🔓 Clube do livro ou de leitura? Admissão sempre com festa

Seis anos de um grupo que celebra a vida por meio do contato com uns livrões espetaculares, de gente como Simone de Beauvoir, Dostoiévski e Proust
Ilustração: Thiago Thomé Marques
10/10/2021

Para todos e todas que nesses seis anos leram no nosso clube do livro. E para Denise Mazocco, que tem animado/agitado o clube comigo todo esse tempo

Quando eu era criança e alguém me dizia que, para ser sócio de um clube, era preciso pagar uma joia, eu ficava imaginando que a pessoa pagava um par de brincos muito valiosos, uma colar de princesa ou uma coroa de rainha. Às vezes imaginava que a pessoa dava uma joia sua, então era necessário ter uma joia (!) para oferecer ao clube, e aí o clube virava uma espécie de caverna do Ali Babá. Nunca fui sócia de clube algum. Cresci e comprei um dicionário: “Quantia ou taxa, paga no ato de admissão ao quadro de sócios de associações, clubes, etc”. Dinheiro. O fato é que, brincadeiras (sérias) à parte, pertenço a um clube que comemorou seis anos de vida no último dia 18 de setembro. Se tive de pagar a joia? O título entregou de bandeja a resposta, não sei fazer surpresa. Sim, leio os finais.

Em 2015, ministrei uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR consagrada ao livro Memória, história e esquecimento, do filósofo francês Paul Ricoeur. Propus aos alunos como método de trabalho que, a cada semana, combinássemos um número de páginas para ler e que nesse grupo de páginas separássemos dois ou três parágrafos para comentar mais detidamente em sala de aula. Sem saber, dera os passos para o método que tem guiado um clube que ainda não tinha nascido.

No final da disciplina, tendo avaliado que a estratégia tinha funcionado, confessei a alguns alunos que sentia vontade de me reunir com amigos e conhecidos para ler e discutir certas narrativas — longas narrativas em especial — que eu pessoalmente tinha deixado pelo caminho. Falei que seria interessante lê-las como havíamos lido Memória, história e esquecimento, de Paul Ricoeur. Entreguei: “Em busca do tempo perdido, do Marcel Proust, por exemplo!”. Diante da confissão, alguns alunos me disseram: “Por que não?”.

Visita aos clássicos
Dois meses depois, fiz um convite aos alunos da disciplina, a amigas, amigos, publiquei em redes sociais e consegui uma sala na universidade para a primeira reunião. Foi interessante ouvir de algumas pessoas: “Gostaria, mas não tenho tempo”. Já escrevi sobre gestão do tempo em livros para professores e já falei sobre essa desculpa esfarrapada[1]… O curioso mesmo é que, na declaração das pessoas “sem tempo”, se escamoteia (mal) a sugestão de que eu o tenho de sobra para distrações tais. Engoli.

Um grupo grande que terminou pequenino levou mais de três anos para ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido… Resistimos, celebramos! Uma edição nova de A montanha mágica, de Thomas Mann, despertou a voracidade em quem se manteve firme para recuperar o tempo perdido da vida. Outras pessoas se juntaram à escalada. Teve celebração ao final? Claro.

Depois do Crime e castigo, de Dostoiévski, passamos a escolher os livros mediante votação entre os que encerraram um desafio de leitura. Fizemos uma lista com vários títulos e, na sequência, criamos um formulário eletrônico para a votação. Há dois critérios para a escolha das opções que vão para a lista: 1. grandes narrativas (grandes em tamanho mesmo!) e 2. clássicos (no sentido como entendeu Italo Calvino). Agora, estamos lendo Os mandarins, de Simone de Beauvoir.

Frutos
Quer seja evidência de sincronicidade de Jung, quer apenas de uma atenção mais desperta, comecei a ver clubes pipocarem. Clubes temáticos, para a leitura de um gênero específico; clubes para ler mulheres; clubes consagrados a pequenas narrativas, a poemas — seus membros leem o texto na hora do encontro e comentam na hora também, uma roda de leitura! Alguns chamam a experiência de clube de leitura, com destaque para a experiência em si. O meu, ou melhor, o clube que animo é do livro mesmo, porque nos acostumamos a achar que a experiência que nos une são livros específicos, definidos entre os critérios do parágrafo anterior. Mas o nome pouco importa, afinal já sabemos: “O que chamamos de rosa, com outro nome, exalaria o mesmo perfume…”[2].

Hobby de rico?
Ao longo de seis anos, lemos em casa e discutimos páginas em cafés, salas de aula reservadas para esse fim, em minha casa, em parque… Usei o verbo animar para iluminar a minha relação com o clube, porque, embora seja professora, não sou a professora do clube. O nosso clube tem outros professores (e não professores também!) que não atuam como tal quando estamos juntos. Ora, nenhum diploma é conferido ao final de um desafio de leitura. Ninguém aprende nada ou… Na verdade, os livros mais nos revelam, eles falam conosco em franca intimidade e, por isso, tomamos liberdades com os personagens, com os autores, com situações (conferir os cartazes). Ameaçamos. Não perdoamos. Envergamos luto. O luto pela morte da avó do narrador de Em busca do tempo perdido

