Cinco poetas

Álvaro Alves de Faria escreve sobre a poesia de Neide Archanjo, Fernando Paixão, Simone Homem de Mello, Cyro de Mattos e Lília A. Pereira da Silva
Fernando Paixão, autor de “Poesia a gente inventa” Foto: Ivson Miranda
01/04/2006

Neide Archanjo está com novo livro de poesia, Cântico para Soraya — Uma princesa sefardita (A Girafa, em co-edição de Éditons Eulina Carvalho, Paris), com a versão para o francês de Véronique Basset. Trata-se de um livro de poemas, feito com poesia. É bom deixar isso ressaltado porque está difícil. Em se tratando de uma princesa sefardita, o livro de Neide Archanjo tem um posfácio de Moacyr Scliar, de quem não é necessário destacar a seriedade como escritor e como gente, o que também está difícil. Alguns leitores me chamam de amargo. Mas não dá para ser diferente. Scliar esclarece que na tradição judaica Sefarad é uma palavra mágica, desde os tempos bíblicos. Observa que a lírica sefaradi, que depois seria escrito em ladino, um espanhol arcaico, impressiona pela sensual beleza e até hoje é motivo de assombro e emoção para os leitores.

É exatamente nisso que se situa os poemas do novo livro de Neide Archanjo, a começar pelo cultivo da Beleza. Um longo poema de amor em que ela se despoja diante do ser amado, deixando que as palavras percorram o poema como uma longa oração, quase prece de encantamento.

Neide começa seu livro sinalizando os poemas que escreveu com trecho do Cântico dos Cânticos, de Salomão: “Grava-me como um selo em teu coração, como um selo em teu braço; pois o amor é forte, é como a morte”. Os poemas de amor são comoventes, uma confissão de amante, sobretudo da vida. Vejam um trecho do “oitavo versículo”: Quando estendes teu corpo/ sobre o meu/ és um tuaregue/ uma sherazade./           Poema e gozo/ que no tempo se inscrevem.

Uma linguagem poética rara, como se alguém pegasse um antigo lápis e escrevesse uma longa carta que tanto serve para quem chega como para quem parte. O que vale mesmo é o clima amoroso do livro, um dos melhores que a autora escreveu até hoje.

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Fernando Paixão, que nasceu em Portugal mas vive no Brasil, é um poeta que escreve pouco. Pouquíssimo. Quase não escreve, o que é uma pena. Paixão está lançando A parte da tarde” (Ateliê Editorial), um pequeno livro que começou a ser escrito há dez anos, quando ele visitou o ateliê do artista plástico Evandro Carlos Jardim. Ficou encantado com a imagem de um pássaro. O livro se compõe de versos de uma única palavra na maioria das vezes.

A parte da tarde tem uma apresentação dispensável de Ferreira Gullar que fala em “traduzir o intraduzível”. Explica: “Como dizer com palavras o que só a linha, a luz, a sombra, em seu murmúrio dizem? As linguagens são intraduzíveis umas nas outras. Por isso, Fernando Paixão teve de inventar uma tessitura de palavra e silêncio para tentar dizer o indizível — uma fala que, na verdade, diz não o que a gravura diz mas precisamente o que ela não diz e que só palavra, por não ser gravura, pode dizer”.

Não dá para saber exatamente o que Gullar quis dizer. Tenta explicar, quando não seria preciso, já que o poema de Paixão se encarrega disso, palavra por palavra. Já escrevi muitas vezes e repito mais uma: pena que Fernando Paixão escreva tão pouco. O que vale é dizer que A parte da tarde é um livro de poesia. Seria já o bastante, não fosse ainda, uma poética de absoluta grandeza.

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A Ateliê Editorial presta um grande serviço aos possíveis leitores de poesia deste pobre país de tantas mediocridades ao publicar Périplos, de Simone Homem de Mello, que é mestre em Literatura Alemã pela Universidade de Colônia e formada em Letras pela USP. A autora vive na Alemanha.

Périplos é antipoesia. Representa a maneira mais profunda de assassinar a poesia sem dó ou remorsos, como fazem os facínoras soltos por aí. Na área da Poesia, o Brasil é um país de facínoras. O livro se destaca pelo que não tem. Uma “poesia” sem alma nenhuma. Como se escrever um poema — digamos, com algum sentimento — fosse um crime. O livro parece ter sido escrito por uma máquina. Não por uma pessoa. Muito menos por um poeta. Apenas uma máquina.

