Clássico contemporâneo, “O centauro no jardim” completa 40 anos

Alegoria sobre a condição judaica, romance é o ponto alto da obra de Moacyr Scliar, que se notabilizou pela linguagem clara e grande imaginação
Moacyr Scliar, autor de “O centauro no jardim”
30/10/2020

(30/10/20)

“Agora é sem galope. Agora está tudo bem.” É pelo final da história que Moacyr Scliar resolveu começar aquela que é considerada sua obra-prima. Guedali, o personagem e narrador de O centauro no jardim, conta sua trajetória na festa de aniversário de seus 38 anos, em que “comemora” sua conversão ao mundo dos “normais”, após uma vida toda como um ser híbrido, metade homem, metade cavalo.

Publicado em 1980, O centauro no jardim chega aos 40 anos com vitalidade e frescor adolescente. Entre os leitores de Scliar, é unanimidade. No bojo da literatura brasileira produzida na segunda metade do século 20, ganha cada vez mais posições entre as principais obras do período.

Um período, lembre-se, em que o jogo “era de campeonato”. A geração de Scliar é a mesma de Sérgio Sant’Anna, Ivan Ângelo, Caio Fernando Abreu, Antônio Torres, Nélida Piñon, Sérgio Faraco, Luiz Vilela, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca (os dois últimos mais velhos, mas muito atuantes à época). A turma que consagrou o conto brasileiro e depois migrou pro romance (com exceção do Vampiro de Curitiba).

O argumento do livro, à primeira vista, pode parecer pouco crível para os mais céticos — um exagero mais afeito à fábula para crianças do que para um romance adulto. Mas não é.

No interior do Rio Grande do Sul, na pacata família Tartakovsky nasce um centauro. Seu nome é Guedali, quarto filho do casal Rosa e Leão, imigrantes judeus vindos da Rússia.

Guedali cresce solitário, excluído da sociedade, e o isolamento o leva a cultivar o hábito da leitura. Inteligente e culto, é ele quem conduz a narrativa num restaurante de São Paulo, entre garrafas de vinho e amigos.

O centauro rememora sua vida desde o nascimento em Quatro Irmãos, passando pela juventude em Porto Alegre, onde se casa com Tita — também centaura —, até chegar ao Marrocos, onde o casal vai tentar uma cirurgia que os transforme em pessoas normais. A história tem inúmeras reviravoltas e um final surpreendente.

Capa da primeira edição de “O centauro no jardim”

 

Prosa clara
A primeira coisa a se destacar, é a coragem e a autoconfiança de Scliar em sua escrita. É bem provável que 9 entre 10 escritores medianos guardassem o “segredo” de Guedali para o meio ou o final do romance. Por mais que a orelha do livro já desse um breve spoiler, por que entregar logo de cara ao leitor a surpresa do nascimento de um ser mitológico em uma família real do interior do Rio Grande do Sul? Porque o que interessa aqui, não é exatamente o porquê, mas como as coisas se dão.

É o talento narrativo de Scliar, aliado a uma ideia realmente singular, que faz de Centauro um grande livro. A prosa é de uma clareza rara. Ou, como pontua o escritor baiano Antônio Torres, “a fluência de linguagem, aliada a uma desconcertante irreverência” fazem de Centauro “um clássico que está no topo da produção de um dos mais prolíficos autores brasileiros de todos os tempos”.

A opinião de Torres se traduziu em números entre leitores de Scliar. Em 2017, para lembrar os 80 anos de nascimento do escritor (morto em 2011, aos 73 anos), o professor e crítico Luís Augusto Fischer fez uma enquete com 95 leitores e perguntou qual era o livro mais marcante do conterrâneo gaúcho. Deu Centauro na cabeça, bem à frente do segundo colocado, A guerra no Bom Fim, outro grande livro da primeira fase criativa de Scliar.

“Os pais dele vieram da Rússia e contavam muitas histórias. Esses causos que ouvia quando viveu no Bom Fim foram criando seu imaginário”, lembra Judith Scliar, que foi casada com o escritor por 45 anos.

“Ele anotava ideias em qualquer lugar. Mas depois de um tempo, percebeu que não tinha mais necessidade de anotar, porque as boas ideias perseguem o escritor.” Para ela, a força do romance está, também, na dualidade que a figura do centauro traz. “Assim como os judeus, o centauro é perseguido por ser diferente.”

O centauro no jardim foi escrito quando o realismo mágico já tinha tido seu boom (Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, é de 1967), mas ainda ecoava na literatura brasileira com José J. Veiga, Murilo Rubião e José Cândido de Carvalho. No entanto, lembra Fischer, Scliar já havia escrito “contos em que aparecia algo dessa magia”.

