A literatura de Verena Cavalcante se caracteriza por vincular duas temáticas que, normalmente, parecem incompatíveis: a infância e o macabro. Seus três volumes de contos publicados são povoados por predadores sexuais, pervertidos, assassinos, dementes, crianças que passam por agressões e tragédias, e crianças que praticam agressões e causam tragédias. Como nascem os fantasmas, estreia da autora na narrativa longa, é uma expansão desse universo, com um acento maior no componente sobrenatural. O sequestro da pureza ocorre num ambiente regido pelo insólito, transcendendo a maldade para uma dimensão extracorpórea, onde a morte deixa de ser a violência sumária.
A personagem-narradora é Beatriz, uma menina de 11 anos que vive com a avó, Dona Divina, famosa por seu dom mediúnico na Comunidade do Divino Espírito da Flor Vermelha, no interior de São Paulo. A porta da casa era parada por aflitos atrás de curas, esconjuros e consultas espirituais. Suas atividades, porém, foram abaladas com a perda da filha Ângela, no parto da neta. Desde então, Divina afirma que Beatriz é a reencarnação da mãe, o que faz com que a menina use as roupas de Ângela e imite muitos de seus hábitos. O tempo são os anos 90, ocaso da ditadura militar, período relacionado intimamente com o passado e a condição do terceiro residente da casa.
Entrevado na cama, está o avô da narradora, seu Cristovão, um suposto agente da repressão que ficou paralítico após ser baleado numa ação contra subversivos. O personagem é uma espécie de morto-vivo, que recendia “um cheiro de açougue abandonado que afastava as visitas”, cujos cuidados recaem sobre a neta. Dona Divina atribui o estado do marido a uma praga, após encontrar uma foto dele na boca de um sapo horas antes do disparo. A vivência diária com o anormal repercute nos afazeres da rotina, gerando uma experiência de (de)formação que reflete na maneira como a menina lida com a escola e com os colegas. Trata-se também de uma época na qual os adultos tratavam as crianças como adultos pequenos, sem idealização. Isso legitima as incorreções que governam a relação entre Divina e Beatriz, o desconcerto de algumas falas.
Então, duas noites antes de um apagão (evento marcante para quem viveu os anos 90), a menina Mayara desaparece. Divina, de pronto, decreta: “essa aí já foi, viu? Apagou feito vaga-lume amanhecido”. Beatriz, contudo, insiste que a avó use de seu dom para descobrir o paradeiro da criança, no que a idosa protesta, sem saber que já era destino de uma manifestação atormentada. Horas após o blecaute, a médium tem o corpo controlado por um fantasma, numa cena de possessão que abriria um sorriso largo em Frank De Felitta. O episódio sinistro subverte o entendimento de Beatriz sobre os perigos em estabelecer um canal de comunicação com os espíritos, enfeitiçando-se pela própria imaginação em atos inconsequentes que irão desenterrar segredos e ter um impacto devastador em todos que orbitam esse núcleo familiar.
Experiência participativa
Verena traz, para a estruturação do romance, um procedimento característico de seus volumes de contos: submeter a leitura a uma experiência participativa através do relato de seus narradores mirins, transmitindo uma ingenuidade em suas falas que os mantém alheios ao contexto sórdido em que estão inseridos ou ao qual serão lançados. Porém o leitor sabe, e esse efeito, que escala em tensão, deixa-o apreensivo e desarmado diante de tamanha crueldade, da virulência do não publicado. Quando se revela o esconderijo do assassino de Mayara, Beatriz, acompanhada dos colegas Lipe e Cadu, passa a frequentar o local abandonado. Circulam por terrenos baldios, matagais, cemitérios. Tudo que envolve a menina morta se torna uma bússola para suas brincadeiras, e se o conto O corpo, de Stephen King, ou alguma aventura da Coleção Vaga-Lume vier à mente, não é mera coincidência. A autora demarca toda a trama com referências explícitas e veladas dos anos 80/90, tanto importadas da realidade quanto da ficção. De Audrey Rose ao Caso Araceli, de Chiquititas ao Bandido da Luz Vermelha, da Sessão da Tarde ao Cine Trash, apresentado por Zé do Caixão. Esse método de prolongar o texto por meio de alusões e dos elementos que evocam traz uma porosidade para o enredo, articulando subgêneros e fundindo estilos que, naturalmente, mostram-se distintos.
Em muitas passagens, o absurdo potencializa a estranheza ao ponto de flertar com o cômico, um tipo de humor indevido, embora de riso inevitável. Elucubrando sobre a finitude, Beatriz conclui que morrer na infância não é vantajoso, pois “as crianças têm que trabalhar: viram anjo, santo, ou fazem milagres — não podem descansar. Talvez por isso morram tantas mundo afora; os adultos precisam ter seus desejos realizados”. Durante a apresentação de um trabalho da escola sobre profissões, a menina conta que seu avô era da polícia, no que a professora comenta: “Bom, se seu avô foi polícia, então eu não gosto dele. E nem ele de mim. Agora pode sentar”, remontando um período de opressão e perseguição institucionalizada, que emprega um traço político nos meandros do livro.
As marcas do luto se configuram no fardo de ter a mãe à sua imagem (ou dentro de si), buscando meios bizarros de se provar para sua avó através de rituais que confirmem sua possível mediunidade. Lipe passa a ser o braço-direito, ou a cobaia, da menina, estabelecendo, no terço final da trama, uma dinâmica de construção de dimensão paralela, que entrelaça conceitos de fantasia, mitos e forças demoníacas, livremente inspirados em filmes B oitentistas, como A casa do espanto e O portal, ou, para a geração atual, o mundo invertido do seriado Stranger things. A inventividade da autora se sobressai, criando uma atmosfera de intensidade na imposição de uma entidade maligna, na qual personagens são ressignificados e a narrativa ganha um visgo infeccioso, numa representação de inferno que mistura Clive Barker com os textos satânicos de Cruz e Souza.
Está na moda um movimento denominado pós-horror, em que autoras latino-americanas se utilizam de histórias insólitas, violentas ou grotescas para transmitir comentários sociais numa forma criativa de serem panfletárias e se conectarem com traumas nacionais e/ou com os leitores. Verena Cavalcante foi integrada a esse grupo como uma representante do Brasil, considerada uma expoente do “gótico tropical”. De fato, se olhar a fundo as camadas do texto, é possível pescar, aqui e acolá, uma mensagem subliminar, um recado implícito. Como nascem os fantasmas, no entanto, mostra-se mais preocupado com o mundo que criou, com o desenvolvimento do enredo, em ser, acima de tudo, um romance de entretenimento. Sem se explicar, sem induzir, apenas oferecer uma leitura cativante. E isso a autora faz fantasticamente bem.