Clarezas sobre o surrealismo em Portugal

O poeta Cruzeiro Seixas é uma das mais importantes vozes do surrealismo português
Cruzeiro Seixas: “A folha de papel ou a tela foram para mim sempre um fato inesperado”
01/01/2004

Durante quase todo o segundo semestre de 2003 estive em Portugal, sobretudo na cidade do Porto. Em parte o resultado dessa temporada encontra-se compartilhado com os leitores do Rascunho, através das entrevistas que aqui foram publicadas com poetas como Alberto Pimenta, Ana Marques Gastão, António Osório, Manuel António Pina e Rosa Alice Branco. Avançamos agora neste diálogo intenso com a poesia portuguesa, com a presença de um dos nomes mais fundamentais do Surrealismo naquele país, o poeta e artista plástico Cruzeiro Seixas (1920). Ao lado de nomes como Cesariny de Vasconcelos e António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas tem papel fundamental nos primórdios da intervenção surrealista em Portugal. De sua obra poética destaco livros mais recentes, como Eu falo em chamas (1986), Desaforismos (1989) e Viagem sem regresso (2001). Mas cabe menção especial à importante publicação de sua Obra poética, uma parceria da Fundação Cupertino de Miranda com as Edições Quasi, cujos dois primeiros volumes até aqui entregues a público confirmam a grandeza dessa poesia. Além da presente entrevista, reproduzo íntegra de carta que me enviou Cruzeiro Seixas, pelo que revela de curiosidades acerca do Surrealismo, tanto no Brasil quanto em Portugal.

• Por onde começas: pelo verso ou pela plástica?
Pelo verso, pois não sei outro caminho.

• Escreveu Fernando Matos Oliveira: “Em Breton, como em Cesariny, o Surrealismo é uma ética. Ao passar à escrita, esta se traduz historicamente numa estética e num estilo”. Seria possível dizer o mesmo em relação ao Cruzeiro Seixas?
Mesmo que o desejasse dificilmente a minha obra teria a ver com uma estética, sendo como sou muito pouco dotado de habilidade manual, de memória visual e de técnica, e sendo ainda completamente desorganizado, muito raramente há a submissão a um projeto. A folha de papel ou a tela foram para mim sempre um fato inesperado.

• Tua obra plástica não se baseia em uma dissolução de formas, mas antes em uma instauração de novas formas. Está correto o Rui-Mário Gonçalves quando diz que não vê nela a presença de “corpos desfeitos, mas refeitos”. Para refazê-los, no entanto, como tu convives com os corpos existentes, as formas canônicas?
Estou muito longe da genialidade, e assim parece-me excessivo ver no que faço “novas formas”. A minha obra é apenas um testemunho ou um depoimento, que só por ínvios caminhos terá a ver com a obra de arte. A minha convivência com os corpos foi feita intensamente no amor, mas um corpo para mim nunca foi somente um corpo, mas um lugar de conjunção de todos os infinitos.

• Tendo em conta um erotismo muito presente em tua obra (impressiona-me uma tela como Estudo de uma palavra), é quando menos curioso observar que o grupo em torno de Breton era muito ingênuo em relação ao tema. Mas não o era Artaud, banido do grupo. Pensando justamente em Artaud, de que maneira em Cruzeiro Seixas “o sonho devora o sonho” (Artaud)?
O sonho só existe para ser devorado, ou intensamente possuído.

• Há uma imagem em um poema teu que me é muito fascinante: “palavras roídas de ferrugem”. De que maneira a poesia deixou-se oxidar pelo tempo?
Não há nada que o tempo não oxide e enferruje. Contra isso nos cabe lutar amando loucamente, libertando as palavras da sua escravatura.

