Uma estranha na cidade é o primeiro livro de não-ficção da escritora porto alegrense Carol Bensimon. São 36 textos, a maioria crônicas publicadas em jornal e blogs. A mesma autora já publicou obras bem recebidas pela crítica como Pó de parede (2008), Sinuca embaixo d’água (2009) e Todos nós adorávamos caubóis (2013).
No livro de crônicas, Carol reflete sobre a sua geração – nascida da década de 1980 – discute a transformação das cidades, fala sobre comportamento, cultura e consumo. O conjunto de textos agrada especialmente pela conexão temática, o que ajuda a construir certa unidade, e pelo estilo da escrita, acompanhada sempre de jovialidade e inteligência. Em grande parte dos textos, a autora utiliza artigos, pesquisas, informações e memórias que a levam a discutir a passagem do tempo, o comportamento humano e, de maneira especial, o urbanismo.
A nostalgia de Carol pode parecer precoce, mas reflete a velocidade com que sociedade e cultura têm se transformado. Um exemplo disso é o consumo de música (tema principal da crônica A música do túnel), algo que mudou consideravelmente em pouco tempo – passando dos discos de vinil ao streaming, transformando nossa forma de ouvir, selecionar e compartilhar canções. Na crônica, Carol defende a ideia de que, com qualquer música ao alcance de poucos cliques, a juventude contemporânea perdeu o prazer da surpresa e da epifania que só a imprevisibilidade da programação do rádio pode dar. No entanto, essas relações de consumo afetadas pelas transformações culturais vão além da música.
Às vezes me lembro de meus pais contando como era difícil conseguir uma calça Lee em Porto Alegre no fim dos anos 60, a calça que todos queriam ter e, tenho a impressão de que boa parte das lembranças das pessoas se relaciona a obstáculos, emprenho, insistência. “Era difícil achar tal coisa, mas eu consegui”. Ou: “Era difícil montar uma banda, mas eu consegui”. Torço, sinceramente, para que as coisas difíceis não acabem de uma vez por todas.
A temática do consumo, relacionada a outras questões, marca presença em textos como Menos plástico, mais amor, em que a autora questiona, entre outras coisas, a necessidade de tantas embalagens plásticas nos produtos industrializados. O assunto aparece também em A porta de entrada, sobre a descriminalização das drogas, em Quando comer era fácil, sobre a crescente onda dos alimentos super saudáveis e em uma das melhores crônicas, Não gostando com ênfase, em que Carol apresenta seus critérios para gostar ou não de determinados filmes e livros. Rapidamente, as discussões de gênero, perspicazes e bastante atuais, também ganham espaço na coletânea.
De maneira geral, Uma estranha na cidade chama a atenção para as condições e consequências impostas pela velocidade da vida nas cidades, e como elas refletem nos nossos costumes. Em A maior das transgressões, a escritora expõe algumas características dessa correria diária, que transformou as relações, as conversas e, de forma marcante, nosso apego ao celular. Para Carol Bensimon, sob tais condições, alguém que se dedica a ler um livro está cometendo uma verdadeira transgressão.
Há um cara que eu conheço que disse: não termino de ler um livro há quatro anos. Ele estava sorrindo. Porque o mundo ficou rápido pra cacete e ele adora isso. Ele adora saber cento e quarenta caracteres sobre as coisas. Ele adora aderir a uma causa de cinco minutos.
Em outras passagens do livro, ela descreve a preferência pela solidão dos elevadores vazios, o mito que compramos junto com os caderninhos Moleskine – pelo charme de ter um caderno que também teria sido usado por grandes escritores -, e sobre a própria incapacidade de decidir sobre fazer uma tatuagem, como em Tatuagens para todos. “Nessa segunda década do século 21, além de querermos nos sentir muito especiais e únicos, parece que precisamos estampar o que somos em praça pública – ou na arena virtual – o mais rápido possível, já que quase ninguém tem tempo ou paciência para se conhecer de fato”, diz no texto.
O título Uma estranha na cidade vem de uma ideia presente no livro A Arte da Ficção, de John Gardner, algo que a escritora esmiúça em uma das crônicas. Trata-se da noção de que só há dois tipos de trama em toda a literatura: ou alguém parte em uma jornada, ou um estranho chega à cidade. Discutindo esse conceito, ela relembra que, por muito tempo, e por uma série de fatores, as tramas de viagem foram negadas às mulheres. Assim, ela comemora não estar nessa posição de quem apenas observa, de quem “apenas espera que a aventura do outro aconteça bem à sua frente”. Certamente, a literatura de Carol Bensimon é feita de pessoas e ideias que se movem.
Urbanismo poético
Cada uma a seu modo, as crônicas de Carol dialogam com a sociabilidade e com a vida nas cidades. A autora se mostra uma curiosa sobre temas do urbanismo, e recheia seus textos com referências sobre esse assunto, que parece estudar e acompanhar com frequência. Uma das referências citadas é o clássico Morte e vida das grandes cidades, da escritora norte-americana Jane Jacobs. Carol usa parte das reflexões da autora para discutir a mutação dos municípios brasileiros e, em especial, suas impressões de Porto Alegre, uma cidade espalhada, com seus prédios hostis e que dá preferência aos carros em detrimento dos pedestres – problemas evidentemente encontrados em muitos lugares do país.
As discussões sobre a arquitetura e o urbanismo de Porto Alegre representam uma preocupação com a memória local, mas também com as relações humanas de maneira mais abrangente. Essa é a impressão que o leitor tem ao ler textos como O Prédio Novo, em que a escritora explica a relação entre a altura dos prédios e a frieza do contato com a rua – quanto mais alta construção, menos contato com os detalhes da cidade, com as pessoas que passam pelas calçadas diariamente. Ou seja, um morador do décimo andar pode até ganhar de presenta uma bela vista da paisagem, mas está desinformado sobre o que acontece na própria rua. É uma questão urbanística, mas também de segurança e de sociabilidade.
Se é possível fazer um esforço comparativo entre essa ideia e a crônica como estilo literário, podemos dizer que a crônica mora no térreo. É um texto que vive mais nas ruas do que nas sacadas dos prédios; que conversa com as pessoas e faz com que elas olhem por onde andam e pensem sobre o que veem e vivem. Nesses quesitos, Carol Bensimon pega o leitor pela mão e presenteia com bons exemplares do estilo.