Eunice Arruda publicou seus versos desde 1960 (com É tempo de noite, pela editora Massao Ohno) até 2015 (com Tempo comum, editora Pantemporâneo, a mesma que em 2012 havia publicado a sua Poesia reunida), antes de encerrar o ciclo de sua vida em 2017 com uma carreira de 18 livros e dezenas de publicações em antologias, sites e reuniões de poemas.
Nascida em 1939, em Santa Rita do Passa Quatro, a poeta dedicou-se à vida literária, mas não apenas com os seus escritos. Coordenou projetos em poesia ligados à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, integrou a diretoria da União Brasileira de Escritores e do Clube de Poesia de São Paulo e a partir da década de 1980 ofereceu oficinas de poesia em importantes aparelhos culturais paulistas, como a Biblioteca Mário de Andrade.
Seu impacto na vida das formas, portanto, não pode ser medido apenas por seus versos. Porque as maneiras pelas quais germina a poesia ultrapassam aquilo que meramente se escreve. E, no entanto, é para os poemas de Eunice Arruda que olhamos agora, diante da publicação da sua obra completa, que recebeu o título de Visível ao destino.
Seus poemas, apesar da diversidade da vida política e cultural brasileira ao longo do tempo de vida da poeta, foram escritos como que sob uma mesma noite. Não que a poeta tenha se furtado ao sol. Pelo contrário, suas saídas à claridade acontecem com cada vez mais frequência conforme as décadas avançam — como no poema Assim, publicado em 2010 no livro Debaixo do sol:
Nada
devo pedir
Sei o que quero
não sei o que me
quer. Então
ergo o rosto ao sol
e sigo — visível — ao
destino
Não obstante, uma chave de leitura central de sua obra, de seu humor e de seus recursos encontra-se nos momentos em que a poeta retrata a si mesma num corpo a corpo com a palavra à noite. No entanto, é preciso qualificar essa noite.
Não comparece em seus poemas a promessa diabólica da madrugada dos grandes centros urbanos. Também não é exatamente a algazarra “natural” de uma noite do campo que se manifesta com maior força (ainda que haja, na poesia de Arruda, algum recurso aos bichos e às estações, principalmente em seus haicais — quando por vezes, aliás, uma poesia menos lírica se insinua).
A noite da poeta é a sua maior interlocutora. Isso significa também que o que a qualifica não é tanto um conjunto de elementos, mas a marca de uma solidão irreparável.
Olhe as pessoas
como são
suaves
Mas não se aproxime
têm garras
arranham o coração
Fique em seu quarto
em seu corpo
e
apenas
olhe as pessoas
A solidão de Arruda funda um projeto lírico e noturno. “É tempo de noite (…)/ Quem esqueceu de se/ lembrar de mim”. A poeta é irremediavelmente uma pessoa solitária que sente, sente muito (no duplo sentido que a expressão “sentir muito” tem para nós: lamento e intensidade) e escreve o que sente.
É como se a noite fosse o elemento que Eunice Arruda encontrou para resistir ao antilirismo da poética contemporânea.
Resistência da noite
Já no século 19 o poeta francês Charles Baudelaire havia posto em crise o gênero lírico, ao corromper as imagens tradicionais do amor e dos sentimentos elevados (se entregando às sensações e aos amores transitórios, como no soneto A uma passante, idolatrando o Mal, em seus poemas de Revolta, dedicados a injuriar Deus e glorificar Satã, ou cantando a decomposição da beleza, como em Uma carniça).
O ataque de Baudelaire chegou à forma da sátira com que ataca a lírica tradicional, transformando-a objeto de galhofa no poema em prosa A perda da auréola. Ali, um poeta se anima com o fato de que a sua auréola, símbolo da comunhão do lírico com os sentimentos mais puros e elevados, escorregara para a calçada, caindo na lama. Quando perguntado se não gostaria de recuperar a sua insígnia, o poeta responde com ironia (na tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira):
Ora essa, não! Me sinto bem aqui. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. E também, penso com alegria que algum poeta ruim há de juntá-la e vesti-la impudentemente. Fazer alguém feliz, que prazer! E sobretudo um feliz que vai me fazer rir!
Existiram ainda outras estratégias para implodir o sujeito lírico. Nem sempre através de sua corrupção, como em Baudelaire. Às vezes através de seu descentramento, como na alteridade fundamental de Rimbaud e no culto às coisas de Rilke. Outras por sua intensificação tensa e explosiva, como em Gertrude Stein, que fabricou incansavelmente imagens de si mesma até que o “si mesma” tivesse mais valor como função literária ambivalente do que como uma subjetividade que se impressiona e se expressa pela comunicação poética.
No Brasil, João Cabral de Melo Neto e Ana Cristina Cesar representam duas forças importantes contemporâneas às primeiras décadas de atuação de Eunice Arruda: o poeta pernambucano minava o lirismo através de uma estratégia de atenção à materialidade das coisas do mundo, enquanto a poeta carioca desestabilizava-o pela confusão entre as formas do ficcional e as do endereçamento “real”.
É como se Arruda resistisse a todas essas investidas anti(ou pós)líricas. A noite é a sua carapaça. Tão dura carapaça, que mesmo em suas imagens mais solares é uma noite que se anuncia. Como em No amanhecer, poema de seu segundo livro, Chão batido, que diz que “a grande/ noite ficou/ atrás” e se aproxima “o amanhecer”:
No entanto
meus olhos só
assistem
ao apagar das estrelas
São olhos treinados para a noite. É na noite que as coisas se tornam distintas para a poeta. Há, portanto, uma função positiva da noite. Ela não é apenas o anúncio de uma falta, de uma tristeza fundamental — ela é, mais precisamente, o meio ambiente propício à sua visão.
Nas suas palavras, “A noite nos dirá quem somos.” O verso pertence ao seu primeiro livro, Tempo de noite, que, lido em retrospectiva, soa como uma poética anunciada de toda a obra de Eunice Arruda. Mestre-noite, título do poema a que o verso acima pertence, alude a esse conteúdo de verdade que a noite encerra para seus escritos.
As coisas falam — este é um pressuposto (místico, vale dizer, e que remonta à visão de mundo dos primeiros românticos alemães) que explica a função da noite para Arruda. O poema Sugestão afirma ser “bom escrever/ num dia de/ chuva” para ouvir “o barulho/ da água e/ da voz/ dentro da gente// ditando”.
É porque é silenciosa que a noite permite que as coisas digam o que precisam dizer com mais nitidez. Podem, nesse dizer, mostrar toda a sua dessemelhança — é o que anuncia o poema Diferença:
As coisas para mim
são murmuradas
apenas
Enquanto a manhã
explode como grito
para os outros
eu colo o ouvido nas noites
para escutar a vida
É difícil especular a que poéticas a de Eunice Arruda é familiar. Crescida entre a geração de 1960 de São Paulo, não seria justo enquadrar a sua poesia em nenhum tipo de impulso surrealista. Sua noite não tem fantasmas, não é recheada de delícias, terrores nem delírios. É uma noite mais sóbria.
Pouco afeita às efervescências de época, em vão procuraremos ressonâncias dos formalismos de época (nenhum artifício concretista) ou de sua contraparte de poesia de experiência (nenhum arroubo marginal). Tampouco encontraremos poesia engajada ou indignada com as condições sociais de seu tempo.
É como se a poeta resistisse também às convulsões históricas do Brasil e da literatura brasileira.
São muitas as noites na noite da poesia brasileira. Talvez seja melhor ler Eunice Arruda entre essas noites. Que diferenças há entre os versos do corpo lamentoso da poeta e do corpo crispado na noite veloz de Ferreira Gullar? Ou entre a sua insônia e as longas noites em vigília que amparam a noite de Álvares de Azevedo? Ou ainda, entre a sua sobriedade noturna e o noctambulismo fantasmático de Hilda Hilst?
A geração de Eunice Arruda é notívaga — compará-la aos padrões das épocas que a poeta atravessou para lhe conceder um lugar positivo ou negativo entre os seus pares é recorrer a uma balança imprecisa. O leitor ganha mais com uma pesagem trans-histórica.