O mundo atual, com seu componente predominante de virtualidade, acrescentando a intensa presença das redes sociais, torna difícil e perigoso ao pesquisador chegar a qualquer tipo de conclusão quando o tema é a análise do contemporâneo. Cada sondagem neste universo volátil e escorregadio pode-se apresentar enganosa. Eis algumas questões: o mundo mudou a partir do surgimento da internet? Qual o real papel da internet e das redes sociais no complexo da cultura, incluindo aqui o fazer humano em toda sua plenitude? A internet deu poder a determinados segmentos da sociedade? Tais perguntas, que apontam trilhas sinuosas e muitas vezes plenas de obstáculos, são difíceis de responder. Quando se encontram respostas, acaba-se por transitar no senso comum.
Márcio-André, em Leonardo contra Paris, parte de algumas destas questões. Seu personagem principal, Leonardo Pontevedra, leva uma vida dupla, a real e a virtual. Já no início do romance, situando-se ao nível da realidade, ele pertence à elite carioca, mora no Leblon, sua ex-namorada é uma pianista de renome internacional. Ele viaja exaustivamente ao exterior e, através de um artifício que revela no desenrolar da narrativa, consegue publicar um livro. No entanto, como num passe de mágica, sua vida muda como da água para o vinho, ou melhor, do vinho para água. Leonardo afirma aos amigos que recebeu um convite para lecionar na Sorbonne, em Paris. Para despedir-se, dá uma grandiosa festa convidando o maior número possível de celebridades, amigos, conhecidos, e todos aqueles que sempre o estão elogiando. No dia seguinte, um dos que estiveram presentes na festa o conduz ao aeroporto. Leonardo desce do automóvel e faz seu amigo ir embora dali mesmo, nada de despedias, ele pede. Só que, na verdade, Pontevedra não vai a Paris, não existe o tal convite, tudo não passava de uma burlesca invenção. O personagem toma um táxi no mesmo local em que saltou, na entrada do terminal dois do Aeroporto Internacional do Galeão, e vai para São João de Meriti, onde lhe resta um velho sobrado que pertenceu ao seu avô.
Por meio de sua página no Facebook, ele começa a contar sua falsa estada em Paris. Apresenta informações sobre a cidade, fotos, encontros, jantares com autoridades, como o reitor e o chefe de departamento da faculdade onde supostamente leciona, fala de seu curso, dos temas das aulas etc. Tudo vai muito bem até que ele descobre um duplo, outro Leonardo Pontevedra, que está em carne e osso em Paris, alguém que assumiu o seu lugar, um homem que usufrui tudo o que ele narra na sua página. A mentira tornou-se realidade. Este segundo Leonardo realmente leciona na Sorbonne, é elogiado por todos, aparecem notas na imprensa sobre o seu sucesso na França, e até passa a viver com a ex-namorada do primeiro. O Facebook transformou a mentira em realidade. Como, a partir de então, o “verdadeiro” Leonardo vai controlar o seu duplo? Inicia-se uma luta feroz entre criador e criatura. Esta é a questão principal do livro, que vai repercutir em quase todos os acontecimentos.
A cidade de São João de Meriti aparece plena no livro, com seu quinhão de humanidade e com força poética. Talvez se pense que seja mais fácil escrever romances ambientados em Paris, cidade mais convidativa ao ambiente de cultura, poesia e arte. Escrever sobre subúrbios, periferias, locais quase sem apelo poético, e transformá-los em literatura, talvez seja o desafio daqueles que se pretendem bons autores. A São João de Meriti, que faz divisa com o Rio de Janeiro através do fétido Rio Pavuna, não aparece no livro por mero acaso nem para que o autor desenvolva uma romance de periferia em que as questões capitais sejam a violência, o tráfico de drogas ou o abandono das autoridades pelo local. A cidade que vem à luz arrasta uma força de vida que, muitas vezes, não existe nos bairros abastados da zona sul carioca. Trata-se de uma cidade viva, com pessoas de alma, que buscam razões para estarem no mundo, embora literatura e arte quase não estejam entre seus primeiros objetivos.
Criação literária
Outro ponto que se destaca na obra é a questão da criação literária. Leonardo Pontevedra é autor de um livro que ganhou vários prêmios. Ele dá a receita:
[…], caso quisesse, nem precisava ter publicado um livro para ter alcançado o prestígio como escritor. Na nossa era, em que contar um fato desvincula-se do fato em si mesmo, não é necessário ser efetivamente nada para se chegar a alguma coisa. É preciso ter os amigos certos — isso é o mais importante — e dizer a eles dos seus feitos, fictícios ou não. Eles mesmos convencerão os outros de suas capacidades e, quando todos acreditarem, nem mesmo eles colocarão em dúvida, porque todos estarão falando do que você fez.
O ato de ser um artista estaria intimamente relacionado à amizade, sobretudo, com jornalistas. A repetição do que eles dizem, através das redes sociais, e mesmo das páginas de literatura sobre seu sucesso, verdadeiro ou não, seria uma poderosa ferramenta de convencimento. Quem sabe criar e manter um perfil no Facebook, cultivar muitos amigos ou seguidores, estaria mais próximo do sucesso. A qualidade literária não vem ao caso.
A questão do duplo, neste romance, não se resume a Leonardo e seu sósia, que frequenta as rodas literárias da Sorbonne. No decorrer do livro, descobrimos alguns segredos do avô do personagem, primeiro proprietário do sobrado onde Leonardo agora reside. Entre esses segredos há um personagem cujo nome é Afrânio. Ele, pouco a pouco, vai descendo na escala social, tornando-se, na velhice, um morador de rua, ou mesmo um mendigo. Leonardo descobre que este possui um diário onde está registrada a própria vida, incluindo a relação do homem com o avô. Nestes papéis, que Leonardo paga caro para furtar, o protagonista descobre uma espécie de manipulação perversa, da parte de Afrânio. Leonardo sai em busca de vingança, mas o que descobre é algo inteiramente inesperado.
Em meio a muitos personagens interessantes e peripécias que o romance nos apresenta, há a presença da biblioteca pública de São João de Meriti, local que Leonardo passa a frequentar logo que se muda para a cidade. Ali, ele desenvolve uma oficina de literatura. Neste momento, é possível observar não apenas a metaliteratura, mas que, onde quer que seja, há pessoas interessadas em poesia, em literatura. A imagem da biblioteca perdura como um oásis em meio à desolação, ao abandono do poder público pela periferia, proporcionando a ponta de humanidade que atua como contraponto na história. Resta uma questão: qual o lugar da periferia no universo literário?
Ao iniciar a leitura deste livro, talvez algum leitor desavisado pense que acompanhará Leonardo nas suas flâneries por Paris. De certa forma isto não deixa de acontecer, mas o que perdura é (guardada as devidas proporções) o mesmo que descobrimos quando acompanhamos as histórias de Dostoievski. Desfilam lugares e personagens na aparência nada poético, mas que, pouco a pouco, passam a pulsar uma humanidade que jamais imaginávamos, a ponto de suas fragilidades tornaram-se tão comoventes, que se convertem na gênese da poesia.