• Risques Pereira chegou ao grupo de vocês indicado pelo António Maria Lisboa, mas antes havia estado ao lado de António Pedro em outro grupo. Risques declarou certa vez que as dissidências entre os dois grupos eram meramente de ordem pessoal. Contudo, se lemos as cartas de António Maria Lisboa, percebemos o quanto lhe preocupava questões tanto éticas como estéticas. E dava um acento especial aos riscos da ortodoxia. Como avaliar esta situação hoje? E até que ponto o Surrealismo em Portugal teria sucumbido à ortodoxia?
O Risques Pereira pertenceu desde sempre a “Os Surrealistas”. Julgo que de entre nós o único que passou pelo grupo por demais acadêmico do Antonio Pedro foi o Cesariny, até constatar que o Surrealismo ali era principalmente uma estética. Não me vejo a fazer a história do Surrealismo em português, mas julgo que não “sucumbo à ortodoxia”, mas se de alguma forma sucumbo isso se deu por não ter o Cesariny querido, podido ou sabido prolongar o espírito da exposição de 1949. Verdade que, quando se começaram a pressentir certos desencontros eu me retirei para África, onde permaneci numa outra aventura, apaixonante, cerca de 14 anos; e o Mário Henrique Leiria percorreu o mundo, regressando apenas em 1980 para morrer; e ainda pior, faleceu o António Maria Lisboa em 1953, apenas com 25 anos. Na fotografia oficial que circula estamos presentes oito; pois hoje, estranhamente, só restamos o Cesariny e eu!! Parece haver quem agora prefira por a hipótese de que o Surrealismo em português se tornou “individual”, mas isto não é inteiramente verdade; um certo apagamento, uma certa exitação, um certo mal-estar aconteceram, e por certo advieram da ausência de uma figura de proa que unisse, e não dispersasse.

• Um outro aspecto a ser considerado, tomando por base uma observação do brasileiro Carlos Felipe Moisés, é que “o Surrealismo em Portugal, desde o início, se vê isolado e marginalizado, acuado pela esquerda e pela direita, condenado a ser movimento de resistência em duas frentes simultâneas”. Antes de ser condenação, esta era uma condição do Surrealismo, uma de suas mais consistentes afirmações, malgrado a adesão do grupo francês ao Partido Comunista. De que maneira as ideologias eram tratadas então?
Julgo que essa luta seria o que de mais estimulante nos poderia ser ofertado aqui, pois nunca acreditei em vitórias indiscutíveis. As vitórias são um fim, e o que sempre me apaixonou foi o ato de caminhar. Baseado na experiência do Grupo de Breton, afastei-me tanto quanto possível dos políticos, acreditando que antes de construir a sociedade é necessário construir o homem. Será pela didática que isso poderá acontecer. Assim julgo que, ao fazer um quadro ou um poema, é didática que se está a fazer. Nesse sentido sonho ainda com diversas exposições (sejam elas surrealistas ou apenas do Surrealismo), percorrendo o mundo, mas estou por demais só, e já não sinto as necessárias forças para essa enormíssima luta. Por exemplo, há muito alimento o sonho de uma exposição do Surrealismo brasileiro que nos visitasse, enquanto uma outra do Surrealismo daqui se deslocaria ao Brasil…

• Disse o mexicano Octavio Paz que o século 20 seria lembrado muito mais como o século do Surrealismo do que do Marxismo. Até que ponto estaria correto em tal afirmação?
Todas as idéias são necessárias ao homem; o Marxismo e o Comunismo são hoje por certo injustamente confundidos com o stalinismo. O Surrealismo é evidentemente uma minoria, mas que parece neste momento bem viva, em todos os recantos do mundo.

• Graças ao espanhol Perfecto Cuadrado e ao inglês C. B. Morris há uma certa recuperação, ao menos em plano histórico, das atividades surrealistas em Portugal e na Espanha. Nos dois casos, o assunto tem sido tratado por estrangeiros, o que remete a uma curiosidade: de que maneira o surrealismo é visto pela crítica em cada país de atuação. No caso português, como reage ainda hoje a crítica ao assunto?
Depois do 25 de abril quase se extinguiu a crítica em Portugal; e além disso toda uma geração tomou como seu princípio que o mundo teria começado nos anos 60! E ainda, além disso, deu-se uma surpreendente supremacia do dinheiro, em personagens os mais inesperados; nessa obstinação alguns se perdem. E há a circunstância de se tratar de um pequeno país, com uma difícil posição geográfica. E a tudo isto há que acrescentar uma certa maneira de ser dos portugueses, que desde sempre preferiram sonhar a realizar. As dificuldades têm-se avolumado, chegando-se por vezes a um difícil entendimento de português para português. Tenho 83 anos, mas cada vez o mistério me parece mais denso. Sei que já não vou ver como vai ser possível sair deste beco, mas lembro-me de ter escrito algures que, no último momento por certo se vão lembrar do Surrealismo. Não aspiro à presciência, mas sim à sensibilidade, e àquilo que tem sido uma muito dura experiência da vida. Sei que no homem mais desesperado uma centelha de esperança sempre persiste.

