A estrada é uma road story pós-apocalíptica. Cormac McCarthy afirmou que A estrada não é um livro deprimente. Que é uma história sobre o amor de pai e filho e como esse amor sobrevive mesmo em circunstâncias horríveis. Ele dedica o livro ao filho, John Francis McCarthy. E completa que se você realmente ama o seu filho, não importa o quanto o mundo fique ruim, você ainda faz qualquer coisa por ele. McCarthy ainda afirma que seu filho é um pouco coautor do livro e que sem ele o livro não teria sido escrito.
Na série Pixar in a box, no episódio Introduction to Storytelling, o diretor Pete Docter repete o conselho que escutamos o tempo todo: escreva o que você conhece. O que esse conselho significa, na verdade, é sobre conexão emocional. Monstros S.A., por exemplo, é um filme sobre paternidade, sobre se tornar pai. A Pixar vai fazer filmes fofinhos e engraçados. Cormac McCarthy vai escrever livros violentos, difíceis e nem um pouco bonitinhos. Ainda assim, a emoção está lá. Mesmo estando em um ambiente cruel, A estrada não é diferente.
Não é fácil escrever sobre uma adaptação em quadrinhos de um livro best-seller que tem, inclusive, um filme de enorme sucesso. Então, estou partindo de duas possibilidades. Primeiro, que pode ser que você ou já tenha lido/visto A estrada e, portanto, falar sobre a história seria redundante. Ou, segundo, que você ainda não leu/viu e eu não quero dar spoiler.
Vou, portanto, centralizar meus esforços na narrativa dos quadrinhos em si.
A adaptação para os quadrinhos é do Manu Larcenet, também responsável por O combate cotidiano, O relatório de Brodeck, Os cosmonautas do futuro e mais um monte de títulos importantes dos quadrinhos.
Para falar de um gigante, vou subir nos ombros de outros dois gigantes. Will Eisner e Scott McCloud.
Do Will Eisner, recomendo tanto o Quadrinhos e arte sequencial, quanto o Narrativas gráficas.
Do Scott McCloud, recomendo o Desvendando os quadrinhos. Confesso que o segundo dele, o Reinventando os quadrinhos, eu não gosto tanto.
O Eisner comenta que, em termos de enquadramento, a forma mais realista de contar uma história é posicionar o quadro sempre à altura dos olhos do leitor. Então, nada de grandes plongées ou contra-plongées. Plongée é “mergulho” em francês, é quando a câmera mergulha na cena, mostrando um ponto de vista de cima para baixo. Contra-plongée é o contrário, a cena vista de baixo.
Voltando, Eisner fala sobre esse realismo do enquadramento e aqui o realismo precisa ser compreendido de duas formas: a verossimilhança, ou seja, o mais próximo do “real” e, também, o Realismo no sentido da História da Arte, aquilo que mostra as nossas dores, sem filtros. Especialmente o Realismo francês da segunda metade do século 19.
O Scott McCloud, por sua vez, fala da repetição e da passagem do tempo nos quadrinhos. Em A estrada são quadrinhos repetidos, lentos, marcando esse sofrimento que parece interminável, do cotidiano que não muda. A claustrofobia é causada, propositalmente, pelo tempo parado, o ar parado, tudo parado, nada muda.
Larcenet ainda vai beber na História da Arte novamente e colocar os personagens muitas vezes diminuídos frente ao cenário. É um recurso que o Romantismo usa, com a intenção de mostrar a nossa pequenez e a força da natureza. Ele vai até mesmo repetir várias vezes o posicionamento do personagem de costas para o espectador, como em o Andarilho acima do Mar de Nevoeiro (1818), do Caspar David Friedrich. Aqui, Larcenet usa para mostrar a nossa pequenez e a força da destruição. Dá no mesmo.
Leitura lenta
A Pipoca & Nanquim publicou um vídeo no Youtube falando sobre A estrada. Eles comentam sobre a questão da velocidade de leitura. Os editores têm razão: não é um livro para ser lido rapidamente. Não passe voando pelas cenas sem texto. Leia as imagens com calma, como se cada quadro fosse uma obra de arte, porque é.
Por falar em ler imagens, aproveito para recomendar o Lendo imagens, do Alberto Manguel.
O filme dura 111 minutos e, portanto, sabemos quanto leva para assisti-lo. Eu li o livro em uma sentada, em algumas horas. Mais de uma semana para o quadrinho. Lia, voltava, andava, parava.
A abertura do livro, antes mesmo da folha de rosto, já é um impacto. Não sabemos se as figuras humanas estão indo ou voltando. Se estão de frente ou de costas para nós. Não temos discernimento visual suficiente para compreender alguns dos detalhes da cena e é isso, justamente e paradoxalmente, que nos dá toda a informação de que precisamos.
Uma vez começada a história, vemos nuvens. Uma página inteira com nuvens, poluídas, carregadas, apocalípticas. Larcenet não deve nada aos gigantes artistas japoneses do período Edo, com suas paisagens em planos abertos. Além, claro, do fato de Larcenet trabalhar nesse livro com bico de pena e nanquim, velhos conhecidos da arte oriental como um todo.
Bem no começo, Larcenet começa a mudar a calha. Calha é o nome que damos ao espaço entre os quadrinhos ou requadros. É mais ou menos como a pausa na música: tem tempos diferentes, com propósitos diferentes. A calha muda a nossa percepção de passagem do tempo. Ao tirar a calha em uma série de imagens, o desenhista mostra tudo que acontece simultaneamente — sem pausa, portanto — ao seu redor. Ou seja, mais até do que as grandes cenas abertas, a sequência sem calha mostra o ambiente. O quadrinho é meticuloso. Cada detalhe conta, mesmo que você não o perceba imediatamente.
Sendo brasileira, é muito difícil não pensar em nossos moradores de rua quando vemos o pai empurrando todos os seus pertences em um carrinho, com o filho sentado em cima ou andando ao seu lado. Essa semelhança me persegue ainda.
O livro é primariamente em preto e branco, com algumas aguadas em tons específicos. A paleta reduzida também é uma lição do Eisner. Observe quadrinhos como A baleia branca e isso fica fácil de compreender. Larcenet também vai usar os tons azulados e esverdeados para falar de solidão e de frio. Ou amarelos para nos fazer sentir a melancolia dos personagens.
Sobre a teoria das cores, eu gosto particularmente do A psicologia das cores: Como as cores afetam a emoção e a razão, da Eva Heller, mas tem um monte de títulos bons por aí.
Larcenet nos brinda ainda com passagens de enquadramentos como força narrativa, como na página 37, onde pai e filho encontram um refrigerante e acontece o diálogo “Quero que beba tudo e se lembre bem do gosto. / É porque nunca mais vou poder beber outra, não é?” e temos um close do pai de cabeça baixa, indo para um plano aberto com tonalidade azulada. Não tem um ser no mundo que não compreenda a dor descrita nesse silêncio.
A estrada é um livro sobre um pai tentando proteger seu filho. E isso significa também emocionalmente. Não é apenas uma questão de sobrevivência do corpo. É também uma questão de sobrevivência do espírito. São muitas as cenas em que o pai encontra algo terrível e diz “não tem nada, vamos embora”. Sabemos, entretanto, que é impossível manter completamente a inocência. Impossível e perigoso.
Há uma cena conhecida dessa história, em que o filho pergunta ao pai se ainda são os caras bons. No quadrinho é na página 66. Temos, então, mais umas cem páginas depois desse diálogo. Esse tempo/espaço é importante e Larcenet sabe disso.
Quadrinho é uma arte que acontece em dois planos, no tempo e no espaço. A palavra escrita, literária, em prosa acontece no tempo. A arte visual, a pintura por exemplo, acontece no espaço. O quadrinho existe nos dois. Até o cálculo da velocidade de passagem das páginas faz parte da narrativa.
A narrativa gráfica A estrada é um desses livros para ter em casa e revisitar de vez em quando. Especialmente quando estivermos em um momento em que seja relevante lembrar porque seguimos pelas nossas estradas.