Um hobby de rico? Bem, só se você acredita que os livros são bens exclusivos de gente rica ou que só aqueles que têm estantes bem fornidas leem livros. Há quem tenha essas convicções, na corte do vencedor do pleito presidencial. Mais de cinquenta e sete milhões de brasileiros e brasileiras permitiram que um homem vil tivesse poder sobre recursos naturais, engendrasse políticas públicas, tardasse na compra de vacinas e ameaçasse taxar livros… Ele lê? Ele não? Suspeitas. Mas quem é leitor sabe que essa gente muito rica, cuja fonte de riqueza nos faz desconfiar, metida a ser “popular” pela ausência de toalha sobre a mesa do café (como se…) sobre a qual jazem seus hábitos alimentares não saudáveis (como se…), despreza os livros que fazem a gente se encontrar para falar da vida, para lembrar do passado, para se deleitar, rir, se apaixonar, chorar e pensar. Para algumas dessas pessoas, livros são apenas a capa dura em volume em branco para fazer bonito (?) em live/pronunciamento…

Adaptação
Quando a crise sanitária exigiu de nós o distanciamento social, o nosso clube se adaptou, não sem seus sentimentos. Afinal, estivemos à mesma mesa por tanto tempo, acostumados e acostumadas aos abraços da chegada, àquele papo gostoso do como vai e às despedidas longas. O certo é que as salas virtuais que nos acomodaram e nos acomodam permitiram também que pessoas amigas que moram longe de Curitiba vissem uma oportunidade para finalmente se integrar! Hoje, o clube reúne pessoas que moram em três estados diferentes. Nessas condições, já estamos na terceira obra e não excluímos as comemorações.

Descobrimos que podemos insistir na celebração, mesmo que cada um esteja em sua própria casa. Quem, embebido de consciência e respeito à vida, não celebrou/celebra também festas — antes, cheias de parentes — com auxílio de celulares e computadores? Deixamos de abraçar mães, pais e avós no Natal, mas insistimos em mostrar os netos, cantar e fazer visita guiada pela casa enfeitada, porque queremos voltar a abraçar e a festejar como se deve. A festa, dela não foi/não é possível abrir mão. Acho que nossa insistência no literário e na festa, a despeito do totalitarismo do tempo do trabalho, é uma espécie de salvação. Dá até vontade de fazer uma vídeo chamada para Byung-Chul Han e avisar que temos aqui um pequeno grupo de pessoas que insiste em realizar “um instante de elevada intensidade vital”[3] a cada vez que um desafio literário é vencido. Guardei uma pequena garrafa de champanhe na geladeira para o dia 18. Brindei.

Encontros singulares
O clube do livro de que faço parte reuniu/reúne pessoas de áreas muito diferentes, gerações diferentes, repertório e experiência de vida diversas… Toda essa diversidade implicou/implica encontros singulares com os textos. Embora tenhamos profissionais da área de Letras entre nós e uma vez até a sorte de alguém que defendeu uma tese sobre o livro que estávamos lendo (!), as leituras acadêmicas conversam com as leituras mais pessoais, fruto daquela singularidade toda do encontro de cada um. Mas não é só isso. Opiniões sem pretensões de figurar no currículo lattes convivem com leituras mais acadêmicas sem hierarquia. Aprendemos todos. O especialista, com o que o texto revela em uma intimidade de que o rigor da pesquisa às vezes o obriga a guardar distância; o não especialista, com o quanto a pesquisa beneficia a nossa leitura dos textos e do mundo. Os sentimentos, as experiências de vida, as opiniões, as memórias e o conhecimento que a discussão do livro traz à tona dão sentido à experiência de ler nos clubes do livro e/ou de leitura.

Não conheço clubes do livro que reúnem multidões. Acho mesmo que a necessidade de garantir que todos compartilhem suas impressões — no sentido mesmo de marca —, de forma equilibrada e em pé de igualdade, inviabiliza um pouco a possibilidade de grupos muito grandes. Todos precisam de espaço e até de tempo…, tempo para ouvir e reagir ao que o outro compartilha. No nosso clube, geralmente desfraldo a vela com minhas impressões, e o barco segue com a alternância de quem assume o leme. Gosto de metáforas náuticas porque há uma fortuna literária digna dos mais vorazes! Ai, as epopeias…

Promoção da leitura
Mesmo pequeno, nosso clube está participando de uma pesquisa sobre inciativas leitoras no Brasil. Quem trabalha de verdade com a leitura insiste no quanto ainda precisamos fazer para transformar esse país em um país de gente que lê. É preciso continuar a se sentir incomodado com as dificuldades, com os entraves, fracassos; é preciso continuar a exigir políticas de promoção da leitura. Mas essa pesquisa em especial desejou conhecer o que tem sido feito! Muita inciativa corajosa está escondida e deve ser revelada. Por um lado, seguimos com a denúncia; por outro, urge iluminar o esforço bem-sucedido.

A gente faz parte (pequena) desse esforço que tem trazido e reunido gente para ler uns livrões espetaculares. À mesa, quer dos cafés do passado recente, até as salas virtuais, o tempo compartilhado para conversar sobre livros é todo ele uma celebração da vida: das vidas que pulsam em textos, das vidas de cada um de nós, do que os textos acordaram em nós. A leitura faz dessas…

Dia 18 de setembro um pequeno grupo de pessoas, apartadas por uns bons quilômetros e que reúnem fácil mais de um século em idade — talvez quase dois —, celebraram, entretanto, seis anos de vida! Celebraram, já programando a próxima festa.

NOTAS

[1] https://www.youtube.com/watch?v=LufiFKdlYnk, acesso em 17 de setembro de 2021.
[2] SHAKESPEARE, Willian. Romeu e Julieta; Macbeth; Hamlet, príncipe da Dinamarca; Otelo, o mouro de Veneza. São Paulo: Abril Cultural, 1981.. 42.
[3] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 114.

 

Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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