Cláudio Daniel, que também escreve poemas neste país de arrogantes, tenta explicar bem à sua maneira este amontoado de palavras sem vida, sem poesia, sem nada: “Uma jornada em busca do inusitado, seguindo um rigoroso método imaginativo. Ao longo do percurso, a paisagem é retalhada, recriada, romãs dispersas e caóticas são combinadas em estranha tessitura, compondo novos corpos semânticos, com sua própria aquarela e timbres de violoncelo”.

Maravilha!

Trata-se de um livro de “poesia” que se nega exatamente à poesia. Uma porção de palavras que se unem umas às outras sem nada dizer. Até porque, a bem da verdade, nada têm a dizer. Uma verdadeira negação ao poético. O livro consegue a façanha de anular a poesia completamente. Sendo a negação total da poesia, Périplos alcança seu objetivo.

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O poeta baiano Cyro de Mattos lançou em Portugal Vinte poemas do rio (Editora Palimage, de Viseu), com uma tradução para o inglês assinada pelo poeta português Manuel Portela, doutor em cultura inglesa pela Universidade de Coimbra. Cyro de Mattos é um poeta que usa a palavra para escrever. A palavra e também a emoção, peça proibida pelos censores da vida, implicam censores da própria poesia dentro de um poema. O poeta simplesmente diz e seu discurso é feito com zelo em poemas que têm a água como tema. Fala como homem da terra, que depende dos rios para viver.

Estes poemas foram publicados pela primeira vez em 1985. Um retrato brasileiro. O poeta se confessa um emotivo diante dos rios e se deixa levar pela palavra. Sem mistérios. Vive o poema em sua forma de poema, como se cantasse.

Cyro é um poeta generoso com as coisas brasileiras. Isso está presente também no Cancioneiro do cacau, sua obra mais completa que mostra essa sua generosidade poética que, às vezes, este país não merece, não por ele, mas pelo rumo que lhes dão figuras circunstanciais.

Pois é assim também neste Vinte poemas do rio, no qual o poeta de Itabuna se deixa caminhar águas em busca de destinos, se deixa levar por destinos para achar as águas que representam a existência. A preocupação de Cyro de Mattos em relação à poesia e ao poema é com a palavra certa, sem invenções. É o que tem a dizer em forma de versos. E o faz como um garimpeiro que cavouca a terra e acha o que procura.

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Lília A. Pereira da Silva é uma poeta estranha na vida literária e poética deste país.

Nasceu na cidade de Itapira, no interior de São Paulo, mas vive na capital desde a adolescência. É autora de mais de 90 livros, incluindo romances, ensaios, literatura infantil, pintura, música, além de livros de Direito, Psicologia e especialmente poesia. Tem poemas traduzidos para mais de 15 idiomas, incluindo inglês, francês, espanhol, italiano, norueguês e japonês. Quem sabe disso? Lília publica seus livros em pequenas editoras, não se preocupa em distribuí-los, pouco liga para o que ocorre a sua volta. No que ela faz bem. Dá a impressão de que escreve poesia 24 horas por dia. É uma poeta lírica e busca sempre as palavras que mais enaltecem o poema. Faz parte da famosa Antologia dos novíssimos, editada em 1961 por Massao Ohno, em volta de quem se reuniam os então jovens poetas da Geração 60 de São Paulo. Optou pelo caminho inverso. Segue solitariamente a escrever e publicar sem saber ao certo o destino de sua poesia. Não lhe importa. Ela está publicando mais um livro de poemas, Diário na Suíça (RG Editores), no qual deixa, como sempre, em que o lirismo ainda possível habite suas páginas, como se habitasse todas as coisas do mundo: “Mas haverei de encontrar o poeta/ de palavras acesas na porta/ que já não abro/ porque debruçada/ na drástica nitidez da janela/ onde o aceno é punhal”. Mais: Destas janelas/ invisíveis caravelas conduzem-me o soluço…/…É mais triste o equívoco no outono” Lília tem na poesia não apenas uma manifestação literária. É admirável vê-la sempre remando contra a maré, andando na contramão, pela absoluta opção de se isolar, já que, na verdade, quase sempre não vale a pena se expor ou participar das cenas literárias quase todas feitas de engodos. Justiça lhe fez Nelly Novaes Coelho, que lhe dedicou grande espaço no Dicionário crítico de escritoras brasileiras (Escrituras), ao lado dos maiores nomes das mulheres escritoras e poetas deste país.

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho