau também enxerga seu trabalho como algo divino. Afirma que todos os seres têm uma essência dentro de si e que o rumo natural da vida é buscar esse ponto ideal, o que ele faz é o trabalho de Deus e acelera esse caminho.
Por outro lado, Silvia faz um jogo inverso. Não há o estabelecimento de uma hierarquia em que os “civilizados” se rebaixam ao patamar dos “selvagens”, mas uma complexificação dos atores que fazem parte do contexto histórico usado como base pela escritora — ambos com potencialidades violentas, mas com diferentes perspectivas daquilo que é correto.
Rebelião
No posfácio em que discorre sobre a história do México, Silvia Moreno-Garcia explica que uma guerra foi deflagrada nos territórios de Iucatã, onde o livro se passa, em 1847, porque “os maias, povos originários da península, se rebelaram contra os mexicanos, os descendentes de europeus e a população miscigenada”.
Moreno-Garcia escreve que “os motivos do conflito foram complexos e ligados a hostilidades de longa data. Os donos das terras expandiram suas haciendas para criar gado e cultivar açúcar. O povo maia era sua principal mão de obra, e os donos das terras tinham sistemas violentos de dívidas e castigos para controlá-los. Outros aspectos de tensão eram os impostos, assim como a violência e a discriminação contra os maias”.
Além dessas duas faces, havia ainda trabalhadores negros, asiáticos e europeus que chegavam à região e adotavam uma posição intermediária no conflito. Soma-se a isso uma interferência britânica: primeiro, apoiando os maias rebeldes para diminuir a influência do México e conseguir explorar os recursos naturais da região; depois, apoiando e reconhecendo os direitos e poderes dos mexicanos na região.
Todos esses atores tomam parte na construção de Silvia Moreno-Garcia. A família Lizalde está em busca de mão de obra barata e que trabalhe devota ao sistema exploratório. Laughton Montgomery, mayordomo de Yaxaktun, trabalha sob um pesado regime de dívidas contraídas junto a Hernando Lizalde, herdadas de seu tempo na Europa, e raramente recebe um ordenado pelo seu trabalho.
Moreau também é uma face do poder civilizatório atuando na ilha. Como visto acima, educa seus híbridos de acordo com preceitos cristãos e usa a ciência moderna como caminho para saciar as curiosidades. Moreau não é guiado por impulsos altruístas, suas ações são guiadas por uma curiosidade mórbida que desconsidera o valor da vida de seus híbridos e defende que suas descobertas são mais importantes que qualquer vida considerada inferior.
Além disso, Moreau também exerce um poder de contenção e silenciamento dos colonizados. Um dos exemplos é a protagonista do livro, Carlota. Em sua jornada de compreensão dos defeitos do pai, precisa confrontar sua educação voltada para a docilidade e passividade, incutidas desde a juventude. Ao desejar proteger seus companheiros, precisa aprender a identificar que sua raiva é justificada e sua força, potente. Por outro lado, outros híbridos são mais acostumados a essa força e facilmente se tornam simpáticos aos revolucionários nativos que atacam as haciendas da região, liderados por Juan Cumux.
Ao desenvolver um percurso de autodescoberta de Carlota, Moreno-Garcia apresenta uma face complexa da compreensão da autodefesa enquanto forma de resistência da violência cometida pelos colonizadores. Quando quebram as amarras da formação que os ensina a não reagir, os colonizados podem tomar parte das rédeas do próprio destino.