Mugido de trem, de Nilson Monteiro, conta a história de uma família numerosa a partir de diferentes pontos de vista, tempos, espaços e vozes em 57 capítulos ou fragmentos. Tudo começa a partir da lembrança da morte da matriarca e sua repercussão na vida do pai e dos filhos, nomeados já no capítulo cinco: “Fora ele, José e a que morreu menina, somos oito: eu, batizado Modesto, Cristóvão, João, Pureza, Venâncio, Marta, Joana e a caçula Isabel”.
O texto possui marcas gráficas que distinguem as falas dos personagens e a de um narrador onisciente. O diferencial, em letras em itálico, oferece ao leitor fragmentos de pontos de vista de cada personagem e introduz suas histórias. Os oito irmãos, seus pais e os que os rodeiam são apresentados de forma panorâmica, através tanto de seus depoimentos diretos quanto de observações, definições, discursos críticos ou poéticos do narrador e deles próprios, cada qual com sua singularidade: filhos dos filhos, amigos, maridos, mulheres, amantes, namoradas, companheiros de copo, vizinhos, o policial, um padre, um japonês com viés fascista, um palhaço, um pobre menino e as cidades.
Vozes e vidas se entrelaçam em tempos distintos, em diferentes planos: memória, presente, fantasia, sonho, monólogos interiores, crônicas e prosa poética. Alguns têm mais destaque e ganham profundidade subjetiva, outros são anunciados como fios secundários, mas indispensáveis à trama. Eles surgem e se ocultam, são retomados, ganham força ou somem na fumaça, como o trem que passa veloz.
Chegadas e partidas
João representa um dos poucos que procuraram ganhar o mundo. Parte da sua localidade natal para a cidade grande: “Não quero nem olhar pra trás. Precisa chover logo hoje? (…) Passei um tempão imaginando, a vida passando, querendo… Por que será que estou com este buraco no peito, uma sensação de perder e de ganhar ao mesmo tempo…?”. Levará consigo a vontade de crescer e a nostalgia de deixar para trás as origens humildes, com seus encantos e sufocos.
Dois sobrinhos, Luizinho e Felipe, filhos de Pureza e Luiz, também partiram para caminhos diferentes. O primeiro mergulhou nas drogas. O segundo, nos estudos e na atuação política. Perdidos na cidade grande ou criando novas perspectivas para ampliar sua visão de mundo, e sobreviver, vivenciam a experiência urbana na Metrópole Contemporânea, suas engrenagens e a condição humana nesse contexto. Não se visualiza mais, entretanto, as contradições antagônicas entre cidade e campo, tão estudadas antigamente. Discute-se o esgarçamento desses pequenos lugarejos descaracterizados pela ausência da tranqüilidade bucólica do campo, incorporando todos os vícios da grande Cidade, sem gozar de suas virtudes, confortos e oportunidades.
O tema da viagem ganha um peso importante na discussão dessa transição ou esgarçamento das cidades, de sua gente, das relações familiares e humanas que vão tomando rumos díspares e imprevisíveis. O mugido de trem do título nos chama atenção para os sofridos conflitos com a partida. O encontro do mugido de um boi com o apito de um trem é como o tempo que passa veloz. É como Itabira: às vezes dói. Apesar da pressa em partir e cumprir seu destino, a máquina deixa saudade, como o sino dobra na igreja da pequena aldeia anunciando a morte. Mugido, apito e badalo do sino irmanam-se na despedida de quem vai, nas boas-vindas de quem chega.
João partiu. “Esta não é uma simples viagem, mais uma viagem, uma viagem como outra qualquer.” Então, o que é? É a separação de dois mundos? É ruptura? Só sabemos que há uma íntima ligação entre o trem que leva e o que trás, entre a gente que fica e a que vai. “O trem quase belisca os sarrafos das cercas, invade quintais, passa dentro das casas, corre solto e preso aos dormentes.” Há algo que parte com a viagem, mas na bagagem algo se leva, ou seja, permanece.
Câmera veloz
A leitura apressada do romance pode deixar certa insatisfação quanto à profundidade dos personagens. Muitos nem chegam a se constituir como tal — passam rapidamente. Outros decepcionam por uma história de vida interrompida, como apenas uma página a ser virada, nada mais. Suas paixões, desencontros, atropelos e nuances de alegria parecem muitas vezes máscaras em caricaturas. O jogo, a briga de galo, o futebol, a cachaça, o desejo “pecaminoso” prometem desenvolvimento, mas parecem frustrar a expectativa do leitor. Por outro lado, isso nos instiga a ler mais amiúde outros aspectos, e desprezar, em certa medida, tipologias fixas ou tradicionais. Importa que além da profusão de personagens, alguns inacabados, possamos observar também uma gama de discursos sob a influência de diferentes linguagens. Estes aspectos dão vida ao texto no sentido de ampliar seus horizontes.
A narrativa em mosaico, por exemplo, clica sobre uma cena num movimento de produção fotográfica fixado em um retrato. “A mãe era de terra fértil, onde as oliveiras espalhavam-se, cabelos verdes ao vento, azeitonas graúdas despencando de seus braços carnudos. Ciumentas, as videiras brotam cachos roxos, bagos grandes que mancham as bocas, os colos, as roupas.” Em outros momentos, apresenta-se uma notícia inesperada, uma geada em Londrina, um terremoto em tempos idos, o estouro de uma boiada. Um jornalismo de improviso, boca a boca, anuncia o desastre: “De repente, ficou vermelhão. Aí virou inferno. Em Londrina, as pessoas endoidaram, a cidade perdeu o rumo. Frio, frio, e frio!”.
Encontraremos, ainda, muitos elementos comuns ao cinema, no sentido de apreensão de alguns recursos deste pela literatura. A fragmentação, os cortes, o mosaico, a construção de imagens, fotografias cênicas das paisagens físicas e humanas, vozes testemunhais e confessionais de vivências múltiplas são aspectos recorrentes incorporados pela ficção literária. A multiplicidade de vozes e, conseqüentemente, de pontos de vistas, possibilita o levantamento de memórias tanto individuais, quanto coletivas. Elas são costuradas por uma câmera que se movimenta um tanto aleatoriamente, mas é orientada pela perspectiva unificadora de um diretor-narrador responsável, em última instância, pela ênfase a aspectos temáticos que pretende destacar.
Como num filme documentário, a narrativa traça, através de uma família, a problemática cotidiana da vida de uma cidade que se esgarça e sobrevive a partir de histórias. “Remexendo em velhas e rotas histórias, algumas histórias sempre requentadas. Lembradas sem despencar.” O espaço é delineado pelo confronto entre a cidade pequena e a cidade grande — esta sonho de alguns e, ao mesmo tempo, realidade adversa ou realização de vida para poucos. Mas é a cidade pequena, que se rompe sem despencar de vez, que perpassa todo o texto e suas criaturas, contando sua história, requentada ou não, mas a sua História, que é também a de todos. Afinal, a cidade, todas as cidades “precisam ter história, passado, telhas quebradas, janelas enrubescidas, prédios fantasmas, um romance em cada janela, o feijão ao fogo, milhares de cortiços nas entranhas dos edifícios… Elas precisam ser assim… Precisam ter cicatrizes… As cidades são pessoas”. Talvez personagens. Quem sabe seja essa humilde e pequena cidade, aqui dramatizada, a bem construída e verdadeira protagonista deste romance.