A influência do realismo mágico é bem evidente, mas à época pouco se falou nisso. O que não fez muita diferença: o livro foi sucesso desde seu lançamento. A primeira edição saiu pela Nova Fronteira e deste então o romance segue em catálogo, hoje na Companhia das Letras, editora que abriga a maior parte da produção romanesca do escritor.

“Ele de fato ali sintetizou muito da obra anterior e deu um salto inédito. Acho que é mesmo o mais relevante livro dele, embora eu goste muito daquele romance que envolve o Noel Nutels como personagem, A majestade do Xingu”, diz Fischer, que desde 1985 ensina Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O sucesso do livro se estendeu também a outras línguas. Foi publicado em inglês, espanhol, sueco, francês, hebraico e russo. Saiu ainda na Alemanha, onde foi adaptado para o teatro. Em 2002, o National Yiddish Book Center, incluiu-o na lista dos 100 livros de temática judaica mais importantes da modernidade, ao lado de obras de Franz Kafka, Isaac Bashevis Singer e Saul Bellow. “Dever ser sim o mais importante romance sobre os dilemas dos judeus emigrados no Brasil”, diz Fisher.

Grande produção
Moacyr Scliar, assim como Guedali, era descente de judeus vindos da Rússia. Assim como seu personagem, começou a ler muito cedo. Aos nove anos, sua mãe o pegou pelo braço e o levou à casa de Erico Verissimo. Queria ver se o menino tinha talento para a escrita. Para ajudar na avaliação, levou um conto do pequeno Moacyr para que o consagrado escritor avaliasse melhor. Erico leu e disse que era muito bom, que havia futuro para o guri.

“Chegando em casa, o Moacyr foi olhar seus escritos e percebeu que estavam faltando três páginas do conto. O Erico realmente era muito gentil”, lembra, entre risos, a esposa Judith. Mas a generosidade de Verissimo acabou sendo um presságio.

Scliar se formou em medicina em 1962, especializando-se como médico sanitarista. Mas sempre escreveu. Seu primeiro livro, que ele mais tarde renegou, era uma tentativa de unir literatura à experiência com a medicina. Chamava-se Histórias de um médico em formação. “O Moacyr entendia que aquele tinha sido um livro apressado, mal escrito”, diz a esposa.

O primeiro livro oficial foi O carnaval dos animais, de 1968, uma alegoria sobre a condição dos imigrantes. O primeiro (ou segundo) dos mais de 80 que publicou. Ele escreveu em quase todos os gêneros literários: romance, conto, ensaio, crônica e literatura infantojuvenil. Só não se arriscou na poesia. Também era presença constante em jornais como Zero Hora e Folha de S. Paulo.

Além de O centauro no jardim, outros de seus romances são celebrados pela maestria narrativa e inventividade criativa, como A majestade do Xingu, A mulher que escreveu a Bíblia e Os vendilhões do templo.

Sem esquecer de Max e os felinos, livro que esteve no centro de uma polêmica internacional. O romance conta a história do alemão Max, garoto que, em meio a uma viagem de barco, é obrigado, por conta de um naufrágio, a dividir o pequeno espaço da embarcação com um imenso jaguar, um felino que sempre lhe aterrorizou.

Se você está pensando que já um filme com enredo parecido, está correto. A vida de Pi, dirigido por Ang Lee e vencedor do Oscar, é uma adaptação do romance homônimo do canadense Yann Martel, que foi premiado em 2002 com o Booker Prize, prêmio literário mais prestigioso do Reino Unido.

A lebre do suposto plágio foi levantada por uma matéria do The Guardian. Apesar da evidente apropriação da ideia de Scliar, o caso foi resolvido nos bastidores e a paz selada através da imprensa, sem processo. Porém, o episódio mostrou duas coisas: primeira, como o português é considerada uma língua periférica para o mercado editorial mundial; segunda, o suposto plágio deixou claro a qualidade da obra de Scliar.

Moacyr Scliar também se notabilizou pelos inúmeros contos que escreveu. Antônio Torres conheceu o colega pessoalmente em 1985, no aeroporto de Frankfurt, e a partir daquele dia, os dois estabeleceram uma grande amizade. Mas antes disso, já era leitor dos contos do amigo. Hoje, sempre que pode, indica a leitura dos Contos reunidos de Scliar.

“Tenho a primeira edição desse livro, em capa dura, de 1995, pela Companhia das Letras. E a ele sempre recorro para retemperar o espírito com os toques de ironia e a fabulosa imaginação de Moacyr Scliar.”

O crítico Luís Augusto Fischer acha que o escritor tem uma importante coleção de contos, “muito bons e muito variados, em fundo e forma”. Mas se fosse para indicar um livro para quem quer entrar no universo literário de Scliar, ele não pensaria duas vezes. “Pode começar pelo Centauro mesmo, porque ali há ótima literatura, dessas que sobrevivem sem nenhum amparo externo.”

Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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