Clarice no metrô

Para a autora de "A paixão segundo G. H". não há leitores; apenas vítimas
Clarice Lispector
01/02/2010

Tomo o metrô em Botafogo. Consigo um lugar e aproveito para continuar a ler Uma aprendizagem, o romance que Clarice Lispector publicou em 1969. No Largo do Machado, entra uma mulher alta e magra, que se perfila à minha frente.

Penso em lhe ceder o lugar, mas minhas pernas doem, andei muito. Continuo onde estou. Entre um parágrafo e outro, eu a observo. Tem a postura reta e dura, de desportista. A face branca, quase transparente, porém, lembra uma princesa. Olha para um ponto fixo à sua frente, um ponto vazio na parede. Está alheia a tudo. Parece não estar ali.

Sei que a mulher não é Clarice, que morreu nos anos 70. Não é um fantasma, ou um clone, ou mesmo uma imitadora. Mas podia ser Clarice — e é isso que me interessa. Ocupa, no vagão atulhado do metrô, entre passageiros que se espremem em busca de um espaço, um lugar parecido. Está deslocada, a realidade não parece atingi-la, ela não está realmente ali. Onde está?

No complexo cenário da literatura brasileira do século 20, Clarice surge assim. Clarice (Haia) Lispector nasceu no ano de 1920, em Tchetchelnik, na Ucrânia. Chega menina ao Brasil. Os pais lhe dão um nome brasileiro, deslocando-a do nome de batismo. Cinco anos antes de seu nascimento, Lima Barreto publica Triste fim de Policarpo Quaresma. Oito anos depois de Clarice nascer, surgem dois outros grandes romances: Macunaíma, de Mário de Andrade, e A bagaceira, de José Américo de Almeida.

A família chega a Maceió em 1922 — mesmo ano em que, em São Paulo, acontece a Semana de Arte Moderna. Seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, de 1943, é contemporâneo de Fogo morto, de José Lins do Rego. A maçã no escuro, de 1961, sai no mesmo ano em que aparece o terceiro volume de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Clarice é, desde a estréia precoce, uma voz dissonante. Sua presença na cena literária é difusa, imprecisa. Não devia estar ali, mas está. Se consideramos os anos em que viveu no exterior, o deslocamento se agrava.

Aparece sempre espremida a um canto, como a mulher que vejo no metrô. Os especialistas não conseguem enquadrá-la. Não participa de nenhuma série, não pode ser vinculada a um grupo, ou uma escola. Quando, em 1964, lança A paixão segundo G. H., já separada do marido, está de volta ao Rio. Naquele momento, chegam às livrarias os primeiros exemplares de O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho. A literatura brasileira se debruça sobre seu tempo e suas coisas; Clarice sobrevoa esse tempo e essas coisas. Onde pretende chegar?

Água viva (1973) é contemporâneo de As meninas, de Lygia Fagundes Telles, e de O caso Morel, de José Rubem Fonseca. Um abismo separa os três livros. De um lado, Lygia, que enfrenta com coragem as circunstâncias políticas, e Fonseca, que pisa na brutalidade do mundo urbano. Do outro lado, pisando uma colcha de fragmentos, avança Clarice. Caminham lado a lado; nunca chegam a se encontrar.

Clarice esteve, sempre, em desacordo com a história. Enquanto todos se movem para um lado, ela vai para outro. Ou talvez: em vez de andar, flutua. Suas ficções são vôos radicais sobre a realidade. Como definir o que fez? Volto a observar a mulher que se perfila à minha frente. Alheia ao burburinho do metrô, indiferente aos empurrões, ela continua interessada na parede vazia. Nada a afasta de si. Algo a engole, ela mesma. Talvez outros passageiros a tomem por louca. Talvez a desprezem, julgando que, agindo assim, se sente superior. Tem a postura estranha de quem despreza o mundo. Mas será que despreza, ou o perfura?

Leituras
Tenho feito, com minha amiga, a psicanalista Maria Hena Lemgruber, leituras públicas da obra de Clarice. Fazem parte do projeto Extremos, que se propõe a ler um romance, em voz alta, linha a linha, ao longo de uma maratona de quatro ou cinco dias seguidos, três a quatro horas por dia. Eu e Hena não somos “professores”; todos nos sentamos em círculo, nenhum de nós ocupa o lugar do mestre. Todos estão autorizados a falar e interferir sempre que desejarem. Não somos nós, Hena e eu, que os autorizamos, eles se autorizam. Não estamos ali para interpretar o livro, mas para pedir que ele nos interprete. O livro se desenrola, nós o seguimos.

Nos encontros do Extremos, a leitura de Clarice é sempre muito envolvente. Algumas pessoas não a suportam, e não voltam mais. Outras se entregam e, até, se desfazem em lágrimas. Ler Clarice é, sempre, uma ameaça. Lembro de uma mulher que, em um intervalo, reclamou: “Se todos temos o direito de falar e nossa palavra vale tanto quanto a de vocês, que são profissionais, não sei o que estamos fazendo aqui”. Apesar do desagrado, voltou no dia seguinte, e no outro — e permaneceu em absoluto silêncio. Clarice a arrastava, não podia escapar. No último dia, com o romance lido, me procurou para dizer: “Quero lhe agradecer pelo que me deu. Eu estava com medo”.

Só me restava comentar: “Você deve agradecer a si mesma pelo que se deu”. Mas me contive. Achei que entenderia como uma frase de efeito, um jogo de palavras banal e, embora fosse exatamente isso o que eu devia dizer, preferi ficar quieto. Essa mulher, essa leitora, teve, como sugere o nome que Hena e eu escolhemos para nosso projeto, uma reação “extrema”. A literatura de Clarice não suporta reações mornas. Não pode ser lida burocraticamente. Ou você foge, ou se entrega. Ela nos conduz para fora da própria literatura. Por vias estranhas, sim, retornamos ao mundo. O mesmo mundo, agora modificado por nossa visão.

A força de Clarice está aí. Nada é decorativo, ou “bem escrito”; é uma escrita suja, cheia de deslizes, com frases que não se concluem, e histórias que não chegam a lugar algum. Não há “exercício de estilo”, ou submissão disciplinada a princípios estéticos. Ao contrário: Clarice não tinha medo do comum e do banal. Você começa como um “leitor especializado”, aplica teorias, arrisca interpretações, traça paralelos. Avança, aos trancos. Até que, de repente, o livro o derruba. Esse é o momento. Na queda, você se conecta com Clarice. Você deixa de ser um leitor; é mais uma vítima. O livro o submete. O livro o lê.

Não há nenhuma magia, ou misticismo nessa experiência. Nada de sobrenatural, ou de assombroso. É tudo um efeito do modo como Clarice enfrentou a linguagem. Se há um assombro, é só um efeito das palavras. Ou talvez, mais ainda, dos silêncios — como as pausas, que pontuam uma partitura musical. A mulher do metrô é prova disso. Ela está ali, quieta, absorta, alheia às circunstâncias. Afunda em si, mas sem agitação, sem escândalo. Ninguém lhe dá importância. Tudo parece comum. E, no entanto.

Lembro de Clarice, que vi um dia, na calçada da Avenida Copacabana, observando uma vitrine. Em silêncio, para não importuná-la, me aproximei. Tomei um choque: a vitrine estava vazia. Alguns manequins, despidos, se amontoavam a um canto. Havia, pelo que me lembro, uma escada, coisas como vassouras, baldes, nada mais.

Clarice se debruçava sobre o vazio. Alguém que passasse poderia pensar: “É uma louca”. Talvez tenham se aproximado, com delicadeza, para perguntar: “A senhora se sente bem? Precisa de ajuda?”. Mas Clarice estava serena, em paz. Ficou ali mais um tempo, depois seguiu seu caminho. Gostava de apreciar vitrines, ver vestidos, jóias. Nada a atraía mais, porém, do que aquele rombo.

O abstrato
Vazio? Quem lê Água viva, que é pura abstração, entende o que tento dizer. Clarice via o abstrato. Ele é o objeto de suas narrativas. Penso em Pollock, em Kandisnky, em Kooning. Penso nas palavras de Malevich: “Eu me transformei no zero da forma”. Tento ir mais longe: volto aos românticos, com sua paixão pelo obscuro e seu projeto audacioso de buscar a luz na sombra. Penso nas palavras de Guillaume Apollinaire a respeito dos jovens pintores de seu tempo: “Eles são, em certo sentido, matemáticos sem saber, mas ainda não abandonaram a natureza, e a examinam cuidadosamente”.

Clarice foi uma grande leitora do mundo. Todo escritor, mesmo o medíocre, é. Um escritor não tem outra coisa para trabalhar, senão a própria vida. Pode se debruçar sobre a literatura do passado, pode fazer experiências formais e se entregar a uma “literatura culta”, pode tudo, mas estará sempre defrontado com a realidade. Clarice, porém, lia o mundo não na visão chapada das grandes paisagens, ou dos personagens “perfeitos”, mas nas entrelinhas. Via “entre”. Perfurava o real, cavando ali onde, quase sempre, por preguiça, por desatenção, por medo, nos detemos.

A mulher do metrô me mostra isso. Não precisa de uma paisagem. Não tem olhos nervosos, não busca uma novidade, ou um mistério. Está serena. Não precisa ouvir os relatos dos outros passageiros, nem observar suas figuras, ou suas atitudes bruscas. Não precisa disso, ou daquilo — qualquer coisa (uma parede em branco) lhe serve. Escolhe um ponto vago na parede do vagão e se entrega. É G. H. que, indiferente aos rumores de Copacabana, encontra um resumo do mundo no corpo asqueroso de uma barata. Ao levar a barata morta à boca, ela prova do mundo.

Penso nos grandes romances contemporâneos. Nove noites, de Bernardo Carvalho, o que é? A viagem de um jovem antropólogo a uma terra estranha e o relato de seu suicídio, diriam. Será? Harmada, de João Gilberto Noll, não pode ser reduzido à história de um ator que, entre mendigos, projeta uma peça de teatro — ou quase nada sobraria do livro. É absurdo reduzir Um copo de cólera, de Raduan Nassar, à narrativa de uma briga de casal. Do mesmo modo, brutal, talvez se possa dizer que A paixão segundo G. H. é a história de uma faxina em um quarto de empregada. A questão não é o que se conta, mas como se conta. A literatura não é uma fotografia, mas uma escavação.

Sabia Clarice que o importante não é o que vemos, mas como vemos. E esse “como” é sempre transitório e pessoal. Nele está a chave de tudo. Por isso, provavelmente, sempre que falamos da literatura de Clarice voltamos à própria Clarice. Diz Claire Varin: “Ler Clarice é ser Clarice”. E está tudo dito.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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