Coisa de negros pode ser encarado como o livro dos equívocos. E não são poucos os motivos. Se na terra do autor foi de outro modo, por aqui a tradução tratou de fazer a sua parte de forma comprometedora.
O pano de fundo é a cumbia , gênero musical originário da Colômbia, bastante difundido e apreciado em outros países da América Latina. Trata-se, grosso modo, do resultado das influências musicais africanas combinadas com a música dos indígenas colombianos. A partir daí se divide em subgêneros e em cada país apresenta suas peculiaridades. Temos desde a cumbia propriamente dita, originária da África, até a tecnocumbia, sem esquecer a cumbia rap. Aqui mais rap do que cumbia. É assim mesmo: tudo surge para ser estragado mais adiante.
Coisa de negros pretende apresentar esse gênero musical em suas linhas e entrelinhas à medida que constrói o cenário e as motivações para o desenrolar das duas frágeis e confusas histórias que oferece ao leitor.
As histórias se passam na Argentina e, por mais que a cumbia de lá seja diferente das outras cumbias, está bem longe da forma apresentada em Coisa de negros.
As questões relevantes que uma obra desse porte pode abordar são inúmeras, das implicações sociais às antropológicas, esta ainda a permitir subdivisões. Pois bem, isso tudo é desperdiçado em Coisa de negros; e aqui a responsabilidade não pesa apenas nos ombros do tradutor: é banalização, vulgaridade mesmo o que predomina. Ao término da leitura, resta a sensação do que poderia ter sido, e essa é a pior conclusão a que se pode chegar.
Pois bem, o livro traz duas histórias: a primeira, Noites vazias, é o verdadeiro samba do crioulo doido, e você, inocente leitor, se sentirá num autêntico baile funk carioca. Então você, ainda acreditando no que lhe foi prometido, perguntará: “mas a história não se passa na Argentina?” É o que nos informam, mas a tradução chama as freqüentadoras do baile de tchutchucas e cachorras. Vai dizer que você imagina a Argentina lendo isso? Imagina o Jacaré, Inhaúma, Morro da Formiga, Estácio e outros que tais.
A tradução consegue eliminar qualquer traço da argentinidad que podia ser o aspecto diferenciador, lamentável, revoltante! Mais sofrível que a desastrada tradução só mesmo o descuido da revisão. O que dizer disso, no início da página 104, onde até minha tia Laureci, 98 anos, caolha e 13 graus de miopia, conseguiu ler e se espantar?: “Estéril, Arielina começou a berrar”. Estéril???????????
A trama se resume a retratar a rotina de Eugênio, um homem da periferia, um descamisado, cujo passatempo é freqüentar os bailes, beber e pegar as “tchutchucas”, tudo o mais é secundário. Não há o mínimo lampejo de aprofundamento de uma discussão sobre a condição daqueles personagens ou da miséria que embala a condição humana. Impossível disfarçar o olhar machista que perpassa as duas histórias de Washington Cucurto.
Mas se a primeira história se caracteriza pelo que foi dito acima, prepare-se: a segunda é ainda bem pior, aí o samba do crioulo doido atravessa.
Em Coisa de negros, o protagonista atende pelo nome de Washington Cucurto, músico cumbeiro dominicano contratado a se apresentar num show em comemoração ao aniversário de Buenos Aires. O leitor fica na expectativa de algo um pouco mais profundo que a história anterior, ou pelo menos algo com um resquício de seriedade, pobre leitor! A banda continua a tocar seu mesmo acorde cansado. E tome sexo, bebidas, mulheres sempre a serviço dos homens, no mais das vezes usadas sexualmente. E assim caminha Coisa de negros. O submundo é o cenário com direito a corrupção e a descoberta de uma filha de Eva Perón, alvo do amor e tudo o mais de Washington Cucurto. Não fosse a presença em doses absurdas de sexo, álcool e outras drogas, Coisa de negros bem que podia se destinar à estante dos infanto-juvenis.
Pensou que tinha acabado, apressado leitor! Ainda tem um cortiço que sobe aos céus. Um deus ex-machina a se confundir com realismo mágico, mas na verdade mero desespero narrativo.
Coisa de negros — pelo menos a tradução brasileira consegue apresentar a cumbia como uma bobagem musical feito o nosso funk — reforça o estereótipo da mulher objeto, apresenta os negros, seja pela cor da pele, seja pela degradante condição social, da forma mais depreciativa possível, além de deixar a impressão de que a cumbia é a trilha sonora dos perdedores. Gol contra.