Não existe gênero mais agredido por invencionices, uma vez decidido que será conto o que o autor disser que é. Assim, há sempre um gracioso querendo reinventar a roda, e o resultado não costuma passar disso: caricatura da boa e circular forma.
Altair Martins sabe disso como poucos. Contudo, para o professor de Literatura Brasileira, porto-alegrense de 32 anos, o molde canônico é bebida pouca para saciar a sede do novo. Em Se choverem pássaros, aprofunda uma concepção inaugurada em Como se moesse ferro, primeira antologia, e dENTRO dO oLHO dENTRO, livro de um só conto. Vale-se do que estiver à mão para compor a estranheza: minúsculas trocadas por maiúsculas e vice-versa, a vírgula acintosamente posta no fim do título, o vazio entre colchetes nomeando a personagem, a construção caótica, os dois pontos substituindo os pontos finais (interessante sugestão de encadeamento e infinitude), o neologismo e a aproximação com a oralidade (“guspir” talvez seja melhor que “cuspir”). Arsenal de grosso calibre, mas ainda insuficiente à sustentação de um discurso.
Em Altair o sustentáculo vem um pouco antes da trama. Ele sabe arar, também como poucos, o delicado terreno das sensações e sentidos. Água verte pelos poros do texto, enquanto bichos se humanizam e homens se bestificam: o enjôo da grávida ao imaginar que bebeu cobras, o cão eleito filho, o motorista que apaga o cigarro na mão da criança esmoleira. A tessitura incomum está bem resumida no título, mas Altair não é escritor de resumos. Antes, seu texto flerta com o caudaloso, o exagerado, um desafio à concisão exigida do gênero. Envereda pela poesia e inspira-se na pintura. Se Dalí sugeriu um belíssimo conto no primeiro livro, agora Portinari dá as tintas de um magistral iRA dAS mÃES que, junto com sOL nA cHUVA à nOITE, responde pelos melhores momentos. E se os dois fossem narrados na mais ortodoxa das formas, ainda assim teriam assegurado seu lugar de honra em qualquer antologia.
Já que se falou em artes plásticas, uma comparação possível: Hieronymus Bosch, o mestre flamengo que antecipa o surrealismo em quatro séculos. Ousado, profético, incontido, amálgama de velho e novo, o conjunto em Bosch é bem menos instigante que o detalhe. Talvez esteja aí a chave para se entender por que um ganhador de tantos prêmios importantes (entre eles, dois Guimarães Rosa da RFI), não goza dessa unanimidade junto à crítica: isoladamente, os contos causam mais impacto que sua reunião. Altair não dá refresco ao leitor nem brinca em serviço.
Mesmo que a roda ainda seja a melhor solução, Altair está aí para provar que ela já não é a única possibilidade.