• De que maneira poetas e artistas como Luís Miguel Nava e Mário Botas significam um desdobramento do Surrealismo em Portugal? Quais outros nomes poderiam aqui ser lembrado?
Tanto com o Mário Botas como com o Luís Miguel Nava se estabeleceu comigo uma certa proximidade. Alguns trabalhos em comum (“cadavres-Exquis” e pinturas coletivas) o atestam no caso do Mário Botas. E de uma longa carta do Luís Miguel Nava transcrevo: “as suas palavras parecem tocar o essencial não lhe sei dizer de quê, mas o essencial tout court, (…) creio que na linha do que o Artur refere quando diz que ao verbo ‘evoluir’ sempre contrapõe ‘aprofundar’, sendo assim remetidos para um outro grau de realidade, um outro estado, onde a verticalidade da consciência se sobrepõe à horizontalidade dos percursos”. Creio que tanto um como o outro não tiveram relacionamento aprofundado com o Cesariny. O Mário Botas acabou escrevendo referências destruidoras do Surrealismo daqui, por certo perturbado pela tragédia da sua doença e da sua morte prematura, que inflectiram o seu caminho. Não referes o Raúl Perez, que me parece ser, como pintor, autor de uma muito notável obra, que seria merecedora de reconhecimento para além desta tão apertada fronteira. Também me parecem dignos de uma palavra, mesmo que por demais apressada, os talvez não mais de dez desenhos de Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), que mereceriam reconhecimento universal. Quem pára é porque já morreu. Tentemos nós morrer em pleno vôo.

Carta de Cruzeiro Seixas a Floriano Martins
25 de outubro de 2003

Caro poeta:

A comunicação com o Surrealismo do Brasil infelizmente só me foi possível quando em 1967 Sérgio Lima organizou a exposição A Phala. Mais tarde visitou-me Sara Ávila. Há muitos anos dirigia eu a Galeria S. Mamede e dirigi-me à Embaixada do Brasil no intuito de conseguir uma exposição de Maria Martins, a quem tão calorosamente se referiu Breton. Recebi duas cartas entusiastas da Senhora Embaixatriz, a que se seguiu o mais absoluto silêncio. Para além destes contatos apenas posso referir a minha costela brasileira, pois minha avó materna era natural do Pará. Assim agradeço o teu contato, e a citação de minha autoria no pórtico do teu livro. Tudo muito tocante, como é de esperar de coisas que têm como raiz profunda a Poesia. Junto te envio o segundo volume da minha poesia que acaba de sair. Para meu espanto dizem-me a Isabel Meyrelles e o editor que ainda há material para mais três volumes!

Quanto ao questionário respondo por certo de forma excessiva, mas não sei fazer de outra forma, e não é agora com a D. Morte sentada à minha porta que me vou modificar.

Dizem-me que há gente nova muito interessada no Surrealismo. Não podia deixar de ser, mas se não me procuram eu também não posso fazer mais do que os pressentir apaixonadamente. Nunca fui muito convivente, e nunca me sobejou TEMPO para o convívio de cafés, bares etc. etc. Tenho a certeza de que haverá surrealismo amanhã. Relato-te uma espécie de anedota acontecida há algumas semanas numa das livrarias de Lisboa. O proprietário informava-me de que há muita gente nova procurando livros sobre o Surrealismo. Respondo-lhe que a mim raramente alguém me procura, e ele contrapõe que, na verdade não procuram referências ao Cesariny ou a mim, mas sim ao Surrealismo…

Os melhores votos e o abraço surrealista do Artur

Dois poemas de Cruzeiro Seixas

[Pode-se enfraquecer a verdade]

Pode-se enfraquecer a verdade
dividindo-a em duas partes iguais
e nunca fizemos outra coisa
neste teatro
onde personagens muito nossos conhecidos
rasgam os cenários
como quem rasga a luz prometida.
No escuro pergunto-me:
é um cavalo alucinado que está em cena
como um território desconhecido
de que ainda esperássemos a chegada
suspenso pelas pinças dos mais sábios?
Uma folha seca
seguia-me como um cão.
E a luz escrevia na trama das fibras
um pássaro realmente real
Apolo algemado
sete vezes refletido num espelho líquido.
Eis-me entre os teus joelhos
rodeado pela fúria de sete mares.
Falávamos da eternidade…

[Quando me disseram]

Quando me disseram
que os países eram espaços lívidos sobre abismos
não podia acreditar.

Se pensarmos bem
na vegetação rasteira que os filósofos
cultivam sobre os espelhos
concluiríamos que
se África fosse aqui
o meu coração não bateria assim
descompassadamente
como se fossem dele todos os ouvidos do mundo.

No mapa
estavam marcadas as 7 horas;
era a hora de um país futuro.

Nada mais
que um pára-quedas
fazendo o trottoir
como se o mar
oh meu amor
ainda fosse tão azul
como um sonho.

Floriano Martins
Rascunho