Cheiro de suor

“Miso soup”, de Ryu Murakami, impressiona ao expor hipocrisia da sociedade japonesa em relação ao sexo
Ryu Murakami: autor inventivo.
01/11/2005

Reina a esquisitice no Japão quando o assunto é sexo. País conservador, namorados não se beijam em público e revistas de nudez não mostram as genitálias. Uma revista Playboy enviada do exterior pelo correio passa pela censura antes de chegar ao destinatário em território nipônico, com os órgãos sexuais rabiscados pelos pincéis dos censores.

Reina a hipocrisia no Japão quando o assunto é sexo. País que proíbe a prostituição, mas tem a mais diversificada rede de sexo pago do mundo. Existe até uma espécie de visto de entrada no país, o de entertainment, que é facilmente obtido pelas moças que imigram ao Japão para trabalhar na indústria do “entretenimento”. As revistas são censuradas, mas os folhetos anunciando colegiais para “encontros remunerados” são distribuídos a granel.

Tóquio é tudo no Japão. Há o simbolismo de Hiroshima, o tradicionalismo de Kyoto, a graça de Osaka, mas Tóquio é tudo, para onde todos querem ir, onde tudo acontece. Em Tóquio, reina Shinjuku, o distrito da noite japonesa genuína, diferentemente de Roppongi, onde, à noite, os estrangeiros não dormem. Encravado em Shinjuku está o bairro Kabuki-cho, uma verdadeira disneylândia do sexo. É ali o cenário de Miso soup, em que o escritor Ryu Murakami faz uma exemplar descrição do submundo da capital japonesa num saboroso romance policial.

Não é um submundo secreto, sua existência é fato consumado, mas a sociedade japonesa finge que ele não existe. Murakami destrincha esse submundo com precisão. Faz uma análise inteligente do perfil de alguns de seus freqüentadores, mas não os perdoa, colocando-os na mira de um serial killer americano.

O protagonista Kenji é um jovem japonês que ganha a vida como guia para estrangeiros que desejam aventurar-se no turismo sexual de Kabuki-cho. É também o narrador da história e a voz que Murakami usa para tecer suas considerações sobre essa Tóquio camuflada em sua hipocrisia.

A vida de Kenji começa a mudar quando ele atende Frank, um americano que quer seus serviços para divertir-se no distrito do sexo nas três noites que antecedem a passagem de ano. Ao mesmo tempo em que o encontro com Frank faz Kenji refletir sobre os personagens que movimentam a vida noturna em Kabuki-cho, uma série de assassinatos violentos inicia-se na região. Kenji imediatamente passa a desconfiar de seu cliente, mas não consegue desvencilhar-se dele ou denunciá-lo. Pelo contrário, parece até que a suspeita pelas mortes os aproxima.

Passara duas noites acompanhando Frank, mas encontrara as vítimas pela primeira vez no pub. Eu não estaria transferindo para Frank meu sentimento de piedade e, por causa disso, ficara incapaz de sentir compaixão pelas pessoas assassinadas? Na realidade, para mim as pessoas do omiai pub eram semelhantes a robôs ou manequins.

Murakami revela-se um observador inteligente do intrigante comportamento dessa sociedade conservadora, milenar, que, no fundo, está sujeita aos mesmos desvarios humanos de qualquer metrópole ocidental moderna. O tom policial do romance, que chega a ganhar tintas fantásticas, é apenas uma isca para atrair o leitor ao que Murakami quer realmente mostrar: a fragilidade humana, tenham seus protagonistas olhos puxados ou não.

Maki era o tipo da mulher mais vulgar que se pode encontrar em Kabuki-cho. Era tacanha, complexada, burra e provavelmente vinha de uma família humilde, sem condições de lhe proporcionar boa educação. Nunca, porém, admitiria sua condição. Achou que poderia trabalhar em um local mais refinado e viver uma vida melhor. Sem consegui-lo, jogava a culpa do fracasso nos outros. Odiava a humanidade, culpando os outros por tudo que lhe acontecia.

Miso soup, com um texto ágil e enxuto, proporciona uma leitura agradável, mas que não é tão superficial como aparenta. Pelo contrário, em poucas páginas Murakami produziu um dos relatos mais impressionantes sobre essa misteriosa vida noturna da capital japonesa, muito distante do tradicionalismo das gueixas de Kyoto. Lá, as meninas vão para a escola de gueixas ainda adolescentes, e são preparadas para manter uma tradição histórica, da qual sentem orgulho em fazer parte.

Para Kenji, as mulheres de Kabuki-cho vendem o corpo não pelo dinheiro, mas para escapar da solidão. Em seu raciocínio, as prostitutas japonesas deviam envergonhar-se do que fazem, pois não têm uma necessidade tão real como as chinesas ou as latinas que trabalham na noite nipônica, que deixam seus países e suas famílias para ganhar dinheiro em Tóquio.

A maioria delas manda quase todo o dinheiro que ganha para o exterior, e essa é a fonte de renda para a subsistência dos parentes em seus países de origem. As latinas também vendem seus corpos para, por exemplo, comprar uma televisão para a família. São mulheres sérias. Por saber o que querem, elas não são hesitantes ou tristes.

Mesmo sem a trama policial, Miso soup já seria um livro interessante pelo desprendimento do autor ao tratar de um tema delicado que seus conterrâneos preferem ignorar. Mas Murakami, que já foi baterista de uma banda de rock, apresentador de talk show e roteirista de cinema, optou por uma história bem elaborada e inventiva. Ao mesmo tempo em que apresenta a noite em Kabuki-cho, o autor faz Frank permeá-la de sangue, em trechos que nada ficam devendo a Quentin Tarantino.

Frank perguntou se eu já enfiara uma orelha na vagina de uma mulher. Não respondi. Com o rosto impassível, Frank pôs a faca sobre o sofá, pegou do chão a orelha salpicada de sujeira, dobrou-a como se a enrolasse e introduziu-a na vagina da número cinco. Parecia não ter notado o absorvente. Apenas metade da orelha penetrou no orifício, sem avançar mais.

No final do livro, poético e melancólico, Frank conta a Kenji que ficou muito interessado pela miso soup, a tradicional sopa japonesa. Interessado por sua coloração marrom, seu cheiro de suor humano, pela aparência de não-sei-o-quê do prato. Intrigava-lhe o tipo de gente que bebia diariamente aquela sopa. Murakami nos mostra que o Japão de Kabuki-cho também é assim. O colorido que de dia fica cinzento, o cheiro de suor humano, uma aparência que não aparenta o que realmente é o local. Miso soup revela o tipo de gente que freqüenta diariamente essas ruelas, com sua esquisitice e sua hipocrisia.   

Miso soup
Ryu Murakami
Trad.: Jefferson José Teixeira
Companhia das Letras
214 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho